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“Mãe, quem é aquela mulher pintada do muro?”, pergunta Júlio de 10 anos. “É a sua tataravó, Dona Albertina. Ela era parteira”, responde a mãe Maria Juliana dos Santos (27), enquanto catava sururu na Ilha de Deus, Zona Sul do Recife. Os olhos curiosos de Júlio reagiram surpresos à descoberta do vínculo com alguém cuja história ele até então não conhecia. “Ela tem cara de pessoa trabalhadeira”, observa o menino, voltando a brincar com o irmão Ismael (8), junto da calçada onde a jovem mãe mecanicamente limpava baldes do produto de onde ela tira, sozinha, o sustento dos filhos.
A pintura de Dona Albertina, a tataravó de Júlio e parteira que trouxe ao mundo 375 crianças na Ilha de Deus, está estampada no muro do posto de saúde da comunidade como um monumento de uma história que os livros oficiais não contam. O retrato em tinta spray é parte de uma série de pinturas em homenagem à liderança feminina na Ilha, uma força que se revela de tantas maneiras quando cruzamos a ponte “Vitória das Mulheres” para entrar nesse lado do Recife tão próximo do centro urbano, mas, contraditoriamente, um ponto cego da cidade.
Além da pintura de Dona Albertina, o projeto assinado pela artista visual Mariana Lúcio produziu sete pinturas em telas feitas em spray e estêncil. Para produzir os quadros que retrataram nove mulheres marisqueiras da Ilha de Deus, a artista paulista mergulhou profundamente na realidade da população. Chegou a morar uma semana na casa de moradores do local. “Aprendi a catar marisco com elas, fazer caranguejo. Queria estabelecer um vínculo real”, lembra. Os retratos produzidos por Mariana ganharam uma exposição no Sesc Casa Amarela, que pode ser visitada até 9 de março.
As biografias das mulheres que ilustram as telas, assim como a de Dona Albertina, contam a própria história da comunidade que nasceu à beira do manguezal e tira seu sustento da maré. “Aqui nada anda sem as mulheres. Estamos sempre na linha de frente de todas as conquistas. Foi com a luta da gente que conseguimos, por exemplo, que a prefeitura construísse a ponte na entrada da Ilha. Antes tinha que atravessar de barco”, lembra Érica de Paula (42) se referindo à ponte de concreto que ganhou o nome de Vitória das Mulheres e é parte de um projeto de urbanização.
Érica mora na Ilha de Deus há dez anos com o filho, que hoje tem 19 anos. Ele vai para a maré pescar o sururu, enquanto ela se dedica à limpeza do produto. Sem interromper o hábil trabalho de separar o molusco da casca, ela fala sobre sua liderança na comunidade. “Não sou de associação comunitária nem nada, mas todas as vezes que tem problema vou resolver, por isso me considero um símbolo das mulheres daqui”, diz, comentando o fato de estar entre as retratadas na exposição.
As mãos hábeis das catadoras de mariscos e sururu não param nem por um momento porque elas sabem o valor desse trabalho árduo. Muitas vezes é preciso um dia inteiro debulhando os frutos do mar para conseguir três quilos do produto, vendido ao preço máximo de R$ 10 o quilo. Sentada em uma calçada perto do mangue, Roberta Maria Fernandes (48), conhecida pelos moradores como Obede, conta que aprendeu a catar sururu aos 10 anos. “Meus pais catavam, meus avós também”, recorda.
As marcas de corte nas mãos de Obede revelam a dureza de sua rotina, que começa cedo e muitas vezes se estende até o fim do dia. “Essa sempre foi minha vida. Até trabalhei em casa de família, mas não deu certo e voltei pra maré. Nunca imaginei que iam fazer uma pintura minha. Quando ficou pronto eu fiquei orgulhosa, chamei todo mundo para ver”, narra.
Do ponto onde Obede está vê-se nitidamente, do outro lado do rio, o shopping RioMar, um local que apesar de próximo representa, para a maioria dessas mulheres, um ambiente hostil. A mesma impressão se revela quando elas respondem que não frequentam os restaurantes chiques de Boa Viagem, nos quais o sururu catado na Ilha é vendido a preço de ouro. A jovem catadora Gleicy Kelly Silva (26), também participante do projeto, acha injusto que o trabalho dela seja tão mal remunerado. “Ganho pouco e não fico nem como o dinheiro todo, porque ainda pago uma parte para o pescador que vai buscar o sururu na maré”, conta. Ela mesma não desce para a maré porque é mãe solteira e precisa cuidar do filho de cinco anos.
Tradição e renovação
Pescadeira mais antiga da comunidade, Maria de Fátima da Silva (56) é uma das poucas mulheres da Ilha a sair com os homens para pegar o produto na maré. “Fui a primeira, faço isso há 48 anos. Eu mergulhava para buscar o sururu, agora só pego apenas no raso”, revela, dizendo que o corpo todo marcado de ostras já não aguenta mais tanto esforço por conta da idade.
Maria aprendeu a ser pescadeira com os pais. A mãe morreu quando ela era pequena e o pai criou sozinho os filhos que nem ela mesma sabe ao certo quantos são. “Todo mundo que mora aqui é uma grande família”, diz. O ofício que aprendeu nesse lar, a pescadeira transmitiu aos quatro filhos que criou quase sozinha com o dinheiro das pescarias. Todos seguiram os passos da mãe na maré.
Já as irmãs gêmeas Kerolyne e Karolyne (20) também trabalham na maré, mas sonham com uma vida diferente. As duas estudam e são envolvidas com atividades culturais dentro da própria Ilha. Kerolyne é dançarina no grupo Baquemaré, de danças afros e populares. “Meu talento é dançar”, diz. Já Karolyne é a DJ de um programa na rádio Boca da Ilha, da ONG Caranguejo Uça e produz vídeos. Para ela, participar do projeto também trouxe novos conhecimentos. “Gostei porque também aprendemos a fazer arte com estêncil”, comenta.
Dona Albertina, a mãe da Ilha de Deus
Entre as famílias que tiram seu sustento do mangue, Dona Albertina ou mãe Bel, como era conhecida, é uma figura mítica, quase uma santa. Em quase todas as casas encontra-se um morador que foi trazido ao mundo com a ajuda dela. Suas cantigas, seu coco de roda, suas rezas e conselhos fazem parte das lembranças dos que conviveram com a grande mãe da Ilha, falecida há aproximadamente 15 anos.
Manter vivo o legado de Dona Albertina para as novas gerações é um dos objetivos do projeto artístico. Por isso, ela foi a única participante a ter o seu retrato estampado em um muro da comunidade, no posto de saúde local. “Quando as crianças olham para o muro, sabem quem foi ela. Ela é a própria Ilha de Deus”, reconhece a artista Mariana Lúcio.
A autora das obras diz que, no fim da exposição, os quadros serão devolvidos às participantes. “É uma forma de homenageá-las e lembrar que elas são importantes, que alguém percebe essa importância”, comenta. “Muita gente chega aqui com um olhar de cima, querendo oferecer um saber novo. Mas para mim é uma troca. O que eu fiz foi porque eu vivi e aprendi com elas, elas são as artistas do cotidiano”, considera.
Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).