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Linha de transmissão de energia eólica causa desmatamento em terras da agricultura familiar

Giovanna Carneiro / 12/06/2023

“Quem planta, colhe e depende da terra para viver sente de verdade a dor de ver ela sendo morta, desmatada, maltratada. Dói fisicamente mesmo em mim”. Aos 62 anos, Luiza Cavalcante é proprietária do Sítio Agatha, localizado no Engenho Toco, em Tracunhaém, Zona da Mata Norte de Pernambuco. Integrante do movimento de luta por terra e reforma agrária, a agricultora é parte da história de resistência do Complexo do Prado, que resultou na formação e reconhecimento dos assentamentos Chico Mendes I, Nova Canaã e Ismael Felipe.

Agora, 18 anos após o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) reconhecer a criação dos assentamentos e atribuir a concessão de uso das terras aos agricultores da região após um longa luta contra uma das famílias mais poderosas do Nordeste, Luiza e seus vizinhos enfrentam um novo conflito: impedir que uma empresa de outra família influente na política nacional promova o desmatamento em suas terras para a implantação de linhas de transmissão de energia elétrica.

A história do Engenho do Prado

Antes de continuar com o principal assunto dessa reportagem, vale conhecer um pouco da história de resistência do Engenho Prado e da sua importância para a luta pela terra na região.

Com os olhos cheios de lágrimas, Luiza Cavalcante lembra como se fosse hoje do dia em que viu a ocupação que ajudou a montar ser destruída por uma ação de reintegração de posse realizada pela Polícia Militar. Em 1997, a agricultora junto com cerca de 300 famílias sem terra ocuparam o Engenho Prado, propriedade da Usina Santa Tereza, à época, pertencente ao grupo João Santos.

Depois da ocupação, as terras improdutivas passaram a ter uma rica produção de alimentos saudáveis e viraram um espaço comunitário para os trabalhadores da região. Porém, o proprietário do engenho não aceitou a ocupação e os agricultores viveram, de 1997 até 2005, diversos episódios de despejos violentos, perseguições e ameaças.

A fim de impedir a desapropriação das terras, o grupo João Santos apresentou um projeto de reflorestamento de bambu no Engenho do Prado. A iniciativa foi aprovada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e usada como álibi pelo grupo para questionar a vistoria do Incra na área. Mesmo assim, em 1998 o Incra realizou a vistoria e, após a terra ser declarada oficialmente como improdutiva, as propriedades do engenho foram destinadas à desapropriação para fins de reforma agrária.

Porém, o empresário conseguiu a reintegração de posse e, apesar do governo do Estado oferecer outras terras aos agricultores, os ocupantes resistiram ao primeiro despejo, que ocorreu em julho de 2003. Em novembro daquele mesmo ano, aconteceu o episódio de despejo mais truculento da história do Engenho Prado.

“Eles chegaram e disseram que em meia hora iam destruir todo o acampamento. Me pegaram às cinco da manhã. Retornei às oito da noite e ainda estava sendo desmanchado o acampamento que eu morava. Coisa mais linda, é algo que me emociona quando eu lembro, coisa mais linda do mundo, o povo unido e resistindo”, relembra Luiza.

Quando souberam da ação de despejo que estava prevista para acontecer em um sábado, os trabalhadores decidiram desocupar a área na sexta-feira. A perspectiva dos ocupantes era de que a reintegração pudesse ser anulada, que eles pudessem deixar o local pacificamente até que pudessem voltar a ocupá-lo, mas não foi isso que aconteceu. Ainda na madrugada da sexta para o sábado, quando os trabalhadores deixavam o assentamento para ocupar as margens da rodovia PE-41, que liga os municípios de Araçoiaba e Tracunhaém, o batalhão da Polícia Militar de Nazaré da Mata chegou ao local fortemente armado promovendo uma grande destruição na ocupação e agredindo os trabalhadores.

“Eles chegaram destruindo tudo, derramando comida no chão, ligar para as crianças que estavam com fome. Eles chegaram de vinte para as quatro da manhã. Eles destruíram as roças, toda nossa plantação, eles chegaram querendo nos matar mesmo”, contou Luiza. A agricultora chegou a ser agredida pelos policiais e foi detida.

