Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Nem toda bandeira é vermelha na luta pela moradia

Inácio França / 03/05/2018

A fumaça e a poeira dos escombros ainda pairavam no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, quando as chamas das primeiras notícias falsas começaram a se espalhar. Os ventos das redes sociais ajudaram a espalhar o incêndio, mas foi a mídia tradicional que ateou o fogo das fake news, usando os mecanismos de manipulação de informação de sempre.

Inicialmente, sem qualquer preocupação em apurar quem seriam os responsáveis pelo desconhecido movimento que cobrava aluguéis dos sem teto, repórteres saíram à caça de Guilherme Boulos. Sob a justificativa dele ser líder do sem-teto, a imagem do líder nacional do MTST foi imediatamente associada à tragédia com a qual não tem vínculo algum.

Horas mais tarde, um colunista do portal Uol, por desinformação ou desonestidade, generalizou a questão ao extremo de comparar a luta social pela moradia às milícias do Rio de Janeiro. Em seguida, matérias e artigos responsabilizavam os moradores do edifício destruído pela tragédia que mudou suas vidas.

Bastaram 24 horas de apuração jornalística para identificar quem é quem no universo nacional da luta pela moradia tanto em São Paulo quanto em Pernambuco.

Em São Paulo, o ex-vereador paulistano e professor de Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Nabil Georges Bonduki, é especialista na questão do déficit habitacional e conhece como poucos a dinâmica dos movimentos sociais e seu relacionamento com as instituições. Em entrevista por telefone, ele afirmou que qualquer gestor público precisa saber diferenciar os movimentos sérios e aqueles que transformam o problema em meio de vida.

Ele relata que, em São Paulo, o movimento começou nos anos 1980, com o Fórum dos Cortiços. “Ao longo desse período, virou bandeira de luta, mas também virou oportunidade de negócios, tanto por parte do crime organizado, que se infiltrou em vários cortiços, quanto por parte de estelionatários que controlam uma ocupação extorquindo dinheiro dos seus moradores”, conta.

Bonduki sugere que o grau de organização numa ocupação dá ideia do quanto é sério um movimento: “Nem toda ocupação tem motivação política, mas torna-se ato político porque serve como denúncia para a questão da habitação e do abandono de imóveis públicos. Um movimento sério politiza qualquer atividade numa ocupação, dividindo tarefas e responsabilidades coletivas. Esse negócio de lixo jogado no poço do elevador não existe em uma ocupação comandada por militantes comprometidos”.

O professor, que também é colunista do Uol, nunca tinha ouvido falar do LMD (Luta por Moradia Digna) ou do MLSM (Movimento de Luta Social por Moradia). Esses “movimentos” sequer faziam parte das 41 entidades que, divididos em três chapas rivais, participaram da última eleição do Conselho Municipal de Habitação, em maio de 2016. Também não eram conhecidos por nenhum dos ativistas sem teto ouvidos “em off” pela Marco Zero.

As autoridades têm a obrigação de identificar e avaliar o grau de risco existente em cada ocupação. É o que afirma Bonduki, explicando que “ocupações em antigos prédios residenciais ou hotéis tendem a apresentar risco menor, pois os movimentos organizados costumam fazer serviços de manutenção assim que entram nos imóveis”. Em edifícios comerciais, o risco é bem maior, pois são necessárias muitas improvisações para que venham a servir de moradia.

Quem é quem

Bonduki listou uma série de siglas que ele respeita. A sopa de letrinhas também dá ideia da diversidade desse ambiente, com diferentes matizes de métodos, ações e objetivos. Por ordem alfabética, a lista de Bonduki inclui:

