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Nova Russas (CE) – Na entrada do hotel em que a equipe da Marco Zero ficou hospedada em Nova Russas, no sertão de Crateús, no Ceará, há um mosaico com fotos antigas, em tons de sépia, que mostram um passado de pujança. São fotos de armazéns e caminhões cheios de algodão. Fundada na primeira metade do século XX, Nova Russas cresceu apoiada no plantio do algodão, que estampa até a bandeira da cidade.
Mas depois da abundância, veio a queda. A monocultura do algodão, o desmatamento e o uso massivo de agrotóxicos na luta contra o bicudo, um inseto que rapidamente devasta plantações, esgotaram a terra. No começo dos anos 2000 quase não havia mais plantações de algodão em Nova Russas.
Na comunidade de Irapuá, distante uns 20 minutos do centro da cidade, quase todo mundo é parente. Os nomes e os sobrenomes se repetem entre as pouco mais de 120 famílias que lá moram. E que por gerações viveram da agricultura, principalmente do algodão. Mas sem perspectivas de trabalho, muitos migraram para o Rio de Janeiro – onde ainda mora uma parte dessa pequena comunidade. Agricultores que foram trabalhar como porteiros, atendentes, motoristas em busca de uma vida digna.
Nos últimos anos, porém, muitos começaram a voltar para o sertão. E o motivo disso foi uma combinação de novos conhecimentos e de união, que passa por diferentes formas de convivência com o semiárido que a comunidade encontrou para não ter que deixar sua terra. Tem agricultura familiar, tem apicultura, quintais produtivos e artesanato.
Em 2008, a organização não-governamental Esplar levou para a comunidade o Projeto Dom Helder Câmara, que tinha como proposta retomar o plantio de algodão na comunidade. Dessa vez, de uma forma diferente. Não seria mais com a exploração da terra, nem com a monocultura, nem com o uso de agrotóxicos. Naquela época, a ong já tinha um projeto bem-sucedido com algodão agroecológico no município de Tauá, também no Ceará, que começou ainda nos anos 1990.
“Qual era o futuro da agricultura do jeito que a gente praticava? Porque a terra não aumenta. Irapuá tem 800 hectares. E o povo aumenta, né? Isso aqui era de um dono só. Hoje são 400 pessoas que vivem aqui. E o nosso sistema era de cortar e queimar depois, pra poder limpar o terreno e plantar mais. E aí plantava. Mas servia pra plantar no máximo dois anos, se a terra fosse boa. Se não fosse, era um ano só. No outro ano você tinha que abrir outro pedaço de terra. E assim ia acabando a terra”, lembra Vicente Carvalho Neto, um dos mais engajados na associação da comunidade. E um dos que foram e voltaram do Rio de Janeiro.
Quando o Esplar chegou por lá trazendo a ideia do plantio em consórcio – quando se planta mais de uma cultura em um mesmo terreno – os agricultores de Irapuá gostaram daquilo que ouviram. “Como já era uma preocupação da gente, por conta do esgotamento do nosso sistema de produção, a gente aceitou o desafio. E conseguimos mobilizar 30 agricultores, lá em 2008, e convencer que eles iam voltar a plantar algodão”, diz Neto.
Naquela época, ninguém mais cultivava algodão por lá. “Na cabeça da gente, o bicudo não deixava. E a gente conseguiu produzir naquele primeiro ano. Produziu bem. E se tornou a alternativa para um grupo de agricultores, hoje é a forma deles produzirem, e com o mínimo de agravamento ao meio ambiente”, diz.
Em Irapuá, as propriedades geralmente são pequenas, mas com agroecologia os agricultores conseguem fazer um uso muito produtivo das terras. Antônio Marques, conhecido como Antônio Evangelista, tem 74 anos e cultiva uma área com pouco menos de um hectare. “Planto algodão e, como se diz, os legumes da tradição: milho, feijão, jerimum, gergelim”, conta. Antes de começar na agroecologia, ele tinha desistido de plantar algodão. Isso porque um dos filhos, que o ajudava no roçado, passava mal com os pesticidas. “Era o que a gente conhecia para acabar com o bicudo”, lembra.
