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Sob a justificativa da urgência do cuidado, as Comunidades Terapêuticas (CTs), ainda sem regulamentação e com uma visível incapacidade governamental de fiscalizá-las, vêm ganhando força e financiamento público como modelo de tratamento de usuários de álcool e drogas. O mercado em torno dessas entidades – que muitas vezes violam os direitos humanos e têm no isolamento, na prática religiosa e no trabalho forçado um caminho de atuação – vem se mostrado cada vez mais lucrativo e orquestrado com os atores políticos, alguns à frente de CTs, como a família Collins em Pernambuco.
No âmbito federal, o país passou a experimentar, com o presidente Jair Bolsonaro (PSL), uma mudança bastante conservadora e que incluiu as Comunidades Terapêuticas no Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas. No âmbito estadual, o movimento do Governo do Estado e de parlamentares evangélicos também vem dando mais evidência a esse modelo.
Na visão de especialistas ouvidos pela Marco Zero Conteúdo, o financiamento público de CTs acontece em desfavor das políticas públicas de saúde mental abertas e de base comunitária e, num contexto de desmonte e de congelamento dos investimentos em saúde e educação, pode comprometer a ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que atua a partir da redução de danos, do acesso e da promoção de direitos das pessoas, baseados na convivência em sociedade e nos preceitos legais da desospitalização e da construção da autonomia do indivíduo.
A Raps é composta por serviços e equipamentos públicos variados, como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), as Unidade de Acolhimento e os Serviços Residenciais Terapêuticos. Os Caps oferecem um atendimento interdisciplinar, com uma equipe multiprofissional que reúne médicos, assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras, entre outros especialistas.
Em Pernambuco, o apoio público às Comunidades Terapêuticas cruza com o intrincado jogo político-partidário. A reforma administrativa do governador Paulo Câmara (PSB), no início do ano, quando assumiu o segundo mandato, trouxe como uma das principais novidades a criação da Secretaria de Políticas de Prevenção à Violência e às Drogas. Quem assumiu a pasta, com um orçamento de R$ 37,6 milhões, foi o então secretário de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude, o mineiro Cloves Benevides.
Ele é filiado ao PP e indicação de Eduardo da Fonte, deputado federal e presidente estadual do partido, que detém a segunda maior bancada da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), com 10 deputados eleitos em 2018. Em 2017, o governador já havia começado a reforçar a aliança junto ao PP, quando, tendo PSDB e DEM como adversários na disputa eleitoral, a bancada evangélica passou a ter outro peso para o PSB.
Benevides, hoje com 41 anos, começou sua atuação na política de drogas aos 23 anos. Entre os diversos cargos que já ocupou, esteve à frente da antiga Diretoria de Articulação e Projetos da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça. No comando da Subsecretaria de Políticas sobre Drogas de Minas Gerais, entre 2003 e 2015, nas gestões do PSDB de Aécio Neves e Antonio Anastasia, Benevides foi um dos responsáveis por articular e fornecer a matriz de atuação e qualidade para que as CTs pudessem se credenciar e ficar aptas a receber verbas do estado.
Segundo fontes mineiras da área de saúde mental ouvidas pela Marco Zero Conteúdo, ele funcionava como “um porta-voz das Comunidades Terapêuticas dentro do governo e do parlamento”, “um verdadeiro militante da política proibicionista e das CTs”. O secretário, no entanto, se coloca como uma pessoa de atuação moderada, pautada na necessidade permanente do diálogo e na pluralidade de modelos de atuação respeitando o caso particular e a escolha de cada indivíduo.
Faz questão de dizer que é contra a internação involuntária em Comunidades Terapêuticas e que continua batalhando por mais orçamento para ampliação do Programa Atitude, reconhecido internacionalmente, criado no governo de Eduardo Campos (PSB) e baseado na prevenção, na atenção e no acolhimento a usuários de drogas e seus familiares nos territórios.
Equipes multidisciplinares fazem atendimentos nas ruas com um trabalho de sensibilização e encaminhamento à rede pública. O Atitude conta ainda com espaços de acolhimento 24h e oficinas de arte, cultura, reciclagem e cidadania. O programa possui quatro núcleos (Recife, Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho e Caruaru). Com um orçamento de R$ 17 milhões, atende em média 3 mil pessoas ao ano.
