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Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura está paralisado no Governo Raquel

Raíssa Ebrahim / 13/06/2023
Dezenas de braços e mãos, a maioria de pele negra, colocadas para fora das grades fechadas de uma cela. Gestos sugerem que as pessoas presas estão pedindo ou cobrando algo.

Crédito: Wilson Dias/Agência Brasil

O decreto 54.393/2023 da governadora Raquel Lyra (PSDB), que exonerou, em janeiro, servidores em cargos comissionados e suspendeu gratificações, ainda está tendo efeitos em Pernambuco. Sem uma nova seleção de peritos mais de seis meses depois, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura está paralisado. 

O governo estadual está sendo acusado de tentar aparelhar o órgão ao insistir na escolha dos novos nomes, o que poderia, segundo as críticas, comprometer a independência política e institucional dos membros. Essa é a primeira vez que o mecanismo tem suas atividades interrompidas desde sua criação há mais de 10 anos.

Previsto em lei (Lei 14.863/2012), o órgão exerce a defesa dos direitos humanos de pessoas privadas de liberdade por meio de visitas regulares a diferentes sistemas, como o prisional, o socioeducativo, as instituições de longa permanência para idosos, os abrigos, as delegacias, as comunidades terapêuticas e os hospitais psiquiátricos. Os peritos também podem requisitar a instauração de procedimento criminal e administrativo caso se constatem indícios de prática de tortura ou de tratamento cruel, desumano e degradante. 

Na prática, a falta de atividades do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura significa que não estão sendo realizadas inspeções por parte do órgão nesses espaços desde que a governadora assumiu. Isso estaria afetando a veiculação de possíveis denúncias de tortura e outras violações de direitos por parte, por exemplo, de agentes carcerários e socioeducativos. 

Ao todo, seis peritos, com previsão de cargos comissionados ligados à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SJDH), exercem essas atividades em Pernambuco, um dos primeiros estados do Brasil a ter esse tipo de sistema. Os exonerados pelo decreto de Raquel, em 2 de janeiro deste ano, estavam no cargo desde 2015, quando o então governador Paulo Câmara assumiu.

Conforme a legislação, a escolha dos peritos deveria ter a contribuição do Comitê Estadual de Combate e Prevenção à Tortura, que sugerirá nomes de possíveis integrantes ao governador do Estado. O comitê em Pernambuco elaborou um edital este ano, porém ele esbarrou na Procuradoria Geral do Estado (PGE) e ainda não foi publicado pelo Executivo.

O que diz a lei 14.863/2012

“O Comitê Estadual de Combate e Prevenção à Tortura é um órgão autônomo, deliberativo e consultivo da política pública de combate à tortura em todo Estado de Pernambuco, composto por 20 membros, de forma paritária entre o poder público estadual e a sociedade civil”.

A Marco Zero procurou a SJDH diversas vezes desde o dia 19 de maio, data do primeiro contato. Até agora, no entanto, não obteve qualquer retorno ou posicionamento da pasta sobre a seleção dos novos peritos.

Independência em xeque

Em parecer elaborado a pedido da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, a que a Marco Zero teve acesso, a Procuradoria Geral do Estado defende, entre outros pontos, que, mesmo mediante seleção, a governadora Raquel Lyra poderá ou não acatar as sugestões provenientes do processo seletivo, uma vez que a função de perito é um cargo comissionado.

Por outro lado, um ofício conjunto em resposta à PGE, rebate e avalia que esse entendimento corrobora para um “aparelhamento funcional” dos membros do mecanismo em Pernambuco por parte do governo Raquel, uma vez que, dessa forma, a gestão não está prezando nem garantindo a independência e autonomia formal do órgão. O ofício é assinado por Camila Antero e Carolina Barreto, ambas da coordenação colegiada do Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura, juntamente com Sofia Fromer Manzalli, vice-presidente do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

A “ociosidade prolongada” do mecanismo em Pernambuco constituiu um “retrocesso no compromisso assumido pelo Estado Brasileiro ao ratificar a Convenção contra Tortura e seu respectivo Protocolo Facultativo (OPCAT)”, avaliam.

“Não é demais lembrar que o Estado de Pernambuco é um dos entes federados que apresenta a situação mais dramática, tendo, desde 2011, a situação inconstitucional e indigna dos privados de liberdade no Complexo do Curado sido objeto de litígio na Corte Interamericana de Direitos Humanos”, relembram as especialistas. 

Para Wilma Melo, presidenta do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri), representante dos beneficiários das Medidas Provisórias da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Complexo do Curado, “Pernambuco não é uma república independente, mas um ente federado, portanto deve se mirar nos protocolos internacionais e leis existentes na esfera federal. Não encontrando consenso, nem explicação na insistência do poder executivo decidir na escolha dos peritos(as), o que fragiliza o funcionamento do Mecanismo como órgão autônomo de Prevenção e Combate à Tortura”.

Além disso, o edital elaborado pelo comitê, aponta a PGE, também não pode prever mandatos por tempo determinado para os membros por falta de previsão legal nesse sentido e porque estabelecer um prazo determinado seria incompatível com o perfil legal do cargo comissionado, que possibilita livre nomeação e exoneração a qualquer tempo pela governadora.

Porém, a participação da governadora, defendem as especialistas Camila, Carolina e Sofia, deveria ser do tipo pro forma, ou seja, uma formalidade no ato da nomeação dos peritos, assim como acontece na seleção para compor o Mecanismo Nacional.

Pela lógica, diz o ofício assinado conjuntamente, a atuação do mecanismo estadual “deve ser livre de influências políticas de governantes e de outros órgãos de estado, uma vez que são responsáveis pelas ações e omissões que recaem sobre pessoas privadas de liberdade em diferentes sistemas geridos pelo próprio poder público e são objetivamente responsáveis pela observância dos direitos básicos dessas populações”.

A resposta à PGE lembra ainda que a composição do comitê estadual já conta com representação de órgãos do Poder Executivo, “de modo que a participação do poder público no processo seletivo dos membros do mecanismo é garantida”.

Sobre os mandatos, apesar de a legislação que institui o mecanismo (a citada Lei 14.863/2012) não prever tempo determinado para os cargos de peritos, as representantes do mecanismo e do comitê nacionais defendem que não faz sentido manter-se um mecanismo preventivo com livre nomeação e livre exoneração, “pois não se trata de cargos de confiança do governo”.

A previsão e duração de mandatos é, portanto, importante para “mitigar a livre exoneração, a interferência política, a acomodação institucional e a garantia de continuidade do trabalho do(a) especialista”, defendem.

Pensando nesse fim, o edital elaborado este ano pelo comitê estadual prevê mandatos escalonados. “Ainda que imperiosa e necessária alteração legislativa, esta não pode ser utilizada como subterfúgio para adiar indefinidamente o restabelecimento do órgão”, rebate o documento.

Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou, em 2018, o Estado brasileiro por situação do Complexo do Curado. Foto: Google Street View

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AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com