Foi por meio da assistência técnica que ele aprendeu que não precisava de agrotóxicos para plantar algodão. Era só fazer o plantio na época certa. Lá em Irapuá, os agricultores plantam o algodão do tipo herbáceo nas primeiras chuvas, que acontecem geralmente em dezembro ou janeiro. O bicudo só chega na plantação quando o tempo começa a esfriar, em maio. A esta altura, se o algodão for plantado no tempo indicado, o bicudo já não interfere tanto na safra, porque a flor do algodão já está formada e quase pronta para a colheita. Este ano, Antônio Evangelista espera colher 400 quilos de algodão orgânico.
Técnico agrícola e de campo da Esplar, Antônio Marques diz que com o manejo adequado e adaptado para a realidade da região é possível uma convivência do algodão com o bicudo, sem o uso dos agrotóxicos. “A Anvisa fez um levantamento da quantidade de agrotóxico que é comercializado dentro do Brasil e cada habitante é responsável por 7,3 litros de agrotóxico, de veneno. Então, quando somamos a quantidade de famílias que trabalham dentro desse processo, com todo o cuidado, sem uso de veneno, só produtos naturais, se vê que deixamos de derramar nas terras 2.957 litros de agrotóxicos”, diz.
Um relatório da Esplar também indica que a plantação em consórcio contribuiu para que 336 hectares, área equivalente a 466 campos de futebol, fossem preservados, evitando queimadas.
Quando a Marco Zero esteve em Irapuá, tudo estava verdinho e o açude da comunidade cheio, pois era fim do inverno na região. Mas nem sempre é assim. Localizada no polígono das secas do Ceará, Irapuá sofre com as longas estiagens e tem um índice pluviométrico baixo, que muitas vezes fica na casa dos 700mm por ano, uma característica da região semiárida do Brasil.
Como é importante plantar o algodão nas primeiras chuvas do inverno no sertão, há mais de uma década os agricultores anotam cada chuva que dá em três localidades de Irapuá, onde há pluviômetros caseiros, com recipientes para se fazer a contagem da chuva em milímetros. Esse acompanhamento é importante para saber se há padrões nas chuvas, se está ficando mais seco ou mais chuvoso, em como as chuvas interferem nas safras do algodão, do milho, do feijão.
“Isso foi um conhecimento que veio com a assistência técnica que chegou aqui pra nós. Começou a surgir aquelas dúvidas que sempre tem na cabeça do agricultor, da relação a um determinado período do plantio que é bom pra plantar, pra floração e a frutificação”, diz Giovane Pinto de Carvalho, um dos fundadores da associação da comunidade. “É bom a gente fazer esse monitoramento pra gente ter mais um controle”.
Quando se fala em consórcio com o algodão significa que ele é plantado com duas, três, quatro ou até mais diferentes tipos de plantas. É uma prática que se provou importante para o fortalecimento da agricultura familiar com a preservação do meio ambiente, principalmente em biomas mais vulneráveis, como a caatinga. Há três pilares:
1. Preservação e conservação dos bens naturais. Sem queimadas, sem desmatamentos.
2. A plantação de feijão, jerimum e milho, por exemplo, ajudam na segurança alimentar e nutricional das famílias.
3. Geração de renda. Com a venda para o comércio justo, os agricultores e agricultoras recebem um valor que os ajuda a realmente viver da agricultura e se manter no campo.
“O que mudou nesse sistema é que nós não precisamos mais andar desmatando e queimando depois da colheita, agredindo o meio ambiente. Porque a gente faz com que uma área se mantenha fértil para continuar plantando nela por vários e vários anos. Porque ali você repõe o que a planta tira da terra. O esterco, por exemplo, antigamente a gente vendia. Hoje não, hoje a gente pega e repõe lá para aquela área de onde saiu a comida dos animais. E incorpora novamente no solo, que vai se mantendo fértil e produtivo. Tudo isso é um ganho, é um ganho muito grande”, diz Giovane Carvalho.
Um dos motivos da volta das plantações de algodão ter dado tão certo em Irapuá é que toda a produção já tem destino certo para a compra. Todo o algodão agroecológico produzido lá vai para a fabricação de roupas das lojas Renner e também para servir como cadarço e para a produção de alguns modelos de tênis da marca Veja (antes chamada Vert, no Brasil). São empresas que investem no chamado comércio justo e na sustentabilidade da produção.