Sobre a nova política de drogas de Bolsonaro, Benevides diz “não ser ser um defensor dos extremos” e reforça a urgente necessidade de regulamentação das CTs. “São 50 anos de atuação das Comunidades Terapêuticas. Alguns falam no vazio da atuação pública, mas eu não acho que seja assim. Acho que foi na construção de um modelo que teve certa adesão e hoje o país tem que encontrar um caminho para regulamentação” (confira outros trechos da entrevista ao longo da reportagem).
O deputado estadual Pastor Cleiton Collins (PP), reeleito em 2018 com a segunda maior votação do estado (106.394 votos), desarquivou recentemente um Projeto de Lei para regulamentar as Comunidades Terapêuticas no estado. A pauta deverá ser um dos destaques da Alepe na volta do recesso. O PL já foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça. Numa articulação feita pela mandata coletiva Juntas (Psol), o deputado João Paulo (PCdoB) pediu vistas e o PL será debatido na Comissão de Direitos Humanos, presidida pelas Juntas.
O pastor Collins é casado com a vereadora do Recife Missionária Michele Collins (PP), a mais votada da capital (15.357 votos) e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Também é fundadora da Federação Pernambucana de Comunidades Terapêuticas, assessora de articulação social e institucional da Federação de Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil e assessora de políticas públicas da Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas.
O casal está à frente da Saravida, uma das CTs mais estruturadas localmente. Mas não é só no estado que os Collins mostram sua força. No Recife, a atual secretária executiva de Políticas sobre Drogas, Ana Paula Marques, era coordenadora geral da Saravida. O prefeito de Olinda, Professor Lupércio (Solidariedade), também é fundador de uma comunidade terapêutica, a Casa de Recuperação Cristo Liberta, em Igarassu. Mesmo Lupércio tendo apoiado Bruno Araújo (PSDB) e Mendonça Filho (DEM) e a vice tendo sido dada a Luciana Santos (PCdoB), ex-prefeita de Olinda e adversária do professor, o Solidariedade continuou na Frente Popular, de Paulo Câmara.
Há um ditado que diz “Entre cadeia e caixão, é melhor a Bíblia” e que costuma ser usado em defesa do modelo proposto pelas Comunidades Terapêuticas. Na ausência de uma estrutura pública adequada e suficiente, muitas vezes elas funcionam como locais de proteção física de pessoas ameaçadas pelo tráfico. Mas essa discussão precisa ser bem mais ampla, envolvendo gestores públicos, profissionais de saúde e instituições voltadas à promoção e proteção de direitos, para pensar que modelos de saúde pública estão sendo propostos no Brasil atualmente.
Um relatório de inspeção nacional do Ministério Público Federal (MPF) publicado em 2018, com dados de 2017, aponta situações do cotidiano e práticas adotadas em Comunidades Terapêuticas nas cinco regiões do Brasil – duas estão em Pernambuco: a Novo Tempo, Igarassu, e a Reviver, em Paudalho. O resultado geral? Em todas as 28 CTs, foram identificadas práticas que configuram violações de direitos humanos. A inspeção identificou a adoção de métodos que retomam a lógica da internação como primeiro e único recurso de tratamento.
Com 150 páginas, o material foi uma iniciativa do Conselho Federal de Psicologia, do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal.
São unidades, em sua maioria, instaladas em locais distantes dos centros urbanos, de difícil acesso, cercadas por muros, grades, portões e, algumas vezes, com vigilantes e punições, que vão de trabalho forçado a isolamento, em caso de fugas ou descumprimento de regras. Muitas delas são promotoras de exclusão e de maus-tratos, veem na abstinência o único caminho possível, apostam na prática do proselitismo religioso e não é rara a imposição de uma rígida rotina de orações.
Em apenas quatro das 28 CTs visitadas não foram presenciadas ou registradas restrições à liberdade religiosa e, em ao menos 14, não havia respeito à diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero.