moradiacolage

  • CMP (Central de Movimentos Populares): tem vínculos fortes com o PT e pretende abranger mais do que a luta por habitação, articulando-se com questões agrárias, pela previdência e de saúde.
  • Conam (Confederação Nacional das Associações de Moradores): Entidade vinculada ao formato mais tradicional das lideranças comunitárias, que se relacionam com instituições políticas com foco em demandas específicas. Atualmente é influenciada pelo PCdoB, mas o comando é definido em congressos periódicos e eleições.
  • FLM (Frente de Luta pela Moradia): Maior e mais atuante articulação de movimentos sociais de São Paulo. Segundo seu site, é resultado do “processo de mobilização popular que culminou em 1989 com os mutirões de auto-gestão”. Dialoga com todos os partidos de esquerda, principalmente PT e PSOL.
  • MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro): Uma das entidades que formam a FLM. Tem agenda própria e foi protagonista da ocupação de vários hotéis abandonados no centro de São Paulo, como o do hotel Cambridge, foco do longa-metragem Era o Hotel Cambridge, dirigido por Eliane Caffé e vencedor de oito prêmios em cinco festivais internacionais entre 2016 e 2017.
  • MNLM (Movimento Nacional de Luta pela Moradia): Articulação de amplitude mais nacional, também originada das grandes ocupações de terrenos baldios e prédios públicos no final dos anos 80. Nasceu com apoio da Igreja Católica e da ONG católica Cáritas. Tem laços com os setores do PT que vieram dos antigos Movimentos Eclesiais de Base.
  • MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto): O mais ativo e conhecido nacionalmente, também é o mais presente na periferia de São Paulo e nas regiões metropolitanas do País. Foi responsável pela icônica e vitoriosa ocupação ‘Povo Sem Medo’, em São Bernardo do Campo, com mais de oito mil famílias. Tem suas origens no MST.
  • UCL (União das Lutas de Cortiço e Moradia): Outro movimento paulistano, atua em parceria com cooperativas e instituições de Economia Solidária elaborando projeto de captação de recursos e de crownfunding para reformar e revitalizar prédios ocupados.
  • UNMP (União Nacional por Moradia Popular): Começou a ser articulada em Minas Gerais, Paraná e São Paulo a partir de 1989 por meio de coletas de assinaturas para o primeiro Projeto de Lei de Iniciativa Popular que criou o Sistema, o Fundo e o Conselho Nacional por Moradia Popular no Brasil.

Além desses, merece menção o MLB (Movimento de Luta nos Bairros, com atuação mais marcante em Pernambuco e mais tênue em São Paulo).

Os dois MTSTs pernambucanos

Em Pernambuco, o movimento mais presente e o único a fazer ocupações nos últimos anos é Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST liderado por Boulos. Segundo Rud Rafael, um dos seus coordenadores, o MTST se distingue dos demais movimentos por “atuar no território, a ocupação é uma forma de construção de referência nesse território, pensando a organização das famílias no lugar onde vivem e não apenas a luta por moradia. O objetivo é criar um instrumento de massas com base na organização da periferia”.

Em Pernambuco, também marcam presença o já citado MLB, influenciado pelo nanico Partido Comunista Revolucionário (PCR) que compõe a articulação nacional MNLM, que tem esboçado realizar ocupações n Grande Recife. E também tem o MTST-PE. Isso mesmo, outro MTST, instituição que, sob a liderança do pastor Marcos Cosmo, começou representando o movimento original no estado, mas por começar a cobrar mensalidades dos integrantes, acabou se afastando da articulação nacional. Para evitar confusão, o MTST liberou o uso parcial da sigla, desde que a bandeira sofresse pequenas modificações.

Em São Paulo, até o PSDB está na “luta”

Por ironia (ou maldade) do destino, em dezembro de 2017 o Largo do Paissandu foi cenário de um seminário para discutir a questão habitacional. As discussões aconteceram no auditório da Galeria Olido, a menos de 200 metros do edifício ocupado que desabou terça-feira, 1º de maio. Quem organizou o seminário foi a secretaria municipal de Habitação e o Movimento Popular, o MOP.

O MOP é um dos mais antigos movimentos pela moradia na Grande São Paulo, porém é uma iniciativa pessoal de um personagem messiânico, o teólogo e ativista dos direitos humanos Rosalvo Salgueiro. Militante do PSDB, Salgueiro defende que a luta pela moradia não pode “atropelar a cronologia do poder público, mas tem de ser feita em espírito de colaboração”. Na página oficial do MOP, o tucano declara ser seguidor da teologia da Libertação e fiel da Igreja Católica Apostólica Brasileira.

Ele não é o único filiado ao PSDB participando dos movimentos pela habitação e “moradia digna”. Ocupando um cargo comissionado no gabinete da liderança tucana na Câmara Municipal, João Bosco da Costa coordena a Associação de Defesa e Orientação ao Consumidor Contribuinte de São Paulo. Curiosamente, ele não junta seus esforços aos de Rosalvo e do MOP. Na última eleição para o Conselho Municipal de Habitação, os dois estavam em chapas diferentes. Rosalvo comandou uma chapa e Bosco aliou-se ao Movimento dos Sem Teto do Ipiranga, o MSTI.

Apesar da sigla, o MSTI não tem ligação com os movimentos de sem teto mais atuantes da capital paulistana: trata-se do movimento criado por Maksuel José da Costa, assessor do deputado federal Paulinho da Força, do partido Solidariedade. O MSTI é uma associação privada e sua atuação mais lembra a de um clube de serviços, promovendo shows, festas para crianças e festivais esportivos.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.