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Movimento Ocupe Estelita: quais lições para a cidade do Recife?

Marco Zero Conteúdo / 29/07/2024
A imagem mostra uma grande reunião de pessoas ao ar livre, provavelmente no final da tarde, devido à iluminação quente. O cenário é uma área urbana, e a multidão está concentrada em um campo gramado, com algumas pessoas em pé e outras sentadas. Ao fundo, há estruturas longas e amarelas que se assemelham a vagões de trem ou armazéns, decoradas com grafites. Acima dessas estruturas, o céu está parcialmente nublado, com algumas áreas azuis visíveis. No lado direito da imagem, há uma estrutura azul em forma de tenda, proporcionando sombra a uma área embaixo dela. No canto superior direito da foto, há um logotipo com o texto “Observatório das Metrópoles” e abaixo “Eleições,” sugerindo que este evento pode estar relacionado a uma eleição ou reunião política.

Crédito: Truffi/Renan (2014)

por Danielle de Melo Rocha* e Talita Maria Pereira de Lima**

No Recife, o Ocupe Estelita foi um movimento icônico em defesa do direito coletivo de escolher o tipo de cidade para viver. A ação foi inspirada pelos ventos das “cidades rebeldes” que sopravam em outros movimentos de resistência, como a Primavera Árabe e os Indignados, na Europa, e os occupies, com destaque para o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos. O Movimento Ocupe Estelita teve como uma das bandeiras a defesa da apropriação identitária de um espaço urbano de referência histórico-cultural e paisagística que extrapola a cidade, mas bebe das origens da construção da pernambucanidade, acompanhando os conjuntos portuários e configurando os armazéns localizados às margens do Rio Capibaribe.

O movimento Ocupe Estelita exemplifica a força da resistência e luta coletiva pelo Direito à Cidade. Como ele surgiu e o que se tornou?

Nascido em 2012 para se confrontar à implantação do Projeto Novo Recife, parte do planejamento estratégico desta cidade, o Movimento Ocupe Estelita emerge denunciando as irregularidades na compra do terreno de 10 hectares, localizado no Cais José Estelita, no bairro de São José. Esse terreno havia sido repassado pela Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) ao município, sendo arrematado, no ano de 2008, em um leilão pelo Consórcio Novo Recife, constituído pelas empresas Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos.

Como antecedente de violência contra a paisagem do centro histórico, o polêmico projeto de duas torres residenciais de 41 andares, com apartamentos de luxo, conhecidas como “Torres Gêmeas”, foi construído de 2005 a 2009, no bairro de São José. No Cais José Estelita, a proposta do Novo Recife abrigava 13 torres de até 40 pavimentos, sendo oito residenciais, dois empresariais, dois flats e um edifício-garagem.

Em março de 2012, o Projeto foi apresentado pelo consórcio em audiência pública. Face ao seu enorme impacto, o Grupo Direitos Urbanos toma à frente da organização do Movimento Ocupe Estelita, exigindo do poder público o cumprimento das legislações e a participação popular na construção de uma nova proposta, de uso mais coletivo, para a área. Defendia-se o acervo da memória ferroviária brasileira abrigada no pátio ferroviário das Cinco Pontas e apontava-se os impactos de vizinhança e os prejuízos ao conjunto histórico dos bairros de Santo Antônio e São José que o Projeto Novo Recife causaria.

Pela importância da causa, gestão horizontal e diversidade de perfil dos participantes, o movimento contou com o apoio popular e teve muita repercussão nas redes sociais (no blog do grupo Direitos Urbanos e no Facebook). As produções artísticas e culturais, que aconteciam no Cais José Estelita aos domingos, agregaram muitas pessoas em uma apropriação pública e festiva deste espaço. O enfrentamento no campo jurídico, incluindo denúncias junto ao Ministério Público Federal (MPF) em Pernambuco, ampliou o alcance nas mídias.

