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O golpe de 64 reencarna: do fazer-morrer ao deixar-morrer

Marco Zero Conteúdo / 31/03/2020

Arte de Thiko Duarte

Por Manoel Severino Moraes de Almeida*

Quando
o Palácio do Campo das Princesas foi sitiado pelas forças armadas
em 31 de março, estava em curso no Brasil o golpe civil-militar de
1964. Ao entrarem na sede do governo estadual os comandantes
militares encontraram um governador confinado, mas cidadão do mundo,
consciente de seu legado para a história política de Pernambuco.
Arraes saiu deposto do poder, mas não capitulou à intolerância que
fundamentou as bases teóricas da aliança pontual entre setores da
classe média, instituições religiosas, militares e empresários. A
ruptura institucional tinha como argumento a iminente ameaça
comunista, que nunca veio.

Na passagem dos 56 anos do golpe civil-militar, ao lermos o noticiário político nacional, o governo do país é formado em grande parte por militares que estão dentro do Palácio do Planalto ocupando importantes funções políticas nacionais, em um governo eleito pelo voto popular e apoiado pelo governo da América do Norte.

O que antes era Estado de Exceção, tornou-se um “Estado de Pânico” de proporções mundiais, com o alastramento de uma pandemia. Como traçar uma relação entre saúde pública e período ditatorial? Acontece que, em 2020, temos mais uma vez a interferência dos Estados Unidos nas questões políticas brasileiras, quando o “complexo de vira-lata” é perpetuado pelo atual presidente da República. Mas, ambos, Trump e Bolsonaro, como seus antecessores Kennedy e Jango, talvez não consigam mensurar o que significa a disseminação de uma ameaça social: outrora, o comunismo, atualmente, um vírus. Na década de 1960, o medo venceu a democracia.

O confinamento se tornou uma política de saúde pública, diante de uma ameaça global que é o COVID-19. O vírus que parou o mundo pode significar um risco concreto à vida de milhares de brasileiros . Todos os esforços parecem ser pouco para evitarmos a indignidade do colapso do sistema de saúde no Brasil, o que vem ocorrendo na Itália e na Espanha. Ainda mais em tempos caóticos, o cenário político de campo minado se tornou ainda mais tenso: por um lado, os que priorizam a vida, enquanto o presidente, por sua vez, parece estar mais preocupado com um possível colapso da economia. É preciso apontar, então, a fragilidade do Estado Democrático de Direito.

O Supremo Tribunal Federal (STF) disponibilizou, no dia 27 de março, o Painel de Ações COVID-19. A ferramenta permite acompanhar diariamente os dados sobre todos os processos em curso no STF, em que existam pedidos relacionados à pandemia, além das decisões tomadas pelo Tribunal sobre o tema.

Dentre as decisões, uma das vitórias da advocacia brasileira mais expressivas foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB, na Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) 6351, nesta ação com pedido de liminar, o ministro Alexandre de Moraes decidiu suspender a eficácia do artigo 6º-B da Lei n° 13.979/2020, incluído pela Medida Provisória 928/2020. A referida medida previa uma restrição às informações prestadas por órgãos públicos enquanto durar a emergência de saúde pública decretada em todo país.

Os governadores e prefeitos seguem defendendo o isolamento social e editando decretos que determinam o fechamento do comércio, serviços e espaços públicos para impedir aglomerações. Tudo em sintonia com as recomendações da Organização Mundial da Saúde, de especialistas e cientistas – indo de encontro, porém, com o posicionamento oficial do presidente.

A
pandemia como fenômeno tem suas características epidemiológicas
conhecidas pela ciência,

é uma alteração, espacial e cronologicamente delimitada, do estado de saúde-doença de uma população, caracterizada por uma elevação progressivamente crescente, inesperada e descontrolada dos coeficientes de incidência de determinada doença ou agravo, ultrapassando e reiterando valores acima do limiar epidêmico preestabelecido¹.

Os especialistas são unânimes em afirmar que o afastamento social é uma medida eficaz na diminuição da curva de pessoas contaminadas e para garantir tempo para organizar as estruturas hospitalares.