Confira alguns dos relatos que constam no relatório do MPF:
Cada participante se apresentou a partir da pergunta feita pela facilitadora do grupo: “Quem é você?” […] Nesse momento, foram relatadas muitas queixas de tratamento indevido das “residentes” por alguns monitores. Falou-se das situações de como chegaram ali (por meio de resgate), das medicações utilizadas (garapa, coquetéis de medicamentos fortes, ansiolíticos, antidepressivos, hipnóticos). Mencionou-se as tarefas diárias, ditas laborterapia, o clima de violência verbal e até violência física entre as internas. Questionaram mistura de usuárias com dependência química, transtornos mentais, pessoas em conflito com a lei, pessoas de várias idades, desde adolescentes até idosos. Houve relatos de idosos com depressão. (PE 02 – Reviver – Paudalho)
“Somos trancadas todos os dias depois do almoço, entre 13h e 14h30, para o que eles chamam de sonoterapia; e depois das 20h às 6h. Nos finais de semana é até pior porque a sonoterapia dura quatro horas depois do almoço. Não importa se você está com sono ou não. Se não estiver, vai ficar trancada do mesmo jeito. De noite, eles ficam lá embaixo no quarto da monitoria. Se houver alguma emergência, daqui que eles venham nos socorrer, já estaremos mortas. Uma vez uma interna se cortou e por mais que ela gritasse demorou muito até virem socorrê-la. De vez em quando, uma sofre acidente e o atendimento é uma demora.” (PE 02 – Reviver – Paudalho)
As CTs também costumam praticar a laborterapia, isto é, trabalho não remunerado e sem qualquer garantia trabalhista empregado como método terapêutico e disciplinar, o que é condenado pelos princípios da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001). Os internos, em geral, fazem serviços de limpeza, cozinha, manutenção e vigilância e cuidam de hortas, plantações e animais.
A Marco Zero Conteúdo ouviu, por telefone, o gerente da Novo Tempo, em Igarassu, fundada em 2012. Na conversa, a reportagem perguntou o que George Lins, terapeuta e psicanalista, achava sobre direitos humanos. Ele foi taxativo: “eles (sic) já trouxeram tantos prejuízos a nós e às famílias que deveriam se chamar ‘direito dos manos’”. Depois disse: “Eles (sic) não têm que dar opinião nem constituir leis, esse órgão (sic) tinha que ser extinto”. Na Novo Tempo, que não recebe verba pública, um tratamento com internação voluntária e duração de 180 dias custa R$ 10 mil.
Citando que poderia “até estar sendo antiético”, George, que cursou administração e psicologia, argumenta que “os direitos humanos não sabem de nada, que vão no intuito de olhar o que possa estar supostamente errado e tomam uma versão sem ouvir o outro lado”. A prova é que, segundo o gerente, dos três residentes ouvidos pela inspeção do MPF em 2017, atualmente um está na Novo Tempo, o outro passou um tempo trabalhando na comunidade e o terceiro havia ligado no dia anterior dizendo que precisava de ajuda.
George também defendeu a entidade dizendo que toda medicação é prescrita por uma psiquiatra perita, que visita a unidade, atualmente com 23 residentes, uma vez por semana. Além disso, há um esquema de plantão 24h por telefone para casos emergenciais e um carro disponível se houver necessidade hospitalar. De plantão no local, presencialmente, há sempre um técnico de enfermagem e a “equipe de pátio”. Sobre o esquema de medicação e a “garapa”, ele disse que tudo é prescrito pela psiquiatra. “Quando se opõem a tomar, há a necessidade de intervenção física, mas não é de agressão. Se for necessário, se faz a contenção mecânica, com uma espécie de amarras”.
O único ponto da inspeção com o qual George concordou foi a necessidade de melhoria da cozinha, atualmente reformada, de acordo com ele, e hoje o “melhor refeitório a nível Norte e Nordeste”. “Já contactamos o Ministério Público Federal e o municipal (?) para que viessem novamente nos visitar e desconstruir esse relatório”. A reportagem não conseguiu contato com a Comunidade Terapêutica Reviver por nenhum dos dois telefones disponibilizados no site da entidade.
