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“O campo progressista precisa ter respeito com a gramática da fé”, alerta pastor Henrique Vieira

Giovanna Carneiro / 22/05/2023
Henrique Vieira: homem negro, jovem, vestindo camisa amarela, sentado à mesa, sorrindo e olhando diretamente para a câmera.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Na contramão dos parlamentares evangélicos ultraconservadores que compõem o Congresso Nacional, o pastor Henrique Vieira, – eleito deputado federal pelo PSOL no Rio de Janeiro com 53.933 votos -, se apresenta como um defensor do Estado laico, dos direitos humanos, de pautas identitárias e antiproibicionistas. 

Henrique Vieira é conhecido nacionalmente devido tanto às suas atividades como professor – formado em História, Sociologia e Teologia -, escritor, militante, quanto pelas suas participações no filme “Marighella”, de Wagner Moura, e no disco AmarElo, do rapper Emicida. Aos 36 anos, exerce seu segundo cargo eletivo. Antes, de 2013 a 2016, o pastor foi vereador do município de Niterói, no Rio de Janeiro, sua cidade natal.

Durante as eleições de 2022, o líder da Igreja Batista do Caminho foi responsável pela campanha “Derrotar Bolsonaro é um ato de amor”, movimento que teve o objetivo mobilizar os cristãos contra a reeleição do ex-presidente Jair Bolsonaro.Henrique Vieira se recusou a compor a Frente Parlamentar Evangélica, – composta majoritariamente por deputados e deputadas bolsonaristas e que apresenta um histórico de defesa do conservadorismo e contra pautas identitárias que envolvem, por exemplo, a legalização do aborto e o direito de pessoas LGBTQIA+ – e afirmou que não fará um mandato em prol dos interesses da igreja.

Em visita ao Recife, onde cumpriu uma agenda de encontros com lideranças políticas e religiosas, – como as deputadas estaduais Dani Portela (PSOL), Rosa Amorim (PT) e o babalorixá Pai Ivo de Xambá – , e participou de um evento do Movimento Negro Evangélico, Henrique Vieira conversou com a Marco Zero Conteúdo sobre as expectativas para o seu mandato, a luta em combate ao fundamentalismo religioso e a sua participação na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPMI) que vai investigar os atos golpistas do 8 de janeiro, prevista para ser instalada na próxima quinta-feira, 25 de maio.

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Marco Zero Conteúdo – Durante esses poucos meses de atuação, quais são os pontos positivos e negativos de sua experiência no Congresso Nacional?

Henrique Vieira – O ponto positivo é que o mandato está conseguindo encaixar pautas importantes. Nós estamos como um dos vice-líderes do governo Lula na Câmara, estamos como representantes do governo na comissão de Segurança Pública enfrentando a indústria armamentista e o bolsonarismo raiz, estamos conseguindo ter uma articulação ampla dentro do campo democrático, dentro do campo progressista. Vamos participar da CPMI do dia 8 de janeiro como um dos nomes indicados pelo PSOL. Estamos com a iniciativa de duas frentes parlamentares, uma em defesa do Estado laico, outra em defesa das comunidades quilombolas. Já estamos em articulação com muitos movimentos, desde MTST e MST, passando por uma articulação nacional do movimento Hip Hop. Estamos também acompanhando a pauta do combate ao trabalho análogo a escravidão, a pauta da saúde mental e o enfrentamento a lógica manicomial das comunidades terapêuticas. Então, eu acredito que é um mandato que está com pautas relevantes, com articulações importantes dentro da Câmara e com isso vem ganhando algum nível de destaque e de visibilidade.

O ponto negativo é, de fato, o tamanho da extrema direita na Câmara. A extrema direita foi derrotada nas urnas mas ainda não foi derrotada no horizonte da história, ela tem força institucional e capilaridade popular. A extrema-direita coloca uma gramática muito tóxica e muito violenta no parlamento, é a vitória da mediocridade, é o rebaixamento da capacidade de divergir com inteligência. A extrema-direita é um problema do nosso tempo, tenho visto isso no cotidiano do parlamento. Outro ponto negativo, que eu tenho observado, é a dificuldade do governo Lula em produzir maioria. Se você soma a extrema-direita, o centrão e a influência do Arthur Lira, é um governo que tem dificuldade de avançar nas pautas via Congresso.

Nesse contexto, de um Congresso ainda tomado pelo bolsonarismo e pela extrema-direita, é possível estabelecer diálogo com os políticos evangélicos mais conservadores?

