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Crédito: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
O pagamento do auxílio emergencial não basta para explicar a manutenção da popularidade de Jair Bolsonaro e o empenho dos seus apoiadores em defender um governo que, para muitos, seria indefensável. Qualquer análise sobre o resistente apoio de parte da população ao presidente precisa considerar a atuação cotidiana da máquina de desinformação e informações falsas impulsionadas pelo chamado “gabinete do ódio” bolsonarista.
Pesquisadores e profissionais que trabalham diariamente com o tema asseguram que não há exagero em atribuir boa parte do apoio popular de Bolsonaro às informações falsas, muitas vezes espalhadas pelo próprio presidente, seus filhos, ministros e parlamentares de sua base.
Depois da invasão do Congresso norte-americano pelos seguidores de Donald Trump, ficou impossível subestimar o peso que a desinformação passou a ter na definição dos rumos das sociedades.
Com o episódio ainda em andamento, transmitido pelas televisões de todo o planeta, vários especialistas no assunto dos Estados Unidos já o interpretavam como “a culminação do impacto da desinformação na política americana”, como na matéria do site Poynter, publicada na tarde de 6 de janeiro. No texto, o diretor da International Fact-Checking Network, Baybars Örsek, afirmou que “não é a primeira vez no mundo onde as massas obstruem um processo democrático, mas pode ser o primeiro alimentado por teorias da conspiração em tal escala”.
Ao mesmo tempo em que usam o termo “globalista” para atacar as organizações multilaterais das Nações Unidas, os extremistas de direita globalizaram a disseminação de informações falsas e a distorção de fatos. As conexões internacionais da rede de desinformação do bolsonarismo são facilmente identificadas pelos jornalistas brasileiros que atuam com checagem de informações.
Tai Nalon, diretora executiva e uma das fundadoras do site Aos Fatos confirma que “vários tipos de desinformação são importados de movimentos radicalizados de outros países. O uso de narrativas falsas para fins políticos também não é uma particularidade das democracias disfuncionais deste século. Porém, como hoje as ferramentas de comunicação têm alcance global, com Facebook, Twitter, WhatsApp e YouTube funcionando de maneira similar em quase todos os países do mundo, as estratégias de desinformação também são bastante parecidas”
Para o jornalista Sérgio Ludtke, editor do Projeto Comprova, “alguns grupos se conectam com redes internacionais, mas outros provavelmente perseguem redes internacionais somente para copiar ou criar mais facilmente conteúdos”. O Comprova articula dezenas de veículos de comunicação cujos profissionais atuam de maneira colaborativa investigando declarações, especulações e rumores que estejam ganhando fôlego e projeção na internet, conforme a explicação em seu site.
A atuação em rede global não envolve apenas adeptos de Trump e Bolsonaro. A rede de desinformação do presidente russo Vladimir Putin, por exemplo, é direcionada ao leste europeu.
Os conteúdos disseminados nos países vizinhos à Rússia são semelhantes àqueles usados por norte-americanos e brasileiros, porém com uma diferença curiosa: no lugar de afirmarem que o coronavírus é chinês ou que foi criado num laboratório na China, o russos repetem que o vírus é americano e foi criado por empresas dos Estados Unidos. Na República Tcheca, um grupo de voluntários atua de maneira coordenada para combater e desmentir a desinformação russa.
Além da geopolítica, a cultura local também influencia a adaptação da desinformação que o tornam mais aceitáveis pelo público de cada país. Junto com outros checadores da América Latina, a Agência Lupa sistematizou uma base de dados que tornou possível traçar o caminho da desinformação sobre coronavírus no mundo.
De acordo com Natália Leal, diretora de Conteúdo da Lupa, foi possível “mapear que no Brasil no primeiro momento começou a circular que chá de jambu, que é muito específico da Amazônia, curava covid, enquanto que na França circulava que a cura seria o queijo Roquefort e, na Argentina, o vinho”.
O derrame cotidiano e intenso de conteúdo na internet tem o objetivo claro de perpetuar o clima de terceiro turno eleitoral no país. Esta é a interpretação de Rogério Tineu, pesquisador no Labô, o Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “A espinha dorsal da estratégia de comunicação de Bolsonaro é a de manter sua imagem não como um presidente da República, mas de candidato ad eternum até 2022, nunca saindo do palanque”, afirma Tineu, que é doutor em Ciências Sociais.
O pesquisador percebe uma coordenação clara entre aquilo que Jair Bolsonaro fala para seus apoiadores no famoso “cercadinho” e o conteúdo falso disseminado nas redes sociais. “Aquelas falas são as micro ações de comunicação que compõem a estratégia maior. Ele já sai do Planalto sabendo o que vai dizer. Por vezes, como ele é um político muito intuitivo, ele improvisa e aqueles que coordenam sua comunicação se adaptam e vão criando os memes. É um processo de memeficação da política”, acredita.
