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Quando cheguei na redação paulistana de O Globo, em meados dos distantes anos 1990, Joel Santos Guimarães era mais uma lenda do que uma pessoa de carne e osso. Era “o” repórter. Experiente, cheio de moral, pouco era visto na sucursal. Construía suas próprias pautas, que ganhavam corpo em forma de reportagens especiais depois de apurações exaustivas, viagens, entrevistas com gente poderosa da República, encontros em locais discretos com fontes discretíssimas.
Naqueles primeiros meses no Globo, foram poucas as vezes em que vi Joel, profissional cuja carreira e prestígio estavam em uma prateleira inalcançável para um garoto de vinte e poucos anos recém chegados a um dos veículos de mídia mais importantes do país. Sua vida de repórter era mais parecida com a dos jornalistas fictícios dos filmes de Hollywood do que com a nossa, do “chão de fábrica” de notícias que eram os jornais no final do século XX.
Os textos com sua assinatura tinham espaço garantido e mereciam manchetes de primeira página no jornal.
Em uma de suas viagens, ele tinha ido conhecer prisões paraguaias onde presos brasileiros mofavam sem sentença, sem processo nem defesa. Recusou as passagens de avião oferecidas pelo Globo e viajou de carro, com motorista do jornal e o fotógrafo José Luiz da Conceição. No caminho de volta, pararam para almoçar numa cidade paranaense.
No meio da refeição, foram surpreendidos por dezenas de viaturas policiais que chegavam à cidadezinha em alta velocidade, cantando pneus e com as sirenes ligadas. Havia um sequestro em curso na cidade, mas alguém viu a quadrilha invadindo a casa de um empresário local e avisou a polícia. Joel e Conceição testemunharam o início do cerco policial que durou cinco dias e virou notícia nacional.
Repórter precisa ter sorte para esbarrar por acaso num negócio desses.
O problema é que, ao longo daquela cobertura, Joel torceu o pé, sofreu uma lesão nos ligamentos. A direção do jornal, no Rio de Janeiro, mandou ele abandonar o caso e procurar um hospital. Mesmo se arrastando com dor e o pé inchado, Joel desobedeceu e ficou até o final. Era tudo o que a chefia queria.
De volta a São Paulo, com o pé imobilizado, Joel assumiu a chefia provisória da equipe de reportagem nacional da sucursal paulista, cargo que ele já havia recusado duas vezes, pelo menos. A desobediência deu aos diretores o pretexto para encurralá-lo e fazê-lo aceitar a coordenação com o respectivo aumento de salário. Joel passou a ser meu chefe direto.
Contra sua vontade, cobertura por acaso no Paraná levou Joel Guimarães à chefia em O Globo
Acervo José Luiz da ConceiçãoCuriosamente, foi aí que percebi que ele era o oposto do jornalista “estrela” que eu imaginava. Não poderia haver alguém mais distante da vaidade e da arrogância, coisas que cresciam como mato nas redações daqueles anos – ainda hoje, provavelmente.
Passei a almoçar um prato feito com o chefe no botequim “pé sujo” frequentado também pelos motoristas e office boys do jornal. Isso fez muito bem para minha saúde financeira, pois, para me enturmar com os colegas da redação, costumava acompanhar outros repórteres nos sushis e bistrôs de culinária “contemporâneos” da Faria Lima ou do Itaim Bibi. Saía mais em conta e, estrategicamente, era mais vantajoso dividir o prato do dia com o chefe.
Foram muitos almoços e cafezinhos onde escutei suas histórias de bastidores de reportagens em que nunca se colocava como protagonista ou “herói”. Esses papéis cabiam ora ao fotógrafo ora ao motorista. Naqueles “causos” que contava, o mais comum era Joel reservar para si o papel de trapalhão, distraído ou desastrado. Ou tudo isso junto. Ele ria de si mesmo.
Joel vivia jornalismo 24 horas por dia. Melhor dizendo, ele vivia as pautas, apuração e texto. Era isso o que o interessava na profissão. Não conhecia e não comentava as fofocas das redações nem as intrigas nas cúpulas dos maiores veículos de comunicação do Brasil. Sua preocupação era como nosso trabalho poderia fazer o mundo ficar melhor, como impactar na vida dos brasileiros sem dinheiro nem poder.
Essa obsessão pelo fazer jornalístico se refletia em suas cobranças. Ele exigia dos repórteres o mesmo rigor e cuidado com que dispensava a dados, endereços, fontes, documentos, números, frases dos entrevistados. Para ele, jornalista precisa ter lado: o lado dos pobres, dos oprimidos. “Se não for assim não é jornalista, é lobista ou canalha”. Fazia questão de não ser considerado “pessoa de confiança” de seus patrões, Roberto Marinho e filhos.
Viramos amigos depois que saí do Globo São Paulo e vim para a sucursal no Recife. Visitávamos a casa um do outro. Ouvi ele falar das dores insanáveis que carregava na alma desde criança. E da esperança na justiça social, de sua fé de ateu na luta pelo fim da desigualdade e da miséria.
Acompanhei a criação da Agência de Notícias Brasil-Árabe, projeto que ele ajudou a colocar de pé em 2003 e comandou durante uma década em que sua equipe ganhou 11 prêmios de jornalismo. Depois, ele testemunhou a fundação da Marco Zero, projeto que o empolgou.
“Isso que vocês fazem é Jornalismo de verdade, com maiúsculas”, me disse não sei quantas vezes.
Joel então abraçou a ideia da Marco Zero, se ofereceu para ajudar. Nos primeiros quatro anos do site, escreveu 17 reportagens e entrevistas. Seu nome e foto aparecia em nosso expediente. Era uma contribuição luxuosa para uma iniciativa que dava os primeiros passos no cenário do jornalismo independente.
Na Marco Zero, ele publicou seus últimos textos. A partir de 2019, problemas de saúde impediram que continuássemos a contar com sua experiência e sensibilidade. Mesmo assim, ele permaneceu acompanhando nossa produção de conteúdo. Perdi as contas dos generosos elogios que fazia às nossas repórteres depois que lia as reportagens publicadas. Como editor da MZ, recorro com frequência a alguma frase de Joel que me faz parecer mais capaz ou inteligente diante da nossa equipe.
Ontem, domingo, 23 de março de 2025, seu coração parou. Ele tinha 73 anos. Vou sentir falta de nossos longos telefonemas no meio do expediente.
P.S. – Após ler esta crônica, Leonardo Lênin, filho de Joel, me informou que seu pai foi sepultado vestido com sua camiseta do MST, uma caderneta com anotações antigas de alguma reportagem e um caneta BIC azul.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.