É muito difícil. Eu consigo algum diálogo com poucos, mas somos expressões muito diferentes do que é o evangelho, do que é ser discípulo de Jesus e do que é a política. Eu já encontrei alguns bolsonaristas que tem disposição ao diálogo, mas é um recorte minoritário. A maioria usa a gramática da beligerância, da lacração, das frases de efeito, da ameaça, da intimidação, da personalização do debate, por isso eu não consigo encontrar espaço para o diálogo. Nisso eu me refiro à extrema direita, porém, eu já vi eleitores e deputados próximos ao Bolsonaro com quem eu consigo dar uma distensionada e produzir ali algum diálogo, alguma reflexão, mesmo que na divergência.

“A extrema-direita coloca uma gramática muito tóxica e muito violenta no parlamento, é a vitória da mediocridade, é o rebaixamento da capacidade de divergir com inteligência”.

Ainda antes de ser eleito, você defendia que política e religião podem sim se misturar, apesar da participação de pastores evangélicos na política brasileira ter produzido um cenário de ascensão do discurso fundamentalista no Brasil. Agora, atuando na Câmara dos Deputados, essa percepção entre política e religião mudou de alguma forma?

Eu acredito que religião e política necessariamente se misturam. O que não tem relação com religião é se apropriar do Estado, isso eu sou contra. A questão é que nós não vamos conseguir colocar a religião num confinamento privado, que não tenha nenhuma relevância pública, eu nem defendo isso. Acho que a religião pode ser útil para a sociedade na promoção do bem comum, da justiça social, de uma cultura de paz. A questão não é se a religião se relaciona com a política, eu parto da constatação de que se relaciona sim, por isso, já que necessariamente existe uma relação qual é a qualidade dessa relação e o objetivo dela? Quando essa relação se dá por um projeto de poder isso é antidemocrático, anti-laico, autoritário e perigoso. Você pega uma moral religiosa e tenta impor à sociedade por meio do Estado, é isso que o fundamentalismo procura fazer. Agora, quando a religiosidade inspira uma ação pública em prol do bem comum eu vejo isso com alegria. A importância dos terreiros para uma vida mais comunitária e democrática, a soberania alimentar, a importância das tradições da espiritualidade indígena, tudo isso é muito importante.

A religião pode ser útil, ela não tem que se transformar num projeto de poder que se sobrepõe à constituição e que usa o Estado para fazer proselitismo religioso. A minha percepção continua a mesma. A religião pode servir a sociedade numa perspectiva de pluralismo, de diálogo, de convívio nas diferenças em prol do bem comum.

Após o grande número de votos que Bolsonaro recebeu dos evangélicos, e que foi decisivo na eleição que garantiu a vitória dele em 2018, o diálogo com esse público virou uma pauta política importante para a formulação da extrema direita no país. Com isso, como podemos dialogar com os evangélicos e criar estratégias para que nas próximas eleições não tenhamos que enfrentar uma forte projeção política da extrema direita?

Existe uma coisa que é estratégia de governo e existe uma outra coisa que é a estratégia como sociedade civil, e eu diferencio isso.

O governo, na minha opinião, deve criar um espaço para que as religiões, no plural, possam contribuir com uma agenda de país com valores da democracia, do estado laico, dos direitos humanos, da justiça social, do combate a fome, ou seja, eu não defendo que o governo deve ter uma linha prioritária de diálogo com os evangélicos. Eu não considero isso estratégia de governo dentro de um Estado que é laico, e que a gente precisa proteger e garantir essa laicidade. Eu defendo que o governo valorize o fenômeno religioso porque faz parte da vida, do cotidiano, da cultura, da perspectiva laica e plurireligiosa. Isso pra mim é estratégia de governo: criar um espaço institucional, um conselho, uma secretaria, um departamento, para que as diversas experiências religiosas possam contribuir com uma agenda de país.

Agora, o PSOL como partido, como movimento social, sem estar dentro da esfera do Estado, pode ter uma estratégia de diálogo mais específico com o campo evangélico, porque se entende que é um campo que cresce, que se entende e que daqui a pouco vai ser a maior religião do Brasil, e vai ter um forte caráter preto, popular, periférico, composto majoritariamente por mulheres. É uma parcela da classe trabalhadora, por isso, me parece interessante ter uma estratégia de diálogo com esse campo para contribuir com uma perspectiva de democracia.

