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“Não vai ser fácil para o governo atacar de forma simplista a ciência e a educação brasileira”, diz Ricardo Galvão

Helena Dias / 23/08/2019

Em entrevista à BBC, ainda no início do mês, o ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, afirmou que as exportações no Brasil seriam “violentamente afetadas” caso o instituto parasse de medir o desmatamento. Mal sabia o professor e pesquisador que a sua declaração ganharia ainda mais corpo algumas semanas depois. A repercussão internacional dos incêndios que acometeram a Amazônia nos últimos dias têm colocado o presidente Jair Bolsonaro (PSL) na berlinda. Paris e Irlanda ameaçaram acordos feitos entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, se o Brasil não proteger o meio ambiente.

Nesse cenário, vozes como a de Ricardo tomam mais força e alcançam mais pessoas interessadas em entender o papel da ciência na garantia da preservação do meio ambiente.

Antes mesmo das 15h30 dessa sexta-feira (23), uma fila se formava na entrada do auditório do Centro de Tecnologia e Geociências (CTG) para ver a palestra do ex-diretor sobre o monitoramento dos biomas brasileiros que é realizado pelo Inpe. Uma mulher, próxima a porta, comentava que ele foi “corajoso” na forma de lidar com o governo e em todo o processo que antecedeu à exoneração, sacramentada no dia 2 de agosto. O espaço lotou com professores e alunos, sentados nas cadeiras e no chão, assim como de pé encostados nas paredes.

Ao pegar o microfone, ele foi muito aplaudido. Brincou afirmando que, desde a sua saída do instituto, mais pessoas estão sabendo o que de fato faz o Inpe, órgão do qual fez parte de 2016 a 2019 e para o qual ainda tem que prestar algumas orientações para que os trabalhos continuem em andamento. O desligamento de Ricardo Galvão foi anunciado por ele mesmo, depois de uma conversa com o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), Marcos Pontes. O mesmo ministro que, segundo o ex-diretor, ignorou alertas sobre a falta de diálogo entre o Inpe e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

Fila na entrada do auditório do CTG, da UFPE, para a palestra de Ricardo Galvão. Crédito: Helena Dias/MZ Conteúdo

Fila na entrada do auditório do CTG, da UFPE, para a palestra de Ricardo Galvão. Crédito: Helena Dias/MZ Conteúdo

O Inpe é a principal fonte de estudos e monitoramento de desmatamentos da Amazônia e dos diversos biomas brasileiros. No início do ano, Salles questionou dados fornecidos pelo instituto e ameaçou contratar uma empresa privada para substituir o órgão. Os dados demonstravam aumentos significativos de desmatamento e o presidente Jair Bolsonaro acusou o ex-diretor de trabalhar para ONGs protetoras do meio ambiente. ONGs estas que o presidente também acusou terem causado as queimadas na mata amazônica nos últimos dias. Hoje, países europeus cobram uma resposta eficaz do chefe de estado na defesa do meio ambiente e não é nenhuma surpresa, já que o Inpe havia sinalizado crescentes ofensivas contra a Amazônia.

Junto ao Programa Fora da Curva 99,9 FM, da Rádio Universitária da UFPE, a Marco Zero realizou uma entrevista com Ricardo Galvão, que antecedeu sua palestra na instituição pernambucana. Ele falou sobre as consequências de médio e longo prazo dos incêndios ocorridos na Amazônia e analisou o posicionamento do Brasil diante da situação. Leia a entrevista:

Como está a sua atuação profissional depois da exoneração?
Eu já estava no Inpe como diretor comissionado. Esse é um sistema que tem o Governo Federal, que pode solicitar servidores dos órgãos estaduais para exercer uma função federal. O que significa isso na prática? Eu continuei sendo professor do Instituto de Física da USP, meu salário continua sendo pago pelo Instituto de Física da USP, o governo retorna o meu salário. Eu só recebia lá (no Inpe) o equivalente a verba que seria pela representação de diretor. Sendo exonerado, voltei à USP. Vou voltar às atividades que eu tinha, tem um laboratório instalado lá e eu retornarei continuando minhas pesquisas científicas e dando aula. Então, de certo ponto, do ponto de vista profissional, é até um certo ganho. Porque eu volto a fazer ciência e paro com a parte administrativa que tomava grande parte do tempo. Agora, é triste porque eu tinha uma esperança de mais um ano ficar no Inpe e com propostas de várias implementações. Uma delas, por exemplo, e que isso me deixou um pouquinho magoado, é que nós temos um programa de colaboração com a China de desenvolvimento de satélites. Satélites, cujas montagens foram feitas na minha gestão, vão ser lançados agora em dezembro. Aquela esperança de ir e ver o fecho desse trabalho que foi muito demandante. Isso dá um pouco de tristeza nesse ponto de vista, mas na minha atuação científica eu retorno ao que já fazia antes.