Com o início da demolição dos armazéns, os integrantes, além de pessoas que aceitaram a convocação do movimento, montaram um acampamento no Cais José Estelita, de 21 de maio a 17 de junho de 2014. Contudo, a repressão policial e jurídica, juntamente com o desgaste ao longo dos anos, impactou a mobilização do grupo. A demolição dos armazéns históricos pelo consórcio representou um abalo para os defensores do patrimônio cultural.

Quais os limites, as conquistas alcançadas e o legado?

Passados 10 anos do Ocupe Estelita, o site da construtora Moura Dubeux anuncia que estão prontos para morar duas das torres do empreendimento, chamadas Mirante do Cais, cujos apartamentos de 227m2 a 228 m2, com quatro suítes, encontram-se à venda pelo valor médio de R$ 4 milhões A inovação e o desenvolvimento sustentável são aclamados no marketing comercial que ressalta, além dos equipamentos de lazer (quadra de tênis profissional, piscina coberta aquecida, pista de cooper, horta, pomar orgânico), o teto verde, sistema de reúso da água para irrigação, abastecimento do espelho d’água que o contorna, cinco andares de garagem oferecendo quatro vagas por apartamento e estações de recarga para carros elétricos.

Hoje, em uma via de circulação do empreendimento, colado ao muro, vê-se a placa com a palavra “ressignificar”, em letras garrafais. Ressignificar o quê? A tentativa simbólica de apagar o enfrentamento ao Projeto Novo Recife desperta a indignação dos que lutaram pelo Direito à Cidade. Foi o que faltava para reacender o espírito que anima o Movimento Ocupe Estelita. As pessoas e as representações sociais voltaram a se reunir para abraçar a bandeira do “rememorar”, do “resistir” e refletir sobre o movimento.

A imagem mostra uma vista aérea de um evento ao ar livre durante o dia. No chão, há um grande texto em negrito que diz “RESSIGNIFICAR”. Abaixo desse texto, há várias tendas brancas alinhadas, com grupos de pessoas ao redor delas. À esquerda das tendas, há uma estrada sem veículos visíveis, e além dessa estrada, há uma área gramada com pouca vegetação. Ao fundo, há prédios altos contra um céu nublado. O cenário parece ser urbano e espaçoso.
Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

O atraso no avanço das obras oportunizou a ampliação do debate com a sociedade sobre a importância daquela área como um espaço coletivo e identitário da história do Recife. Entre as conquistas alcançadas na resistência contra o projeto original do Novo Recife, estão a diminuição do gabarito do skyline e a articulação com parques abertos à população. Essas conquistas minimizam, não totalmente, claro, a segregação que resultaria do impacto social e paisagístico com o grande “paredão” proposto.

O Ocupe Estelita alcançou marcos simbólicos significativos no diálogo urbano que conseguiu reverberar com o envolvimento da comunidade. Ele revelou lacunas nos procedimentos de aprovação de empreendimentos imobiliários de grande escala e exigiu maior transparência. Apesar dos desafios enfrentados, o movimento permaneceu resiliente. Nesta ocasião que marca os dez anos, o movimento reacendeu o desejo de celebrar e refletir sobre os caminhos do planejamento urbano do Recife.

Vários eventos comemorativos marcaram esta celebração, incluindo uma sessão solene na Câmara dos Vereadores em 21 de maio, caminhadas, bicicletadas, passeios de barco pelo rio Capibaribe, sessões de cinema-debate, programas de rádio, publicações de artigos, festas etc. A grande celebração dos dez anos do movimento ocorreu no domingo 16 junho de 2024, numa ocupação político-cultural. Não por acaso, o evento ocorreu, como inauguração simbólica e popular, no parque batizado por força de lei e por pressão do movimento como Parque da Resistência Leonardo Cysneiros, em reconhecimento ao papel de um dos seus mais incansáveis componentes.