São muitos caminhos e, como diz o poeta, o caminho se faz ao caminhar, ou seja, não tem resposta pronta, tem que te fazer experiência. Eu acredito muito ainda na leitura popular e comunitária da Bíblia, ou seja, disputar a memória e interpretação da Bíblia, tirar a lente do fundamentalismo e resgatar o sentido mais generoso, amoroso, social e político da escritura, da vida de Jesus. A leitura e a interpretação da Bíblia, na minha opinião, são chaves de disputa e de produção de símbolos e comportamentos, mas não só isso, eu acho que tem que ir na mística, na espiritualidade, na liturgia, no canto, no culto. A gente precisa entender que as pessoas pensam o mundo também pelos seus afetos, por suas emoções.

A mística é um elemento de consolo, de estender a mão, de aliviar o coração diante das dores da vida e isso não pode ser visto necessariamente como um processo de alienação. Eu acredito que o campo progressista precisa ter respeito com a gramática da fé e estabelecer, a partir desse respeito, uma conexão, e assim, com a leitura popular da bíblia e da mística cristã, pensar um projeto de país.

Você foi escolhido pela federação PSOL-Rede para compor a Comissão Parlamentar de Inquérito que vai investigar os atos golpistas de 8 de janeiro. Quais são as expectativas para a CPMI e qual vai ser seu principal objetivo nessa atuação?

A CPMI é uma oportunidade histórica de derreter a extrema direita no Brasil a fim de não permitir o apagamento da memória sobre o que o governo Bolsonaro fez e também de responsabilizar pessoas por atitudes irresponsáveis, ilegais e criminosas, ou seja, de impedir uma anistia.

Eu quero colocar uma lupa na CPMI sobre essa relação entre fanatismo religioso, extrema direita, golpismo e autoritarismo no Brasil, inclusive, indo aos nomes dos gestores desse caos em nome da religião.

O Brasil vem produzindo e perpetuando violências pela falta de memória. Eu não estou falando de vingança, não estou falando de linchamento, nada disso habita meu coração. Não é revanchismo, mas é produção de memória. Talvez porque não tenhamos dado nome ao holocausto que foi a escravidão o racismo esteja tão presente até hoje. Talvez porque não tenhamos responsabilizado de fato os gestores da ditadura civil militar que Bolsonaro tenha sido eleito em 2018. Se você não dá nome e não gera memória e responsabilidade, é mais fácil a atrocidade se atualizar no tempo, e continuar voltando. Por isso, eu acredito que a CPMI cumpre um papel necessário, urgente e pedagógico.

Com as devidas e corretas investigações e o direito de defesa e presunção de inocência dos acusados, nós queremos ir às últimas consequências sobre a tentativa de golpe e o significado do bolsonarismo e da extrema-direita no Brasil. Por isso, a nossa estratégia é chegar aos financiadores, aos idealizadores e aos operadores da tentativa de golpe. No meu caso, com uma lupa específica sobre a participação de religiosos nesse processo.

Estou muito interessado em entender se houve uma participação mais direta de determinadas lideranças religiosas na arquitetura do golpe. Que existe relação simbólica e política, disso não tenho a menor dúvida. Silas Malafaia fazia vídeos abertamente chamando Bolsonaro a defender a democracia, ou seja, a dar um golpe de Estado e não respeitar o resultado eleitoral, isso está dito. Mas eu quero saber se, nos bastidores, tem mais do que isso, eu quero colocar uma lupa na CPMI sobre essa relação entre fanatismo religioso, extrema direita, golpismo e autoritarismo no Brasil, inclusive, indo aos nomes dos gestores desse caos em nome da religião.

Em uma de suas falas na atuação do filme “Marighella”, seu personagem afirmou que Jesus era negro e muita gente discordou e contestou essa fala. Recentemente você também lançou o livro O Jesus Negro: O grito antirracista da bíblia. Por que é importante reforçar a imagem e a história do Jesus negro e por que essa perspectiva incomoda?

Incomoda porque o racismo é estrutural e ele é estrutural inclusive dentro da teologia cristã hegemônica. A relação do cristianismo hegemônico com a escravidão, com a colonização, com o embranquecimento ideológico da figura de Jesus, cumpre uma função histórica de acomodar opressões, por isso um Cristo negro incomoda tanto. Porque o Jesus branco parece natural, já o Jesus negro soa forçação de barra, pois o racismo produz a naturalização e a universalização daquilo que é branco e o negro é o exótico, é o estranho, é o forçado.

Eu acredito que falar do Jesus negro é denunciar esse racismo estrutural, não só da sociedade como um todo, mas da própria teologia cristã e hegemônica. É resgatar o contexto histórico do evangelho de Jesus. Ora, Deus se fez gente em Jesus, mas onde e em que circunstância? Como parte de um povo oprimido e explorado. James Cone [James Hal Cone], teólogo que defende uma teologia negra, fala sobre isso: se Jesus foi um judeu na Palestina do primeiro século, então ele é negro nos Estados Unidos de agora. E, eu diria, ele também é negro no Brasil, porque Deus escolheu o rosto do oprimido para ser o seu semblante na história.