Existem outras consequências a médio e longo prazo se o governo não tomar uma atitude responsável em relação ao desmatamento na Amazônia? Algo que ainda estejamos desavisados?
A longo prazo, o mais preocupante para o Brasil e para o mundo, é que tem vários estudos científicos que mostram que se a Amazônia toda, não só a brasileira, tiver um desmatamento que ultrapasse um limiar que alguns estudos dizem de 25% e outros dizem 40%, ai atingindo um ponto de não retorno. Pois a floresta vai involuir para uma savana e isso é extremamente preocupante para o mundo, porque nós tiraríamos a principal ferramenta que nós temos para controlar o aquecimento global, que principalmente acontece devido a gases do efeito estufa. O ministro Onyx Lorenzoni falou que a Amazônia é o pulmão do planeta, mas não é bem o pulmão. Não pela produção de oxigênio que a Amazônia é responsável, é mais absorção de carbono. Então, no crescimento da árvore nós temos a maior armadilha de carbono que podemos ter. Com isso, nós diminuímos o percentual de gás carbono da atmosfera e isso faz um dos efeitos da Amazônia além da sua grande biodiversidade.  Continuando sobre esse efeito a longo prazo, em quanto tempo isso pode acontecer se o governo não tomar nenhuma medida? Na Amazônia, é estimado que na descoberta do Brasil nós tínhamos quatro milhões de quilômetros quadrados. Desde 1500 até agora, nós desmatamos cerca de 20%. Agora, Amazônia brasileira que eu tô falando. Só que de 1988 para cá nós desmatamos cerca de 10%, então a velocidade de desmatamento foi muito grande. Nós já estamos vendo efeitos práticos disso. Em todo sul onde a Amazônia foi desmatada, a estação seca já está durando mais do que em outras regiões. Os dados científicos mostrando isso são muito sérios, muito preocupantes. Os leigos que não tem ideia, “não, corto uma árvore daqui”, não estão sabendo com o que estão mexendo. Outra coisa importantíssima é que todo o nosso ciclo pluviométrico, as chuvas que caem no Centro-oeste responsável pelo nosso agronegócio no Sul do país e até na Argentina, depende da umidade que vem da Amazônia. É fácil um leigo ver isso. Basta olhar no globo terrestre e olhar na região que está a Amazônia o que é que tem nos outros lugares. Todos são desertos. Por que a Amazônia não é  deserto? Por causa dos andes. Por causa das circulações atmosféricas e o vento que vinha do mar, com o passar dos séculos batendo nos andes, foi voltando e tornando úmida a terra, criou o rio e cresceu a floresta. Toda umidade da Amazônia é um sistema complexo, fechado, mas instável, porque ela é produzida pelas próprias árvores em volta. E isso não basta uma árvore fazer, são necessárias muitas árvores. Por isso que tem esse fator de 25 a 40%. O efeito de curto prazo é econômico. O nosso maior ponto de exportação é o agronegócio, porque nós produzimos pelo agronegócio. E ai eu estou falando do agronegócio bem intencionado. Nós conseguimos avançar substancialmente desde 2008 com a moratória da soja, que obrigou a não plantar mais soja em áreas de mata nativa desmatada. Só obrigar plantar em áreas já degeneradas ou pastagens. Desde aquilo, nós aumentamos substancialmente a nossa produção e exportação de soja sem avançar em mata virgem. Isso que deu ganho ao Brasil de começar a aumentar cada vez mais e serem aceitas pelo mundo as nossas exportações. Só que nós temos uma enorme competição. Vocês vão ver o que vai acontecer nas exportações do Brasil no ano que vem. Os nossos competidores são enormes, basta eles começarem a dizer que os nossos produtos estão vindo das florestas queimadas ou desmatadas, mesmo que não seja verdade. A queda da exportação vai ser muito grande. A curto prazo, a consequência disso pode ser terrível para nós.