A imagem mostra uma vista aérea do litoral do Recife, na altura do Cais José Estelita. Há uma longa avenida reta que corre paralela à costa, que está à direita da imagem. A costa apresenta um grande corpo de água que se encontra com o horizonte à distância. À esquerda da estrada, há vários edifícios com arquiteturas e alturas variadas, incluindo um arranha-céu particularmente alto e esbelto que se destaca. Entre a estrada e esses edifícios, há uma faixa de espaço verde com árvores e grama. O céu acima mostra nuvens dispersas, sugerindo que pode ser fim de tarde ou início da manhã devido à iluminação suave.
Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Dez anos após o seu início, a luta continua a inspirar outros movimentos urbanos no Brasil, novas formas de resistência e de organização popular. Além disso, reforçou o sentimento de pertencimento e responsabilidade entre os recifenses, em relação aos espaços públicos, trazendo à tona questões ambientais, históricas e sociais que são negligenciadas durante processos de urbanização acelerada. Ao promover um debate público sobre o futuro das cidades, o Ocupe Estelita enfatizou a importância de um desenvolvimento urbano conduzido com a participação ativa da comunidade, respeitando a diversidade e a memória dos lugares. O movimento desperta o profundo vínculo dos recifenses com seu patrimônio histórico-cultural e paisagístico, destacando a importância da participação cidadã na definição dos rumos do desenvolvimento urbano.

O apoio e engajamento aos movimentos sociais podem nos alimentar coletivamente, no sentido do Estado de Direito, em busca da defesa de uma sociedade mais justa, equitativa e solidária. A práxis das lutas coletivas no cotidiano também ampliam as possibilidades de resistências às vulnerabilidades socioambientais por meio de redes de solidariedade, a exemplo dos aprendizados que vivenciamos com a pandemia da covid-19 e com o agravamento progressivo das emergências climáticas.

Mais do que nunca, precisamos reivindicar o Direito à Cidade, em defesa à vida, à segurança alimentar e à permanência com segurança no local onde se construiu relações identitárias ao longo do tempo e se consolidou os vínculos afetivos. Há que se cobrar dos nossos representantes políticos, o compromisso prioritário com todas as pessoas sem distinção social. Além da definição dos limites e execução do projeto do Parque da Resistência, o poder público precisa cobrar a construção de 200 unidades de habitação popular que ficou estabelecida entre as contrapartidas do Projeto Novo Recife. E todos nós recifenses devemos acompanhar esses desdobramentos. Inspirados no “Ocupe Estelita”, que emerge como um ícone de resistência por um Recife mais equitativo e abrangente, não podemos esquecer do seu grito de guerra “A cidade é nossa!”.

A imagem mostra uma parede com vários cartazes. À esquerda, há um grande cartaz preto e branco de uma pessoa com barba e bigode, vestindo terno e gravata. A pessoa está sorrindo, e abaixo da imagem há um texto que não está totalmente visível devido ao ângulo da fotografia. À direita, há vários cartazes menores vermelhos com texto branco em negrito repetindo as palavras “OCUPAR,” “RESISTIR,” em letras maiúsculas. Esses cartazes estão dispostos em duas colunas; alguns estão diretamente na parede, enquanto outros se sobrepõem aos já existentes. A parede de fundo parece envelhecida, com desgaste visível e algumas marcas de grafite.
Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

*Professora-adjunta do departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do programa de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano (PPG-MDU/UFPE), coordenadora da Comunidade Interdisciplinar de Ação, Pesquisa e Aprendizagem (Ciapa/UFPE) e integrante do Núcleo Recife do Observatório das Metrópoles). Representa a UFPE no Conselho da Cidade do Recife (Concidade) e no Fórum do Prezeis.

**Advogada, mestra pelo programa de pós-graduação em Direitos Humanos (PPGDH/UFPE) e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano (PPG-MDU/UFPE). É pesquisadora da Ciapa/UFPE e do Núcleo Recife do Observatório das Metrópoles.

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