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Negligência e sigilo do Governo Bolsonaro expõem saúde dos voluntários que limpam óleo das praias

Raíssa Ebrahim / 23/10/2019

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

A omissão do Governo Bolsonaro está afetando a saúde de milhares de voluntários que têm feito o árduo trabalho de limpeza do litoral do Nordeste. E o pior ainda pode estar por vir, já que o sigilo das análises laboratoriais do óleo não permite saber exatamente a que substâncias as pessoas estão sendo expostas há quase dois meses. A cada dia, aumentam os relatos de sintomas como dores de cabeça, náuseas, tonturas, ardor nos olhos, dermatites, insônia, problemas respiratórios e queimaduras.

As características são bem parecidos com os relatos de outros grandes desastres ambientais com óleo em locais como Espanha, golfo do México, Reino Unido e França. A grande diferença é o aparato governamental para proteger a população. Aqui, os voluntários se expõem ao material tóxico sem Equipamentos de Proteção Pessoal (EPIs) adequados porque precisam se virar como podem – muitas vezes a pesca é a única fonte de sobrevivência. Em outros grandes desastres, os responsáveis pela limpeza parecem tão protegidos quanto astronautas: eles trabalham cobertos da cabeça aos pés, com luvas e botas resistentes, máscaras de carvão ativado e óculos de proteção.

A comparação das imagens é chocante e aponta novamente para o lado mais perverso da negligência do Governo Federal com o Nordeste:

ESPANHA - ITAPUAMA

“Não era para a população estar nas praias retirando esse óleo, era para ter equipes de profissionais do governo federal junto com empresas especializadas em retirada de resíduos. Mas as pessoas estão desesperadas, precisam daquele ambiente. Então estão indo para salvar o meio ambiente e a única fonte de recursos econômicos que elas têm, no caso de pescadores e da população mais carente que vive da costa”, lamenta Sidney Marcelino Silva, do movimento Salve Maracaípe, o principal articulador da sociedade civil nos trabalhos de limpeza e orientação nas praias de Pernambuco.

O próprio ativista sentiu alguns sintomas. Laís Araújo, do coletivo Xô Plástico, que também vem atuando nas praias, conta que a irmã sofreu com problemas de náusea, coceira e dor de cabeça: “ela nem veio hoje para ajudar. Os médicos recomendaram tomar muita água e evitar a exposição”.

A médica Maria Renda Cadorin cita que estudos internacionais demonstram que, a médio e longo prazos, a população exposta ao desastre com óleo em outros países sofreu sérias consequências, a exemplo de mulheres que desenvolveram infertilidade, crianças com retardo, casos de câncer, hepatite e problemas renais. “Tudo isso depende do tempo e do tipo de exposição, se foi contato, inalação ou ingestão. Estamos ainda pesquisando, mas o fato é que estamos no escuro”, afirma. Elademonstraainda preocupação com os EPIs que estão sendo distribuídos, são muito simples para a gravidade do caso.

Maria faz parte do grupo Monitora Saúde, criado em Pernambuco especialmente para concentrar informações, promover estudos, orientar as pessoas e construir uma base de dados com o que está sendo coletado. “Estamos orientando todos a exigirem que seja feita a notificação compulsória para termos informações e dados para saber como a população está sendo afetada”.

Um estudo publicado em 2010, tema de matéria da revista Exame naquele ano, aponta que os marinheiros que participaram das operações de limpeza do maior desastre com óleo da Espanha, o naufrágio do petroleiro liberiano Prestige, em 2002, apresentaram alterações de DNA e problemas pulmonares, mesmo que não tenham sido encontradas anomalias na época da pesquisa. Quem participou da limpeza apresentou uma frequência maior de problemas respiratórios e alterações cromossômicas nos linfócitos, que podem causar câncer.