Esse não é um critério circunstancial ou casuístico, é um critério histórico que permanece. Eu vou continuar discernindo o corpo de Cristo no corpo daquele que sofre, e nessa terra há a produção crônica de um sofrimento sobre o corpo negro. Então, eu me sinto autorizado pelo testemunho bíblico de dizer ‘olha o rosto de Cristo no Brasil tem a marca da pele preta, tem a marca da experiência negra, mais do que a epiderme, é a experiência política, histórica e existencial negra’. Isso não deveria incomodar, o próprio incômodo já gera ou já denuncia o racismo. O Jesus branco você passa para a próxima página, o Jesus negro tem que fazer um livro pra explicar.

Se o povo branco tivesse sido escravizado por quatro século, se houvesse uma abolição inconclusa da escravidão sobre o povo branco, se a cada 28 minutos um jovem branco fosse executado, se eu ligasse a TV e visse uma sub-representação dos brancos nos espaços de privilégio, então, Jesus seria branco. Não é uma questão ontológica, existencial, é uma questão histórica relacional, Jesus pra mim vai sempre aparecer prioritariamente no rosto daquele que sofre.

Cartaz de lançamento do livro O Jesus Negro. Crédito: Reprodução/Instagram.

Você ganhou uma grande notoriedade e atualmente é uma referência para o movimento evangélico progressista. Você acredita que é possível que outros líderes religiosos progressistas ganhem força política diante de um contexto onde os evangélicos conservadores parecem ter protagonismo?

Eu não sou o primeiro, não sou o último, nem o único. Eu sou parte de uma tradição, e não vou nem dizer só evangélica, mas cristã, e o cristianismo tem disputas e fissuras dentro dele. Tinham os escravocratas, mas tinham as pessoas que, a partir da fé em Jesus, lutavam contra a escravidão. O cristianismo na sua história também tem Tereza d’Ávila, São Francisco de Assis, Frei Tito, Martin Luther King e comunidades, para além de nomes cristãos, que atuaram na história em favor da emancipação humana, dos direitos humanos, da justiça social, da luta contra as diversas formas de opressão e violência.

Eu me sinto parte dessas pegadas, dessa espiritualidade cristã à margem do poder, à margem das grandes estruturas religiosas, mas eu não quero só me colocar como uma exceção ou uma pessoa excêntrica, uma novidade do momento, um pastor da hora, tem pegadas atrás de mim e irmãos ao meu lado. Eu caminho ao lado de Felipe dos Anjos, Ronilson Pacheco, Nancy Cardoso, pastor Wellington e tantos outros nomes que amam Jesus, que amam o evangelho, que têm um ímpeto generoso dentro do coração, que fazem diálogo inter-religioso, que produzem teologia negra, teologia feminista, que estão pensando direitos humanos, justiça social, combate a fome, que estão fazendo um trabalho de base na periferia, no campo, na cidade. Eu sou parte desse campo espiritual, histórico e político, inclusive na arena da política institucional e não ocupo esse lugar para fazer proselitismo religioso, nem para defender interesse de igreja, mas para dar um testemunho. Para poder dizer: ‘olha, tenho fé em Jesus e estou aqui defendendo o Estado laico, a democracia, a escola pública, o posto de saúde. Estou aqui defendendo reforma agrária, o direito de culto dos povos tradicionais das religiões de matriz africana. Estou aqui defendendo a dignidade e cidadania para LGBTs. Estou aqui defendendo a Amazônia, a Mata Atlântica, as comunidades quilombolas e a demarcação de terras indígenas’.

Eu quero que mais pessoas possam dizer que a fé não precisa ter como consequência a barbárie, que é o que a extrema direita faz, um fanatismo religioso que atualiza o espírito das fogueiras da inquisição em pleno século 21, e isso mata. Então, eu quero que mais gente se contraponha a isso e que tenham essa disposição no coração, para essas pessoas eu quero dizer: ‘você não está sozinho’.

Tem um monte de gente com essa inquietude no coração, sentido vergonha das principais representações evangélicas nos espaços de poder. É gente que discorda de Edir Macedo, Silas Malafaia, Valdemiro, R.R. Soares. E eu quero dizer que esses caras não têm o controle e o monopólio sobre o cristianismo e sobre Jesus.

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AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.