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O cotidiano da violência em Salvador, onde está a PM mais violenta do Brasil

Marco Zero Conteúdo / 27/09/2023
Duas caminhonetes abertas. pintadas de preto com a inscrição 'polícia militar, trafegando em fila em uma avenida, com policiais fardados com uniformes na cor ocre, em pé na carroceria. A foto é colorida e foi feita por trás dos veículos.

Carlos Alberto Maraux/Ascom SSPBA

por Júlia Moa

Salvador – “Tudo está arriscado, é preciso se benzer, fazer oração para o anjo da guarda e pedir a Deus para me levar e trazer de volta vivo. Não é apenas no meu bairro que ronda o perigo, andar de ônibus assusta diante dos recorrentes assaltos. Tudo está caótico. Infelizmente, Salvador está assim, e a gente não pode fazer nada. Só clamar a Deus.” Invocar, primeiramente, a espiritualidade no dia a dia no melhor estilo “quem me protege não dorme” é a alternativa escolhida pelo mecânico Fernando Cide para driblar a alta onda de violência urbana que tomou conta da capital baiana e atingiu seu ápice no início de setembro.

Cide mora há 14 anos no Alto das Pombas, bairro popular habitado majoritariamente por pessoas negras e que viveu momentos de terror durante dois dias seguidos, culminando numa intensa troca de tiros, ações com reféns, mortes, toque de recolher e famílias deixando o local.

O conflito armado envolveu a polícia e traficantes de facções criminosas.

O comércio encerrou as atividades ainda durante o dia, e mais de 1.100 mil alunos da rede municipal ficaram sem aulas. Os postos de saúde nas imediações e o campus da Universidade Federal da Bahia (UFBA) suspenderam as atividades com medo dos ataques. Nem os templos religiosos ousaram abrir as portas para receber os fiéis. Definitivamente, a ordem do toque de recolher enviada pelo poder paralelo foi levada à risca.

Antes, de 28 de julho a 4 de agosto, uma série de operações policiais na periferia e Região Metropolitana de Salvador deixou o saldo de mais de 30 mortos.

“Durante dois dias (4 e 5 de setembro), fiquei trancado com a minha família dentro de casa. Não consegui ir trabalhar, não tenho peito de aço para entrar no meio dessa guerra. Eu só pensava em proteger meus filhos. Nem dava para dormir, pois qualquer barulho a gente já queria se esconder, mesmo dentro da nossa morada”, relembra Cide, que lamenta o fato da filha de três anos já saber o que é um fuzil por acompanhar nas ruas a movimentação de homens armados. O morador afirma que nesses anos interagindo na localidade, o comum é um clima tranquilo e com opções de lazer nos finais de semana, por isso ele acredita que, agora, irá apaziguar por pelo menos um ano, até voltar a ocorrer outro episódio do tipo. “Meus filhos ficam na creche e na escola boa parte do dia, lá dentro eles estão seguros. Sempre participo com eles das atividades culturais gratuitas no Alto das Pombas e no Calabar (bairro vizinho), ando a pé por ali e não pretendo me mudar”, assegura Fernando.

De acordo com os dados colhidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, relativos ao ano de 2022, a Bahia continua líder, desde 2019, no ranking de mortes violentas. A soma total de vidas brutalmente ceifadas engloba os homicídios dolosos (incluindo feminicídios), lesões corporais que terminam com morte, latrocínios, mortes de policiais e assassinatos cometidos por eles. Somente no primeiro trimestre deste ano, 1.289 pessoas morreram no estado, de acordo com o monitoramento de violência do site G1 – a cobertura não aborda a violência policial.

Engenho Velho da Federação.

Outro fato preocupante destaca, pela primeira vez no histórico do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (nas informações contabilizadas desde 2015), a polícia da Bahia como a que mais matou no Brasil. Para se ter uma noção do tamanho da fúria policial baiana, ela desbancou o posto ocupado por anos pelo Rio de Janeiro, uma das mais temidas no mundo.

