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O filme, a transição e os atestados de óbito

Samarone Lima / 13/12/2024
Essa é uma fotografia de uma cena do filme Ainda estou aqui, similar a uma foto antiga em tons levemente desbotados, retratando um ambiente familiar e acolhedor. A cena acontece em uma sala de estar com uma estante grande cheia de livros ao fundo. No centro, há um sofá onde estão sentadas cinco pessoas. À esquerda, uma mulher está de pé, vestindo uma saia clara e blusa branca, segurando algo pequeno nas mãos. Ao lado dela, uma criança ou jovem está sentado em uma cadeira pequena. No sofá, há quatro mulheres adultas, com roupas casuais típicas de um dia descontraído. À direita do sofá, um homem sorri, sentado em uma cadeira. Sobre a mesa central estão alguns livros e objetos, reforçando o clima de uma reunião ou encontro descontraído em um lar repleto de leitura e conversa.

Crédito: Divulgação

“Ainda estou aqui”, filme dirigido pelo cineasta Walter Moreira Salles, que conta a história da prisão e desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, em 1971, e o impacto em uma família de classe média, no Rio de Janeiro, durante a ditadura, chegou a 2,5 milhões de espectadores, em um mês.

O filme mostra o impacto da violência política, e a luta de Eunice Paiva, sua esposa, por verdade e justiça. No momento inicial, movida pelo desafio da sobrevivência, pela sobrevivência, com cinco filhos, Eunice tem que decidir tudo, e não esmorecer, psiquicamente.

A repercussão do filme, além das indicações a prêmios internacionais, como Oscar e Globo, provoca um sentimento catártico. O país vê, no cinema, o que o pacto político conservador, nos últimos anos da ditadura, produziu: a transição do poder dos militares para os civis aconteceu sem justiça, memória ou reparação.

Somente 25 anos depois do desaparecimento do seu marido, Eunice Paiva conseguiu o atestado de óbito.

Sem o corpo, sem um documento que comprovasse sua morte, ela não consegue movimentar a conta bancária do marido, nem receber o seguro de vida. A toque de caixa, vende o valioso terreno da família, para não faltar comida em casa e pagar o salário da empregada. Um momento impactante, para os filhos, é quando são informados que a charmosa casa onde moram, à beira da praia, no Leblon, Rio de Janeiro, foi alugada, e teriam que se mudar, em poucos dias, para o apartamento da família, em São Paulo.

É uma das cenas mais comoventes do filme, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que tinha 11 anos, quando seu pai foi levado de casa. A casa vai sendo desmontada, cada filho vai chorando ou engolindo seu choro, deixando os amigos para trás, a escola, o bairro, as memórias, a vida que teriam naquele lugar.

Reconhecimento tardio

Somente há três dias, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou a questão dos atestados para os desaparecidos, durante a ditadura. Uma luta que começou em pleno regime militar, e não foi amparada pela Lei da Anistia, de 29 de agosto de 1979.

“Os desaparecidos não tinham Atestado de Óbito, tinham ‘Atestado de Ausência’, e ninguém aceitou isso”, lembra Diva Soares Santana, diretora do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia, conselheira da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e familiar de desaparecidos políticos, que teve a irmã, Dinaelza Santana Coqueiro, desaparecida na Guerrilha do Araguaia, em 1974.

Em 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso, foi sancionada a Lei 9140, que obrigava os cartórios fornecerem atestados de óbito.

Como tem acontecido, ao longo dos anos, a identificação dos crimes cometidos pela ditadura tinha subterfúgios. No espaço para causa mortis, o cartório teria que colocar “de acordo com a Lei 9140/95”. No espaço para o local de desaparecimento, o texto seria o mesmo: “de acordo com a Lei 9140/95”.

A presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, procuradora da República Eugênia Gonzaga, que vinha lutando para a mudança no do documento, lembrou que o texto “sempre foi muito ofensivo”, porque “resolvia problemas burocráticos, mas não reparava, não dizia a verdade”.

Com a decisão do CNJ, o texto do documento terá uma reparação histórica. Na causa mortis, vai constar a informação “de morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”.

“É um acerto de contas legítimo com o passado”, afirmou o presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso.

“É uma conquista, depois de tantos anos, conseguir um atestado desse, mas falta muita coisa”, lembra Diva.

AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.