O tweet deGerald Graham, consultor canadense especializado em derramamento de óleo, diz “este vídeo de remoção de óleo das praias brasileiras mostra como NÃO limpar após um derramamento. A resposta a derramamentos marinhos é um trabalho perigoso, exigindo treinamento e equipamentos adequados”.Graham é consultor do Banco Mundial, da OCDE, da Unesco, da FAO, da União Européia e da Agência de Desenvolvimento do Canadá e da alemã GTZ. Na avaliação dele, a situação no Brasil é um exemplo de quando “a cura é pior do que a doença”.

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Falta de informação dificulta avaliações

Ainda não é possível dizer ao certo se esses efeitos também serão vistos no Nordeste do Brasil. Mas as probabilidades são grandes. “O problema é sério, precisamos ter a composição desse piche. Por se tratar de petróleo bruto, há gases voláteis que tendem a ir embora. Mas ficam componentes, como, por exemplo, o enxofre, que reage e forma ácido, podendo causar danos. Além disso, materiais pesados podem fazer parte dessa composição”, explica Sérgio Peres, professor da Universidade de Pernambuco (UPE) no Departamento de Engenharia Mecânica, onde há um laboratório de combustíveis e energia.

“É complicado fazer uma análise sem saber os componentes”, reforça. Ele irá analisar uma amostra do piche nos próximas dias para verificar o grau de contaminação, inclusive analisando o ph da água ao redor do óleo.

Através de áudio que está circulando no WhatsApp, a professora do departamento de engenharia ambiental da Universidade Federal Rural de Pernambuco Soraya El-Deir detalha que, além da parte volátil do material e da sobrenadante, que chega à costa, há o material que se acumula na coluna d’água e desce até o solo marinho, a parte mais abissal. Ele é um hidrocarboneto com componentes altamente tóxicos, dentre eles o benzeno.

Há uma resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), a 357, que estabelece a quantidade de benzeno que conseguimos suportar, de 0.051 a 0.7 mg/L. Como não se sabe ainda detalhes sobre essa concentração, Soraya recomenda suspender banhos e idas às praias afetadas. Também aconselha suspender a alimentação de pescados marinhos porque as substâncias tóxicas podem entrar na cadeia alimentar e se acumular no pescado.

Recurso para pesquisa

O Salve Maracaípe defende a criação de um fundo federal de apoio a pesquisas para apontar os impactos da tragédia. Sidney avalia ainda que o Governo Federal segue omisso em não pedir ajuda internacional e comemora o fato do Governo do Estado ter se aproximado da entidade na elaboração das estratégias locais. O governador Paulo Câmara (PSB) divulgou hoje um edital de R$ 2,5 milhões para pesquisas sobre toxidade do óleo encontrado no litoral do estado.

“Mas ainda assim, é muito difícil. Não temos todas ferramentas, os aparatos tecnológicos nem EPIs suficientes, a situação é bastante precária. O Governo Federal tem enviado as Forças Armadas sem proteção, sem equipamentos, eles estão usando o que está chegando de doações, que vem sobretudo da rede orgânica de ajuda. Sem contar que a demanda é grande e a oferta é pequena, os EPIs precisam vir de outras regiões”, acrescenta Sidney.

A Marco Zero Conteúdo conversou com os voluntários de saúde que estão em Pedra de Xaréu, no Cabo de Santo Agostinho, litoral norte do estado e o grupo relatou que segunda (21) foi o dia mais crítico dos atendimentos. Uma pessoa chegou a desmaiar por conta de um processo alérgico. A ambulância foi cedida pela prefeitura do município e dois técnicos de enfermagem, dois enfermeiros e um médico estão atuando das 9h às 18h.

(crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

(crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

O Centro de Assistência Toxicológica de Pernambuco (Ceatox), órgão responsável pela esclarecimento de possíveis dúvidas da população e dos profissionais de saúde sobre os casos de intoxicações exógenas e acidentes com animais peçonhentos, informou não ter recebido registros de intoxicação por causa do evento até o momento.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com