O resultado mais palpável do clima de campanha eleitoral seria a manutenção do apoio ao presidente nas pesquisas de opinião em um patamar que inibe o andamento dos pedidos de impeachment. “Não tenho dúvidas que uma coisa está relacionada a outra”, afirma o pesquisador Ivo Henrique Dantas, do Observatório de Mídia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Dantas participa do projeto Coronavírus em Xeque, que monitora boatos, farsas e mentiras sobre a covid-19. Durante 2020, ele identificou que a desinformação vem em ondas, sempre em sintonia com a politização das questões sanitárias por Bolsonaro. “Quando veio, o lockdown, a desinformação era sobre economia e vidas. A medida que os estados começaram a liberar o comércio, o isso desapareceu e deu lugar à desinformação sobre máscaras e vacinas”.
O pano de fundo disso tudo, segundo o pesquisador pernambucano, sempre foi manter vivo o tema da reeleição de Bolsonaro nas bolhas de seus apoiadores. “Desde que janeiro de 2019, os governistas só falam em 2022. É contínuo”.
Enfrentar as “ondas” citadas por Dantas faz parte do dia a dia de quem checa notícias e postagens. Tai Nailon explica que “a desinformação sai de pequenos grupos de apoiadores e ganha capilaridade nas redes. O perigo da desinformação reside exatamente aí: o poder simbólico da autoridade política serve como catalizador. A longo prazo, essa torrente de informações falsas cria uma espécie de narrativa uniforme nas redes, dificultando o acesso do público menos radicalizado ao contraditório autêntico”.
Na condição de candidato permanente, o presidente inflama as plateias contra e a favor, mas evita que as políticas públicas do seu governo entrem no debate. “Olhamos o absurdo que ele fala, olhamos aquele monte de patacoada, mas não olhamos a cloroquina superfatura estocada nos depósitos do Exército”, ilustra Natália Leal, da Lupa.
Há poucos pontos de consenso quando os especialistas são questionados sobre a maneira (ou maneiras) de vencer a máquina da desinformação. Um desses consensos é que a aprovação de novas leis no “calor do momento” não resolvem nada. Natália Leal, por exemplo, não vacila: “o Projeto de Lei 2630, a chamada lei das Fake News já nasce morta. Não é colocando restrições no papel que vai se resolver, pois isso não mexe com a estrutura.
Sérgio Ludtke, do Comprova, acrescenta que “não acredito que a solução seja por mais regulação ou judicialização. Há muitas armadilhas nesse caminho e sempre teremos o risco de trazer algum tipo de censura de volta. É um universo complexo demais para soluções simplistas”. Apesar desse posicionamento, ele enxerga algumas virtudes no inquérito aberto no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) para investigar a rede de desinformação que atuou contra o próprio Tribunal: “tem um caráter provocativo de levar a discussão sobre o tema para a sociedade”.
Natália também acredita que o inquérito pode contribuir para reduzir os danos, “pois o modo de operar a desinformação que pode se configurar como organização criminosa e para identifica-la é preciso investimento em inteligência policial capaz de investigar essas redes, que atuam com foco no ganho financeiro e a partir da desinformação em massa, driblando regras dos termos de uso das redes sociais”. Sua colega Tai Nalon, contudo, avisa que “não dá para conter desinformação de forma unilateral. Seria esperar demais que a Justiça resolvesse sozinha esse problema”.
Para o pesquisador Ivo Dantas, não há “solução mágica” disponível para enfrentar as redes de informações falsas. “Estamos falando do perfil psicológico de pessoas que querem acreditar nesses conteúdos; estamos falando de plataformas de redes sociais que lucram com isso sem qualquer regulamentação; estamos falando de atores políticos que têm papéis estratégicos. Além disso, a democracia liberal está no limite e suas instituições vivem uma imensa crise de credibilidade”.
O contexto brasileiro, com as empresas de mídia e a educação superior em frangalhos, tornam ainda mais difícil uma solução, principalmente quando não há espaço para um verdadeiro diálogo. “O debate público está interditado, mas não apenas pela máquina de memeficação da direita. O cancelamento praticado por parte da esquerda, que não aceita qualquer coisa que não seja o alinhamento automático a todas às suas posições, também interdita o debate, que precisa ir além da banalidade de direita versus esquerda”.
Tineu diz não saber qual a saída, mas que ela passa por “mais educação, mais jornalismo, mais política e mais justiça”.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.