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O camponês e a medicina

Marco Zero Conteúdo / 29/09/2025
Na foto, um médico negro está examinando uma criança pequena com um estetoscópio. Ele está inclinado para frente, sorridente e concentrado, ouvindo o coração da criança. A criança está sentada no colo de uma mulher, provavelmente a mãe, que sorri para a câmera. A criança aparece sem camisa para permitir o exame. A mãe veste uma blusa vermelha estampada e tem um pano branco apoiado no ombro. A cena acontece em um ambiente simples, com paredes de madeira, dando a impressão de uma casa ou posto de saúde comunitário.

Crédito: ONU

por Augusto Cezar*

Vivemos em um momento histórico de transição, marcado por uma lentidão para a resolução das nossas desigualdades e povoado de contradições. O Brasil segue devendo reparações fundamentais ao seu povo, especialmente àqueles que vivem nas margens desse projeto nacional: populações do campo, da floresta e das águas.

A falta de políticas públicas estruturantes — como a reforma agrária, urbana e tributária justa — perpetua desigualdades históricas que se tornam mais visíveis quando analisamos a realidade da saúde e da formação médica no país.

Diferente das promessas vazias que escorrem do alto, o Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária) é um exemplo de política pública transformadora. Ao promover acesso à educação desde a escolarização até as pós-graduações para camponeses e camponesas, esse programa atua diretamente na ruptura do ciclo de exclusão que impede milhões de brasileiros de terem acesso à educação. Até 2025, foram beneficiados 192.764 alunos em todos os níveis de educação.

Nesse sentido, a medicina é um dos campos mais emblemáticos dessa desigualdade. A Demografia Médica do Brasil 2025 apresenta quem são a maioria dos “jalecos brancos”. Brancos e de classe alta: 68,6% dos alunos de Medicina são brancos e 66% vieram do ensino médio privado. Apenas 34% são egressos da escola pública, muito abaixo da média nacional de 65,7% dos estudantes quando comparados a todas as graduações.

Mais grave ainda é a concentração das vagas em instituições privadas: 77,7% das matrículas em Medicina estão em faculdades particulares, que em geral praticam uma política de inclusão pífia ou inexistente.

Apesar dos avanços das cotas raciais e sociais em instituições públicas, o acesso continua restrito e pouco representativo da diversidade brasileira. Dos 266 mil estudantes de medicina em 2023, apenas 9% entraram por programas de reserva de vagas.

A consequência dessa lógica elitista se reflete na distribuição geográfica dos médicos. O Índice de Distribuição de Médicos Capital/Interior (IDCI) mostra que as capitais concentram 366% mais médicos por habitante do que o interior. No Nordeste, o índice chega a 732% de diferença. Isso em um país onde dois terços da população vive em municípios com menos de 500 mil habitantes — ou seja, o Brasil profundo permanece desassistido.

A realidade é conhecida por quem vive longe dos grandes centros: conseguir um médico disponível em áreas rurais e ribeirinhas continua sendo um desafio cotidiano. As políticas de provimento — como o Programa Mais Médicos — avançaram, mas são medidas paliativas se não forem acompanhadas por mudanças estruturais de fixação desses profissionais a longo prazo.

A universidade tem papel central nessa transformação. Para ser um espaço de excelência científica, é necessário refletir e responder ao contexto social brasileiro. A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) vem reconhecendo essa urgência ao adotar políticas afirmativas para o acesso ao curso superior há alguns anos, como a licenciatura intercultural indígena.

O Pronera, ao tocar na formação médica, desencadeou um conjunto de reações que misturam o pior do atraso brasileiro, a mesquindade, o individualismo, o racismo e o ódio aos pobres.

Ao realizar oferta supranumerária para o curso de Medicina no campus do agreste pernambucano, pioneiro na interiorização do curso de medicina, para pessoas oriundas do campo a reação foi somente amplificada na versão daqueles que já tem médico para seu cuidado, alimentados pela fábula da meritocracia e da individualização de pequenas conquistas que não reestruturaram a realidade médica nacional e que não respeitam a cor e não pisam nos locais de onde esses estudantes são oriundos.

A própria postura de associações de médicos, inclusive de outros estados assinando notas contrárias ao exercício legal de uma política pública que propõe contribuir na reparação histórica ou a contrariedade às cotas nas vagas de residência médica, só nos permite compreender que essa política mexe com algumas estruturas e causam incômodos.

Movimentos que não observamos aos desafios do exercício profissional como a precarização das relações de trabalho ou desfinanciamento da saúde pública.

Por falar de ciência, no que se refere a estratégias estruturantes para resolver o problema da escassez de médicos no interior, essa é uma das medidas alinhadas às diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e às políticas do SUS, especialmente à Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Floresta e Águas (PNSIPCF).

Universalizar com equidade a formação médica no nosso país, criando dispositivos de acesso que considerem não só a renda, mas também o território de origem dos estudantes. Afinal, formar médicos oriundos desses territórios é uma das formas mais eficazes de garantir que o cuidado em saúde chegue aonde ele é mais necessário.

Contrapor as posições contrárias às políticas afirmativas é parte desse processo. Os que resistem à democratização da medicina não fazem isso em nome da qualidade, mas, sim, da manutenção de privilégios. Não se trata de baixar o rigor — trata-se de temperá-lo com ciência socialmente referenciada. E isso exige coragem institucional e ousadia popular.

Destaque tem sido a acolhida da UFPE, sua comunidade acadêmica de docentes, discentes, técnicos bem como a solidariedade no cenário nacional. O Brasil precisa, com urgência, aumentar a formação de médicos que tenham a vivência dessas localidades, a vida como ela é. Médicos/as que saibam o valor de uma unidade básica no sertão, de um posto fluvial na Amazônia, de uma visita domiciliar em uma comunidade quilombola, que dêem valor às exaustivas viagens à capital em busca de uma especialidade focal.

Médicos/as que falem a língua do povo — não só no sentido simbólico, mas no literal também. Nossa melhor aposta para resolver esse problema dessas comunidades vem delas mesmas, formando seus filhos e filhas para o cuidado médico com ciência e consciência.

*Augusto Cezar é médico e professor da UFPE

AUTOR
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Marco Zero Conteúdo

É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.