“Eu lembro que, quando soubemos da ordem de reintegração, a primeira coisa que nós fizemos foi salvar as sementes. Nós tínhamos um galpão cheio de sementes e mandamos elas para outra ocupação. E doeu muito ver eles destruindo as plantas, as terras todas reviradas. Nós tínhamos um lugar que era sagrado, eram duas árvores gigantes, um pé de manga e um pé de jaca que unidas viraram um local sagrado para a gente. Era onde nos reuníamos para celebrar, almoçar juntos, fizemos até casamento neste local. Foi muito triste quando eles derrubaram essas árvores, você ver aquela cena do povo chorando assim, os mais velhos, os homens, todo mundo chorava”, disse a agricultora com lágrimas nos olhos.

Só em novembro de 2005, o Tribunal Regional Federal da 5ª região, em Pernambuco, acatou a decisão emitida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e suspendeu o mandado de segurança favorável ao grupo João Santos, concedendo, assim, a imissão da concessão de uso da terra aos assentados. Neste período, um grupo de trabalhadores assentados passaram 15 dias acampados em frente ao STF, em Brasília, para pressionar a decisão do órgão.

“No dia 9 de fevereiro de 1997 a gente entrou na terra e no dia 25 de novembro de 2005 a gente conseguiu a concessão de uso dela. Depois de muita peleja, até para Brasília nós fomos, para brigar pelo que era nosso”, afirmou Luiza Cavalcante.

Luiza Cavalcante tem em sua casa um acervo de imagens sobre as disputas do Engenho do Prado. Crédito: Arnaldo Sete / MZ Conteúdo.

O lote do assentamento de Luzia agora conta com uma associação, a Associação Sítio Agatha, que promove ações de educação, arte e cultura através da agroecologia, ou melhor, afroecologia, como explica Luíza: “É afroecologia porque nós entendemos que vem de uma formação ancestral, focada na experiência negra sobre a ecologia, a forma de viver, de plantar e dessa conexão com a terra”.

Agora que sabemos como as agricultoras enfrentaram a família de João Santos, vamos conhecer a nova luta contra outro sobrenome poderoso.

A nova ameaça ao território

“É um impacto tão grande, é uma dor na terra, na alma”. É nítido nos olhos e na fala trêmula de Luiza as consequências psicológicas que a chegada das torres de transmissão de energia elétrica à sua propriedade causaram. Em 2020, enquanto enfrentava a pandemia da covid-19, a agricultora também precisou lidar com a chegada do empreendimento da Rialma S/A em suas terras, causando desmatamento e outros transtornos.

“Não houve nenhum diálogo com a gente antes. Quando notamos já estavam acabando com a vegetação, abrindo estradas, passando as máquinas e tudo isso com a autorização do Ibama”, contou Luíza.

A Linha de Transmissão que ocupa parte da propriedade do Sítio Agatha é a Linha de Transmissão 500 kV Campina Grande III – Pau Ferro. Esta linha tem aproximadamente 130 km de extensão e sua instalação passa por 15 municípios de Pernambuco e da Paraíba.

O empreendimento pertence a empresa Rialma S/A, do Grupo Rialma, com sede em Brasília e gerenciada pela família Caiado, nome de forte influência política, com atuação no estado de Goiás, incluindo o atual governador do estado, Ronaldo Caiado. O fundador do grupo empresarial é Emival Ramos Caiado Filho, pecuarista e primo do governador de Goiás.

O pecuarista foi condenado administrativamente em outubro de 2014 a constar na lista suja do trabalho escravo após fiscais encontrarem 26 trabalhadores em condições análogas à escravidão em uma de suas fazendas no Tocantins, mas em 2015 conseguiu uma decisão liminar do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para suspender a inclusão do seu nome na lista do Ministério do Trabalho. Porém, em 2021, a liminar foi derrubada no STJ e o nome do pecuarista voltou a compor a lista.

O empresário é íntimo de políticos que fizeram parte da base de apoio a Jair Bolsonaro. Em 2022, de acordo com o sistema de prestação de contas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Emival doou R$ 1,84 milhão ao diretório nacional do partido União Brasil por meio de duas transferências eletrônicas, e afirmou que a doação seria direcionada a Pernambuco. O pecuarista ocupou o 6º lugar no ranking do TSE de Pessoas Físicas Doadoras no pleito de 2022.

O empresário também fez doações para as campanhas dos filhos do ex-ministro e senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE). O grupo Rialma venceu os leilões de energia quando Fernando Bezerra Coelho era Ministro de Minas e Energia. De acordo com o TSE, Emival Caiado doou R$ 250 mil à campanha de Miguel Coelho, R$ 200 Mil à de Fernando Filho e R$ 150 mil à de Antônio, todos filiados ao partido União Brasil.

