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“Menos um fazendo o L”: assassinato nas redes e a memória de um sobrevivente

Samarone Lima / 03/05/2023
Foto noturna de ciclista com bolsa de entregador nas costas, em velocidade em uma avenida em que os carros e as luzes estão em segundo plano e fora de foco.

Crédito: Rudy and Peter Skitterians/Pixabay

Tive que respirar fundo para não soltar um palavrão e assustar meu filho pequeno, que brinca de andar e mexer em tudo que represente perigo pela casa, enquanto tento escrever.

Resumindo:

“Após matar um jovem na ligação leste-oeste, região central de São Paulo, um motorista de aplicativo fez publicação em redes sociais debochando da vítima. ‘Menos um fazendo o ‘L'”, em referência aos eleitores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva”.

A frase do motorista-assassino confesso:

“É o ladrão de celular. Ladrão, foda-se. Talvez eu encontre esse vagabundo em outra vida”, afirmou em um dos vídeos.

Esse negócio me doeu na alma porque o sujeito que foi morto (que também fazia uns bicos em aplicativos, além de vender bugigangas nos sinais) pode ter roubado um celular, mas ele não era só isso. Era um ser humano. E os tempos estão tão medonhos, que não basta mais matar. É preciso postar nas redes sociais.

Isso é típico dos tempos fascistas que estamos vivendo. Sem a exibição, nenhum crime compensa.

Pois bem. Pego o gancho desta notícia absurda para falar deles, os milhões de brasileiros que trabalham em aplicativos, de carro, moto e bicicleta.

Moro em Olinda, numa rua que tem um nome pomposo, mas todo mundo conhece mesmo é como “rua da Palha”. Parece uma vila, com as casas bem coladas, e a porta já da para a rua. Não tem interfone, portaria, nada.

A gente vê como a luta pela sobrevivência é um osso duro, perverso, e deixa cicatrizes.

Como sou cronista há muitos anos, meu material básico é o ser humano, suas dores e delicias. Por isso, adoro conversas. Sem conversa, não cronista, há artigos sociais. Nosso material humano é esta mistura de lágrimas, epifanias, dores, ressurreições.

Sempre que chega algum entregador de alguma coisa aqui em casa, a regra básica é simples:

Abro a porta, o portão, pergunto o nome do entregador e pergunto algo.

O fato de perguntar o nome sempre causa surpresa. Mas o fato de ser tratado com respeito, de agradecer pelo seu trabalho e perguntar sobre sua vida, é um pequeno desvio na curva.

Mas justamente depois de ter lido a matéria na Folha de São Paulo, chegou um camarada de uns trinta anos, trazendo dois pacotes de fraldas. Veio de bicicleta. Era o final da manhã, e o sol cozinhava o juízo. Aqui em Olinda, o sol não é para amadores.

Perguntei seu nome: Antônio. Me entregou os pacotes, vi uma marca grande no seu braço.

“Isso foi acidente?”, perguntei.

“Que nada, foi leptospirose, a doença do rato. Quase morri. Fiquei dez dias entubado. Peguei fazendo entregas, aquelas chuvas que mataram meio mundo de gente dos morros”.

Me olhou e alisou o braço, onde tinha a marca.

“Fiquei dez dias entubado. Na água da chuva tinha mijo do rato. Peguei. Essa marca aqui é dos soros que tomei, por onde entravam os remédios”.

“Ficasse internado onde?”

“No Miguel Arraes”.

Resposta mais pernambucana que essa, impossível.

“O médico disse que eu tive muita sorte, porque fui atendido em 24 horas. Meu rim estava parando. Dos três que entraram comigo, fui o sobrevivente”.

Após uma pausa, ele completou.

“Foi aperreio, visse?”

“E o iFood te ajudou em alguma coisa?”

“Porra nenhuma. Em caso de acidente, o cara só recebe se ficar numa cama. Se morrer trabalhando, a família recebe R$ 100 mil. Mas eu não quero esse dinheiro de jeito nenhum”.

Ele tinha que seguir. Passei o código para ele.

“Tomara que apareça um trabalho melhor pra você, meu velho”.

“Deus te ouça. Só eu sei o que foram aqueles dez dias. O médico mesmo disse que sou um sobrevivente”.

“É mesmo”, concordei.

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AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.