Perto do Alto das Pombas, o Engenho Velho da Federação, também densamente povoado, dias depois foi palco de disparos realizados entre policiais e traficantes. Dois homens foram mortos.

Nas escritas do músico Paulo Feijão no livro Feijão & Samba – histórias de um cantor de Blocos Afro, durante o século 17, o que se entende hoje como o bairro foi um território quilombola que serviu de refúgio para negros e negras escravizados vindos de outras fazendas e, igualmente, para os sobreviventes de revoltas. Citado nas canções de Caetano Veloso, a área atualmente é disputada por duas facções, todavia não tem registrado muitos confrontos. Ocasionalmente, dizem os moradores, dá para escutar os tiroteios.

“A melhor estratégia de sobrevivência que utilizamos é o silêncio, juntamente com os cuidados necessários quando se trata da circulação em determinadas partes do bairro”, desabafa um morador que prefere não ser identificado. Na sua opinião, as políticas públicas não são colocadas em ação e a burocracia do estatal impede a execução de projetos e atividades da sociedade civil. 

“Passos importantes poderiam ser dados para melhorar a qualidade de vida dos habitantes, começando com um comprometimento do poder público, uma atitude coletiva, visando a participação de todos no cumprimento do orçamento determinado para questões sociais, culturais e a inclusão no mercado de trabalho”, aponta.

Normalização da violência e guerra às drogas

Não é nenhuma novidade que no Brasil, o último país do Ocidente a abolir o regime escravocrata, o ranço colonial segrega seu povo racialmente e por classe social. É nas imediações mais vulneráveis das cidades, as favelas, que ocorrem as maiores taxas de crimes violentos letais intencionais (CVLI).

“O crescimento dos fenômenos de violência urbana não é exclusividade da Bahia, temos acompanhado em outras capitais nordestinas como Recife e Fortaleza, que contribuem para o avanço de uma certa insensibilidade por parte de quem vivencia essa realidade cotidianamente. Parece que quanto mais aumentam tais fenômenos, menos passíveis de comoção eles se tornam nas periferias dos grandes centros urbanos”, reflete o sociólogo Luiz Cláudio Lourenço, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade – LASSOS/UFBA.

Lourenço acrescenta que o plano policial adotado para lidar com a criminalidade não é nada salubre. Se, por um lado, vemos um corpo policial munido de fuzis e pistolas de última geração, do outro, observamos que todo esse preparo em armamento para operações táticas não tem redundado numa paz coletiva, pelo contrário. “Há uma desconfiança da população periférica acerca da presença policial fortemente armada. A lógica de guerra não contribui em nada para a solução do problema. Talvez, apostar na proximidade com uma polícia cidadã presente no cotidiano, não apenas no suporte bélico ostensivo, seja uma saída para fomentar a tranquilidade nos territórios que hoje estão vivendo uma verdadeira batalha conflagrada”, verifica o pesquisador.

Luiz C. Lourenço. Crédito: captura YouTube

O longo histórico da atuação violenta por parte das forças policiais na Bahia é resultado de um modelo apoiado no militarismo que afasta o controle do poder civil e atua prioritariamente na eliminação do inimigo e na ocupação dos espaços urbanos. Dudu Ribeiro, historiador e coordenador executivo da Iniciativa Negra Por uma Nova Política de Drogas, explica que o raciocínio intensificado nas últimas décadas pela segurança pública brasileira induz à guerra às drogas, algo que não é contra as substâncias e sim direcionada a determinadas pessoas, territórios e expressões culturais.

“As opções políticas do estado fortalecem a ideia da guerra às drogas, baseado nessa lógica do militarismo que nos empurra ao entendimento de que não é apenas uma crise da gestão da segurança pública na Bahia, mas, sobretudo, uma crise do modelo que visa a participação do Estado na intensificação dos confrontos armados”, defende Ribeiro, que ressalta o orçamento público na mão do militarismo como algo que navega na contramão do controle civil e da democracia. Ele argumenta que dessa forma é impossível acompanhar as práticas a partir da perspectiva da proteção dos direitos humanos.