Neto conta que a Veja chega a pagar R$ 26,90 pelo quilo da pluma do algodão. É um valor bem maior do que os cerca de R$ 5 do algodão que não é orgânico. É por conta das exigências das empresas também que novas rotinas são adicionadas ao trabalho do agricultor, como o diário de campo.
Giovane Carvalho viu o pai criar quatro filhos vivendo exclusivamente da agricultura. Segue os mesmos passos, mas com um modo de trabalho diferente.
“A gente trabalha a questão do lixo, a questão educacional, da relação de gênero e do movimento da mulher dentro da roça. Do trabalho do homem dentro de casa. O trabalho envolve tudo isso. E as empresas que compram o algodão levam em conta a questão ambiental e do jeito que trabalhamos. Em contrapartida, para apoiar nosso trabalho e a gente entrega um produto de qualidade, sem veneno, limpo”, diz.
1. 0,02% de participação na produção global de fibra de algodão orgânico
2. 0,003% Parcela do algodão do país que é certificado como orgânico
3. 14.591 Terras orgânicas certificadas (em hectares)
O mercado do algodão orgânico vem crescendo mundialmente. O Relatório do Mercado de Algodão Orgânico de 2018 (OCMR, na sigla em inglês), da Textile Exchange, aponta que em 2020/21 (dado mais recente) foram produzidas 342.265 toneladas de fibra de algodão orgânico em 621.691 hectares. Houve também a produção de 180.726 toneladas de algodão em processo de certificação – ou em transição, como chamam.
A colheita global de 2020/21, comparada com a de 2019/20, teve um crescimento estimado de 37%.
Mas o Brasil ainda tem uma participação muito baixa nesse mercado. Em 2020/2021 foram cultivadas cerca de 70 toneladas de algodão orgânico em 14.591 hectares de terras orgânicas certificadas. Aproximadamente 832 agricultores estavam envolvidos na produção orgânica, enquanto 455 estavam em processo de certificação.
O Brasil é responsável por cerca de 0,02% da produção global de algodão orgânico em 2020/21. As principais áreas de produção são no Piauí, Pernambuco, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e Sergipe.
Para a agricultura Maria Vanusa Carvalho, a união de Irapuá é uma das forças da comunidade, mas isso não acontece por conta das relações de parentesco entre muitos dos moradores. “Eu acho que é mais pela forma da organização. Que é feita pelos interesses das pessoas. Há associação tem vários grupos: tem o das abelhas, do algodão, do crochê, tem o da galinha caipira, que gera renda para as mulheres, o dos quintais produtivos…”, enumera.
“Ter uma organização formal é muito importante para as pessoas que moram no campo. Quando vem um projeto, alguma coisa assim, a primeira pergunta que fazem é: você faz parte de alguma associação? Você faz parte de algum sindicato? É através da associação que chegam os benefícios para a comunidade”, diz Vanusa.
A Associação dos Produtores da Agricultura Familiar do Irapuá (Apafi) é antiga. Foi fundada ainda em 1989. Foi por conta da formalização que os agricultores conseguiram projetos importantes, que conquistaram tratores, uma mini usina de beneficiamento de algodão, entre outros.
“Uma associação dentro de uma comunidade traz, em primeiro lugar, a união. A força de trabalhar no associativismo também está em compartilhar com os outros um aprendizado. Uma coisa que um não sabe o outro já sabe e assim vai desenvolvendo a comunidade”, diz Giovane, que foi um dos fundadores da associação.
Uma conquista importante da associação local aconteceu em 2012, quando foi fundada a Associação Agroecológica de Certificação Participativa dos Inhamuns/Cratéus (Acepi) . É um dos poucos Organismos Participativos de Avaliação da Conformidade Orgânica (OPACs) do estado do Ceará, o que significa que ela pode certificar outras iniciativas como orgânicas, após verificar o cumprimento de uma série de requisitos e passar pelos processos de transição para a produção orgânica, o que leva alguns anos.
Com o selo de produção orgânica, os agricultores e agricultoras podem vender seu algodão para o mercado da economia justa, conseguindo melhores preços e melhorando suas práticas. “A agroecologia começou com um desafio. Hoje é uma realidade. E a gente com certeza não volta mais para aquele sistema. Foi uma coisa que a gente aprendeu, que a gente abraçou. Não tem porque voltar. O nosso sistema de produção antigo era insustentável”, diz Neto.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org