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O circo popular e o espetáculo do respeito à diversidade

Helena Dias / 27/03/2019

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

No bairro da Macaxeira, Zona Norte do Recife, o respeitável público que costuma comparecer às apresentações da Escola Pernambucana de Circo (EPC) talvez não imagine que o maior dos espetáculos da organização aconteça todos os dias longe dos holofotes. A escola que funciona há 22 anos tem como princípio o conceito do “circo social”, em que os alunos aprendem, para além das artes circenses, o exercício da cidadania. Lá, o racismo e outros tipos de preconceitos são debatidos frequentemente e de forma aberta, ultrapassam os limites do que hoje é conhecido em muitas escolas regulares apenas como bullyng.

Quem acessa o site da instituição para entender um pouco de sua história, se depara com uma citação de Paulo Freire: “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.”. Questionada sobre a ligação entre a pedagogia utilizada na escola e o educador e filósofo pernambucano, a coordenadora pedagógica da EPC, Paula de Tárcia, afirma que a união acontece a partir da “educação popular”.“O que utilizamos muito de Freire é a consideração pelo que os meninos e meninas trazem, a vivência que compartilham. Eles têm história, têm experiência e é a partir disso que buscamos trabalhar a cidadania”, explica.

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Atualmente, 52 crianças e 38 adolescentes fazem parte dos cursos pedagógicos da instituição que divide os grupos em faixas etárias de 6 a 10 e de 10 a 15 anos. Há rodas de avaliação no início e no fim de cada aula, em que os alunos comentam um pouco de si e sobre o que aprenderam naquele dia. Quinzenal ou semanalmente, acontecem rodas de diálogos direcionadas pelos arte-educadores e os temas são definidos a partir das demandas expressas pelos estudantes naquele período.

Na última quinta-feira (21), os direitos humanos foram debatidos na roda de diálogo e o marco de um ano da morte da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco (PSOL), assassinada no dia 14 de março de 2018, também foi um ponto de discussão. Marielle era negra e periférica, assim como muitos dos alunos da escola, mas eles já convivem com grandes referências no dia-a-dia.

Júlia Vitória Lopes, de 12 anos, está há três aprendendo as artes do circo e conta que se inspirou em uma prima mais velha. Seguindo a tradição, levou mais dois primos para a escola, porque se sente “livre” quando sai de sua casa no Alto Santa Isabel e cruza o limite entre a Avenida José Américo de Almeida e a grade vermelho e amarela da EPC. “Queria soltar sempre meu cabelo, mas tem lugares que tenho vergonha de fazer. Na escola de circo eu amo meu cabelo, mas antes de chegar na outra (a escola regular) eu amarro, porque as pessoas ficam comentando. Aqui é outro lugar, é muito diferente. Eu acho que é muito importante o respeito e aqui levamos a sério.”

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Júlia e Karol, aluna e educadora. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Júlia tem um ano a mais de vida do que o tempo que a arte-educadora Maria Karolyna, de 21 anos, está na instituição. Chegou pequena, sem imaginar que ocuparia este lugar de troca daquilo que aprendeu brincando e seria referência para outras meninas que se veem nela. No mesmo passo, também há onze anos na escola, segue o arte-educador Ítalo Feitosa, de 23, que atualmente cursa educação física. Ítalo diz que descobriu sua potência como pessoa negra através do circo.

Mesmo na idade em que a escolha da profissão não é uma decisão necessária, muitas crianças e adolescentes afirmam a vontade de seguir carreira no circo. “Me espelho no jeito de ser de Karol e pelo fato dela ser muito empoderada, e porque é contorcionista. Já Ítalo, eu o admiro por causa força que ele tem.”, explica Larissa Beatriz Ferreira, de 14 anos, integrante da Trupe Circus. Ela foi transferida para a trupe antes de terminar o pedagógico. Entre mulheres da turma adulta, Larissa participou do espetáculo Flores Fortes, que aborda a sororidade –aliança entre mulheres baseada na empatia e companheirismo.

Ela gosta de fazer acrobacias aéreas e, com o Flores Fortes, passou a olhar com mais carinho para o malabarismo. Contudo, as artes do circo dividem espaço no seu coração com o seus sonhos de cursar direito e se tornar juíza e também de ser atleta de ginástica olímpica. Larissa, tem um bom tempo para pensar sobre suas escolhas profissionais, mas há aprendizados que teve na organização circense que irá levar para qualquer decisão que tomar.