O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), disse em coletiva à imprensa que se antecipando ao crime, as polícias Militar, Civil e Federal estão realizando semanalmente operações para que o crime organizado não se estabeleça na Bahia. “Estamos firmes”, decretou.

Em nota recente, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) atualizou as investigações no Alto das Pombas e Calabar. O relatório narra que uma operação foi desencadeada após um grupo de traficantes divulgar vídeos nas redes sociais, com fuzis e pistolas, anunciando uma invasão às localidades. O balanço contou  seis fuzis, 11 pistolas e três granadas apreendidas; oito traficantes presos e outros dez traficantes mortos nos confrontos. Em 2023, ações policiais prenderam pouco mais de 12 mil pessoas (média de 50 por dia), apreenderam quatro mil armas, entre elas 48 fuzis, e seis toneladas de entorpecentes. Cerca de dois mil policiais e bombeiros foram contratados este ano e, até o final de 2024, serão 4.500 novos servidores.

O que a Colômbia pode nos ensinar?

Jorge Melguizo, ex-secretário de Cultura Cidadã e de Desenvolvimento Social de Medellín – a segunda maior cidade da Colômbia -, e consultor internacional, durante a sua gestão foi um dos responsáveis por reduzir significativamente o índice de homicídios violentos em 97%. Nos anos 1990, o município era tomado pelo tráfico de drogas, e, através do investimento em ações culturais e educacionais massivas, optando por não inflamar o cenário com mais violência, a transformação ocorreu.

“As violências em nossa América Latina, em particular na Colômbia e no Brasil, têm muitas semelhanças. Temos violências causadas pelas múltiplas formas de pobreza, especialmente pelas enormes desigualdades sociais, uma violência estrutural. Essa é a violência que envolve jovens das áreas mais pobres como agressores e vítimas”, salienta Melguizo ao refletir que o crime organizado gira em torno de dois poderes: o econômico e o territorial. 

Há outro tipo de violência, que podemos chamar de violência cotidiana. Essa é exercida principalmente contra mulheres e também inclui a violência contra menores de idade dentro da família.

Aqui no Brasil, Jorge acompanhou a implementação dos Centros Comunitários de Paz (Compaz) em Pernambuco, criados por Murilo Cavalcanti, atual secretário de Segurança Cidadã da Prefeitura do Recife e diretor da Rede Compaz.

Melguizo cita a iniciativa como exemplo para lidar com fatores de violência por meio de projetos educacionais, culturais, esportivos, recreativos, empreendedorismo e de apoio psicológico. Inicialmente, são construídas instalações nas áreas periféricas e turbulentas da cidade, elas se tornam refúgios de oportunidade para crianças e jovens.

Os Compaz foram inspirados em cinco projetos de Medellín: os Parques Biblioteca, as Unidades de Vida Articulada (UVA), os Centros de Desenvolvimento Cultural de Moravia (bairro), os Centros de Empreendedorismo Zonal e as Casas de Justiça. Cavalcanti se inspirou nesses projetos para criar algo novo no Recife, não apenas copiar Medellín. Hoje, quatro Compaz estão em funcionamento, dois estão em construção e dois estão em licitação, totalizando oito até o final da administração do prefeito João Campos (PSB).

Além disso, o presidente Lula anunciou a construção de cerca de 40 Compaz em várias partes do Brasil durante seu governo.

“Todo esse esforço contribui para a geração de empregos e empreendimentos, e o envolvimento da comunidade desempenha um papel fundamental. A população participa ativamente no design, na gestão e no controle dos projetos. É possível monitorar a implementação dos projetos públicos e garantir que sejam executados sem corrupção e com qualidade”, garante Jorge.

Embora os resultados não sejam imediatos, na opinião dele, já seria possível perceber melhorias no Recife, tanto na construção dos Compaz quanto nos efeitos positivos que eles têm nas comunidades locais. Esses projetos levam tempo para se desenvolver fisicamente e socialmente, mas são um investimento a longo prazo que, no decorrer dos anos, mostram bons resultados.