A sua exoneração e a forma como o governo tem lidado com os dados sobre desmatamento do Inpe acabam sendo um ataque muito grande a ciência brasileira. Que reação você acredita que os pesquisadores e os cientistas, enquanto classe, deviam estar tomando?
Esse é um ponto bastante relevante, porque o governo brasileiro atual não é muito uniforme. Uma parte do governo entende o valor da ciência, incentiva o progresso científico e trabalha por ele. O próprio ministro Marcos Pontes é muito bem formado. O ministro da defesa, Almirante Bento, e tem vários outros que tem a noção correta da ciência e da importância disso. No entanto, existe um núcleo no governo muito próximo do presidente Bolsonaro que tem uma atitude obscurantista e autoritária. Infelizmente, essa atitude também está acoplada com uma visão preconceituosa que a comunidade científica brasileira está dominada pela esquerda e que ela se comporta sempre contrária ao governo. O que não é verdade de forma nenhuma. O próprio ministro Salles, num debate que eu tive no programa Painel com ele, fez essa acusação. Isso que eu acho que está sendo muito prejudicial para o país. Se essa visão predominar, isso é muito prejudicial. E foi uma das razões, porque eu estou acompanhando o governo desde que começou em janeiro, que eu tenho visto claramente essa maneira de se comportar. Que me preocupou e que me fez dar aquela resposta contundente. Nós não podemos voltar atrás agora, temos que marcar nossa posição. O resultado disso, o que me encantou muito, é que a resposta da comunidade científica internacional foi espetacular. Recebemos apoio de todos os lugares, recebi mensagens muito emocionantes da NASA, da Agência Espacial Europeia, da China. Colocaram realmente o governo como o bandido da história, não há dúvidas. Não vai ser fácil para o governo, diante desse movimento, atacar de forma simplista a ciência e a educação brasileira.

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A palestra dada por Ricardo Galvão também foi transmitida no pátio do CTG, da UFPE. Crédito: Helena Dias/MZ Conteúdo

Qual a postura que você acredita que o Brasil deve ter diante das manifestações internacionais?
A primeira, é mudar completamente o discurso que o presidente Bolsonaro vem mantendo. Se vocês viram a entrevista coletiva no dia 19 de julho, em que me acusou e acusou o Inpe, ele agiu de uma forma muito agressiva e tosca nos questionamentos da imprensa internacional. Você reagir e dizer “bom, a Amazônia é nossa e nós podemos controlar e fazer o que quiser com ela porque outros países fizeram” é muito infantil. Eu vou desvincular isso da parte política partidária, porque o Lula usou o mesmo argumento. Em 2008, o Lula usou esse mesmo argumento de que “a Amazônia é nossa e nós temos que controlar”. Eu sempre falo que a ciência brasileira, nós cidadãos preocupados com o país, quando vemos questões básicas como essa civilidade, não podemos deixar que nossa visão política partidária embace nossos olhos. Tem questões de civilidade no país que é para contestar seja quem for, de forma muito forte. Quem tem que defender o país somos nós. Quando a Europa foi desmatada, começou quando houve a migração humana da África para a Europa. Era outro conhecimento, eram outras coisas. Precisavam daquilo para sobreviver. Nós vamos voltar à idade da pedra? É isso que o presidente está propondo? Não tem menor sentido. A outra coisa importante, quando ele fala da Amazônia brasileira, é que a Amazônia não é só brasileira. Temos Peru, Equador, Colômbia, Venezuela e Bolívia. Todos têm parte da Amazônia e toda a Amazônia tem que ser preservada. Ontem de manhã eu dei uma entrevista à uma rádio colombiana. Uma atitude até muito diferente do que eu tenho visto aqui. A pergunta deles foi o que nós devemos fazer para forças os nossos governos a agirem junto com o governo do Brasil para preservar a Amazônia. Eu acho que as populações das regiões amazônicas já estão conscientes disso. O ministro Salles tem razão quando fala que não basta não ter desmatamento, mas criar viabilidade econômica aos povos da Amazônia. Concordo com isso. Mas, essa viabilidade econômica tem que estar baseada na maior riqueza da Amazônia. Qual é a maior riqueza da Aamazônia? É a sua biodiversidade.

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Helena Dias

Jornalista atenta e forte. Repórter que gosta muito de gente e de ouvir histórias. Formou-se pela Unicap em 2016, estagiou nas editorias de política do jornal impresso Folha de Pernambuco e no portal Pernambuco.com do Diario. Atua como freelancer e faz parte da reportagem da Marco Zero há quase dois anos. Contato: helenadiaas@gmail.com