“Chegaram aqui um grupo de homens para fazer as obras. Um deles era um altão, de olhos claros, que disse ser da família Caiado. Ele chegou só avisando que a instalação seria feita e mostrou o licenciamento. A gente tinha que aceitar e pronto”, falou Luzia sobre o processo de instalação das torres da linha de transmissão.

Entre os impactos causados pelas linhas de transmissão, a supressão vegetal é a mais alarmante delas. Além da área onde as torres estão instaladas, uma área de 60 metros de largura abaixo dos fios é tratada como “faixa de servidão” e, de acordo com a própria Rialma S/A, não são permitidos nessas áreas: levantar bambus, varas cumpridas ou qualquer equipamento; plantação de porte médio ou elevado; fazer queimadas ou fogueiras; construir moradias, galpões ou qualquer benfeitorias. Com isso, calcula-se que para a instalação dos 130 quilômetros da linha de transmissão 500 kV Campina Grande III – Pau Ferro, uma área de aproximadamente 7,8 mil quilômetros quadrados foi desmatada. Isso sem contar com o que foi desmatado para a construção das estradas de acesso aos equipamentos de instalação.

“Nós estávamos construindo uma casa e os fios da linha de transmissão ia passar bem por cima dela e de acordo com as regras da empresa isso é proibido. Então, nós paramos a obra e, depois de muita luta e conversa com os empresários, conseguimos negociar para que eles mudassem um pouco a direção da torre e ela não atrapalhasse a construção”, contou Luiza Cavalcante.

Luiza na casa que teve a construção interrompida devido a instalação da linha de transmissão. Crédito: Arnaldo Sete / MZ Conteúdo.

“Além disso, nosso terreno é extenso, mas nossa área agricultável não é tão grande assim, muitas das áreas são encostas e não dá pra plantar. Eles [trabalhadores da empresa] estão destruindo justamente a nossa área mais rica de plantação”, concluiu a agricultora.

Entramos em contato com a Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) para saber mais detalhes sobre a licença de operação concedida ao grupo Rialma e sobre as medidas de compensação para a vegetação que está sendo suprimida. Em nota, a CPRH afirmou que “o empreendimento da RIALMA S.A não foi licenciado pela CPRH. Como o empreendimento ultrapassa os limites de dois estados da federação, a competência para o licenciamento é do Ibama”.

Também em nota enviada à Marco Zero, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) informou que “ o empreendimento mencionado não é licenciado pelo Ibama. Sugerimos contato com órgão do estado para informações sobre o assunto”. No entanto, a licença prévia de instalação da Linha de Transmissão 500 kV Campina Grande III – Pau Ferro foi solicitada ao Ibama em março de 2018 através do processo nº 02001.106274/2017-83.

Consequências

Além disso, Luiza Cavalcante afirmou que também teve contato com pessoas que se apresentaram como funcionários da CPRH. Procuramos mais uma vez a CPRH a fim de esclarecer os fatos, mas até o fechamento da matéria não obtivemos retorno.

Outra preocupação para Luzia e para seus vizinhos e vizinhas são os efeitos que as linhas de transmissão podem causar na saúde, ainda desconhecidos: “Os representantes da empresa falaram sobre um efeito eletromagnético que as torres podem ter, mas não detalham que efeitos são esses. Eu tenho medo de andar perto e embaixo dos fios, em dias de chuva eu evito ao máximo, mas eu preciso caminhar pela minha propriedade, cuidar da plantação”.

Fios expostos são encontrados na propriedade de Luzia, próximo a área de plantação da agricultora. Crédito: Arnaldo Sete / MZ Conteúdo.

De acordo com Luzia, desde a instalação da linha de transmissão, a qualidade do sinal de celular não é mais a mesma e os aparelhos eletrônicos de algumas casas, que estão mais próximas das torres, estão apresentando falhas e parando de funcionar. Além disso, os vizinhos das torres reclamam que há um barulho que incomoda. “Não é um barulho alto não, mas é um som contínuo e que não é natural e acaba incomodando, principalmente durante a noite. Sem falar na tristeza que toma conta da gente, né? Ver a nossa propriedade sendo destruída assim adoece a gente, eu mesma fiquei bem ‘deprê’ quando começaram a instalação”, revelou a agricultora.

A fim de tornar público os impactos que as torres causam na vida dos moradores dos assentamentos de Tracunhaém, a Associação Sitio Agatha lançou a campanha “Vizinha das Torres”, uma série de relatos das moradoras, disponível no site da organização

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AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.