Material apreendido no Alto das Pombas. Crédito: Ascom SSPBA

A saúde mental no mapa da violência

Agosto foi o mês com o maior número de mulheres baleadas em Salvador e Região Metropolitana. No levantamento do Instituto Fogo Cruzado, 27 mulheres foram vítimas da violência armada: 18 foram mortas e nove feridas. O saldo na cidade marcou 133 tiroteios, 111 mortos e 35 feridos. 

Do total de tiroteios registrados em um ano (1.545), 529 ocorreram durante ações e operações policiais (34%). Foram mapeadas 379 mortes e 93 pessoas feridas nessas ocasiões. Os homens são maioria entre as vítimas.

Em uma década, crimes violentos letais intencionais (CVLIs) interromperam a vida de mais de 20 mil pessoas. Vítimas são, em sua maioria, homens, jovens e moradores da periferia: 805 jovens de 19 anos foram assassinados de 2011 a 2021. Os números, coletados pelo jornal baiano Correio 24h com base nos boletins diários de ocorrência publicados pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), não incluem os mortos pela polícia. 

A psicóloga Gilka Freitas Tourinho, profissional de um Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) na rede pública, não está conseguindo fazer os atendimentos domiciliares com os pacientes e familiares nos bairros atingidos pela violência. A equipe, inclusive, não realiza mais as abordagens com os moradores de rua que circulam nos ambientes periféricos justamente pela insegurança que toma conta da cidade. 

“No consultório, estou com 2 pacientes em quadros depressivos desde a época da pandemia da covid-19; agora, piorou a doença devido à violência nos bairros. Antes, eles podiam sair para passear, porém estão optando por ficar em casa. Esse isolamento social (circundado pelo medo), novamente imposto, não é saudável”, expressa Gilka, que chama a atenção para o alto grau de fobia nos adolescentes que não se encontram disponíveis para novas conexões interpessoais. 

A psicóloga elenca a síndrome do pânico, depressão e a insônia no topo da lista dos quadros clínicos ligados à violência em comunidades carentes que ela mais cuida.

Acarajé da Dinha. Crédito: Divulgação

“Onde tem tiro toda hora, não dá para dormir; não tem como descansar em meio a uma crise de pânico. Se aconselhar um remédio natural, homeopatia, por exemplo, não vai dar certo. Precisa ser Rivotril para dopar o paciente na tentativa de um sono satisfatório. Isso é muito triste”, expõe a terapeuta.

O bate-papo com os amigos, celebrado nas noites de sexta-feira no boêmio bairro do Rio Vermelho, nas proximidades do Engenho Velho da Federação, também foi ameaçado por assaltos, furtos e mortes nos pontos turísticos. A baiana do acarajé Elaine Assis, responsável pelo famoso ponto da Dinha, empreendimento das mulheres de sua família há 80 anos, sofreu o ápice da tensão. Pensando na segurança de suas funcionárias e dos clientes, Elaine decidiu contratar uma empresa de segurança privada para ter calmaria no entorno do famoso quiosque no Largo de Santana.

“Neste mês de setembro, a situação melhorou devido ao policiamento continuado na região. Estamos menos apreensivos, existem vários bares por ali, e a violência causa o baixo movimento nos estabelecimentos, atrapalhando os negócios num bairro repleto de possibilidades gastronômicas”, comemora Elaine.

A resolução imediata que o historiador Dudu Ribeiro sugere em prol da pacificação nas ruas soteropolitanas é a instalação de câmeras nos uniformes policiais, que, quem sabe, auxiliará no controle do uso da força e também na proteção de uma parte da cadeia de provas num eventual processo de justiça criminal.

 “É vital que o estado consiga investir de forma vigorosa numa boa produção democrática e transparente de dados. Esse possivelmente seja um dos elementos que compromete a construção de uma eficaz política de segurança pública na Bahia”, complementa a sua reflexão com a crítica de ampliar o próprio conceito de segurança pública que retire o modelo militar do âmago das atividades que tem na violência policial um de seus pilares. 

“Os policiais não precisam ser o centro da segurança pública”, sintetiza Dudu.

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