“Aqui dentro somos respeitados. Podemos ser como for, mas depois daquele portão todo mundo começa a lhe respeitar. É como se fosse minha casa, porque tudo o que acontece lá fora some da minha cabeça quando eu passo por aquele portão. Eu me sinto bem no circo, não só porque estou há muitos anos na escola, mas porque o que faço me faz bem e o sorriso de todos me faz bem.”, conta.

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Jair Simão de Freitas Júnior, de 21 anos, conheceu a EPC há dois anos quando participou do curso de Introdução às Artes Circenses para jovens e adultos. Hoje atua como monitor das turmas do pedagógico. Morador do bairro do Fundão, na Zona Norte da capital, entrou na escola em um momento significativo da sua vida, quando estava descobrindo sua negritude apesar de sua pele mais clara, assumindo seu cabelo crespo e revendo conceitos que aprendeu desde pequeno. Para ele, quanto mais cedo estes processos de construção da identidade racial e social de uma pessoa acontecem, melhor.

“Acho que se eu tivesse me descoberto antes podia ser ainda melhor. Nunca deixei meu cabelo grande, só depois de crescer e entender algumas coisas, algumas questões. Fui vendo porque eu nunca tinha deixado crescer, sabe? Minha mãe achava que eu poderia sofrer racismo na escola, na rua, quando essa prática dentro de casa é também uma prática racista. Depois disso muita coisa mudou na minha vida, eu evidenciei minha negritude e gritei para o mundo que eu não tenho vergonha disso.”

Atuando no pedagógico, Jair fala que despertou ainda mais sua vontade de cursar a licenciatura em dança na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Gosta de unir o circo à dança, expressão artística que o acompanha desde 2015, quando fazia aulas na Escola Municipal de Artes João Pernambuco e no Centro de Educação e Cultura Daruê Malungo.

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“Dar aula ativa muitas coisas em mim que eu vou levar para a cena, sabe? A atenção e o foco, por exemplo. Vim aqui para somar o circo a minha dança e, quando fiz o curso de iniciação circense, me joguei para ser voluntário na escola. Eu adoro crianças e descobri o quanto é incrível estar facilitando a arte para elas que tem uma realidade tão semelhante a minha. Eu nunca passei por um processo acadêmico e as pessoas aqui me deram a oportunidade de ser um educador. Eu penso que as minhas vivências me ajudam muito como um ser social.”

Os pais e mães dos alunos assim como a comunidade do entorno da Escola Pernambucana de Circo não ficam de fora dessa construção de respeito à diversidade e combate aos preconceitos. Com 47 anos, Irês Francis de Barros vê a escola como uma “segunda casa” para ela e sua filha Aline Barros, de 11 anos, que está há quase um ano no curso pedagógico. Cuida da filha apenas com a renda que tira da coleta de materiais recicláveis desde que seu esposo faleceu há três anos.

“Eu digo: filha, você pode ser uma grande artista de circo. Digo isso porque ela mudou bastante desde que começou aqui, está mais afetiva, carinhosa e fez muitas amizades”

Janaina Lopes dos Santos, de 39 anos, é mãe de Poliana Lopes, que está há dois anos na EPC. Tem notado que a filha já coloca o circo em seus planos futuros. “Ela mudou o comportamento, está mais responsável. Fala sobre muitas profissões, mas, por enquanto, ser artista circense é o que está com mais força.”

Além das aulas, a escola realiza projetos como o Lona Verde, em que as alunas e os alunos escolhem lugares da comunidade para construir canteiros públicos com materiais reutilizados e o Se liga aí, um quadro em que notícias sobre política e economia são evidenciadas para estimular o debate a respeito da conjuntura política e social do país. A escola atende crianças, adolescentes e jovens da capital pernambucana e de toda Região Metropolitana do Recife (RMR).

As turmas voltadas para este público fazem parte do projeto Brincar e Aprender para Crescer e já estão formadas desde o início de fevereiro. Contudo, interessados em mais informações podem acessar o site o oficial da Escola Pernambucana de Circo e visitar a organização no endereço: Avenida José Américo de Almeida, nº05, Macaxeira (Recife-PE).

AUTOR
Foto Helena Dias
Helena Dias

Jornalista atenta e forte. Repórter que gosta muito de gente e de ouvir histórias. Formou-se pela Unicap em 2016, estagiou nas editorias de política do jornal impresso Folha de Pernambuco e no portal Pernambuco.com do Diario. Atua como freelancer e faz parte da reportagem da Marco Zero há quase dois anos. Contato: helenadiaas@gmail.com