As pandemias não são uma novidade na história do mundo existem como marcadores para provar as nossas limitações, como bem destacou Rachel Lewinsohn, em sua obra “Três Epidemias: lições do passado”,

na tragédia Romeu e Julieta, publicada em 1597, Shakespeare (1564-1616), reproduzindo no diálogo a linguagem medieval, usa o termo infectious pestilense (pestilência infecciosa). Nas crônicas medievais francesas, os nomes mais encontradiços são: a doença das ínguas ou das bossas, ou a grande mortandade. E, em toda a Europa, eram corriqueiros: a febre, a infecção e – o termo mais comum de todos – a epidemia².

Alertam os países de suas fragilidades sanitárias, econômicas e sociais. Negá-las, entretanto, não responde a principal pergunta: como tratar a doença? Diferente disso, subestimar o vírus, pode gerar danos irreparáveis à vida.

Nossas
instituições, neste momento, vivenciam uma dimensão inesperada da
crise que é o envenenamento da opinião pública pelo vírus da
intolerância política. Sua evolução encontra terreno fértil no
desprezo aos povos indígenas, negros, moradores de rua e pessoas em
privação de liberdade, entre outros.

Os sintomas do adoecimento político são os discursos de ódio e a politização da crise sanitária, que elevou a temperatura partidária nacional em uma escalada nunca imaginada na história do pacto federativo. O quadro só não ficou pior, porque no Congresso Nacional, as deputadas e deputados, conseguiram unidade na agenda pró direitos sociais, com a concessão de um auxílio financeiro destinado a famílias desamparadas, abrindo espaço a duras penas no legislativo – mormente ser uma política praticamente universal nas democracias desenvolvidas, e, por isso, representar o mínimo da humanidade e do resguardo do Estado e da vida.

Os paralelos autoritários são inevitáveis, os ditadores não acreditam na opinião contrária às suas crenças, em geral, apegam-se na força das baionetas contra o argumento da liberdade. A natureza autoritária da ditadura civil-militar, voltou em gestos, atos e projetos que não unificam o país, mas utilizam o preconceito como arma para permanentemente reposicionar-se na opinião pública.

O
desmonte das políticas de memória no país podem não ser as únicas
vítimas da falta de efetivação da justiça de transição, isto
porque grande parte do legado autoritário pode ressuscitar a ideia
de um inimigo interno.

Optou-se,
no Brasil, pela lógica de uma anistia como amnésia, negando à
sociedade o direito à memória e à verdade. A negação a estes
direitos, associada a um revisionismo histórico, reposicionou grupos
de extrema direita que usam o discurso do ódio para produzir uma
cortina de fumaça contra o reconhecimento dos crimes
internacionalmente reconhecidos e que foram praticados pelos agentes
do governo militar no passado recente.

A
prática política desses grupos é um pacto permanente contra as
instituições democráticas, saudosos da ditadura militar,
apresentam-se como vítimas de perseguições, de toda natureza,
inclusive dos argumentos científicos. Seus adeptos são contrários
a qualquer discurso fundamentado na inclusão social, por ser para
eles políticas de matriz de esquerda. Tudo passou a ser disputado,
uma corrida de narrativas diária, como tem sido a proposta de
confinamento vertical.

O confinamento social de hoje não pode ser confundido como perda de direitos, mas, ao contrário, é um ato de cidadania, assegurado pela Constituição. Trata-se da defesa da saúde individual e de milhares de pessoas que não serão infectadas pela aglomeração de pessoas. Esquecemo-nos, talvez, de que a origem da palavra economia vem de oikos nomos³, lei da casa. Retirar de sua origem, ou seja, de sua fonte, o Capital como primazia e fim último é insistir em perverter a função da própria economia; qual seja, o bem estar do lar, primeiro envoltório seguro das famílias.

E quem diria, estar em casa é uma conquista da democracia. Esta consciência pode ajudar nossa sociedade a sair do isolamento social mais fortalecida do que entramos, na medida que tenhamos consciência que a pandemia não tem cura, mas seus efeitos podem ser combatidos com solidariedade, compaixão e a defesa intransigente da dignidade humana.

* Advogado, professor do Curso de Direito da UNICAP e doutorando em Direito pelo PPDG/UNICAP.

1. ROUQUAYROL, Maria Zélia; GURGEL, Marcelo. Epidemiologia & Saúde. 7.ed. – Rio de Janeiro: MedBook, 2013. P. 105.

2. LEWINSOHN, Rachel. Três Epidemias: Lições do Passado. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.

3. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,2001. p.1097.

AUTOR
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Marco Zero Conteúdo

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