Em agosto de 2018, dois meses antes de ser reeleito em primeiro turno, o governador Paulo Câmara (PSB) lançou o Programa de Apoio às Comunidades Terapêuticas de Pernambuco, através da assinatura do decreto nº 46.404, “destinado a qualificar e a fortalecer as parcerias com a sociedade civil e governo do estado”. Entre os objetivos do programa, que envolve diversas secretarias, está capacitar, auxiliar, orientar e monitorar o funcionamento dessas entidades. Na prática, é um instrumento de alinhamento entre as CTs e o Poder Executivo.
Estariam habilitadas a participar do programa somente comunidades terapêuticas aprovadas por meio de seleção pública. Mas o edital, quase um ano depois, ainda não foi divulgado e nenhum recurso foi destinado ao programa. Nos bastidores, lê-se o atraso como uma resistência e a iniciativa como um aceno mais político.
Em junho deste ano, em reunião na Cúria Metropolitana, uma comissão foi criada para aproximar CTs de diferentes religiões, avançando mais um passo no trabalho de fortalecimento das entidades no estado, sempre com o argumento de que é preciso “unir esforços na atenção às pessoas com dependência química”.
Na lista de presença do encontro, estavam o secretário Cloves Benevides; seu secretário executivo, Ronaldo Targino; Cleiton Collins; Michele Collins; e dom Fernando Saburido – a Igreja Católica está à frente da Fazenda Esperança, comunidade terapêutica com 35 anos de atuação e 86 unidades no Brasil. Na reunião, também ficou decidida a liderança da comissão: o missionário Hamilton Apolônio, fundador da Comunidade Católica Boa Nova.
Na Boa Nova, o tratamento é baseado nos três pilares “oração, trabalho e vida fraterna”, segundo consta no próprio site da entidade católica. Fundada há 30 anos, tem 14 unidades, entre casas de acolhimento e de missão, sendo 13 espalhadas pelo Nordeste e uma na África. Entre os trabalhos desenvolvidos pelos internos, esta a confecção de uma vassoura ecológica.
O dinheiro da venda não fica com os dependentes, é revertido para a manutenção das casas, assim como a verba arrecadada em eventos mensais com bazar e comercialização de comida e artigos religiosos, como CDs, terços, livros e camisas.
Apesar da presença de Cloves e de seu secretário executivo, Ronaldo, a assessoria de imprensa esclareceu que a Secretaria de Políticas de Prevenção à Violência e às Drogas “não tem relação com a comissão criada na reunião na Cúria Metropolitana”.
“Não somos contra as Comunidades Terapêuticas, mas contra que o estado financie-as em detrimento de suas políticas de saúde mental e redução de danos ou que esses espaços pratiquem torturas e violem os direitos humanos”, esclarece Priscila Gadelha, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de Pernambuco (Cepad), redutora de danos do Movimento Brasileiro de Redução de Danos e articuladora da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa). Priscila também faz parte da recém-lançada Escola Livre de Redução de Danos do Recife.
No ano passado, o Governo de Pernambuco foi acusado por alguns conselheiros do Cepad de interferência no processo de votação para o cargo de presidente, relatando pressão e recebimento de ligações de servidores e funcionários para votar na candidata Rawilsean Calado, diretora-presidente da Saravida. Segundo matéria publicada pelo Jornal do Commercio, o gerente de Conselhos e Mediação de Conflitos da Secretaria de Desenvolvimento Social, Josenildo Sinésio, negou na época qualquer ingerência do governo, embora tenha reconhecido que havia uma preferência da gestão estadual pelo nome da conselheira indicada pelos Collins.
Neste vídeo publicado em 2013, Benevides, então subsecretário de Políticas sobre Drogas do estado de Minas Gerais, durante o Encontro Nacional das Comunidades Terapêuticas e Pastoral da Sobriedade, parabeniza pela atuação em defesa das CTs o deputado estadual carioca Márcio Pacheco (PSC), advogado, evangelizador e membro da Renovação Carismática Católica.
Nas imagens, o atual secretário pernambucano elogia o parlamentar citando sua participação no encontro e seu desempenho, que causou a todos “um sentimento muito positivo, de elogio, de reconhecimento, de entender que verdadeiramente um cristão, quando assume as bandeiras da família e da defesa da sociedade, tem condição de, muito mais que o discurso, transformar em lei, ação prática e projeto efetivo aquilo que a sociedade brasileira, e sobretudo a nossa igreja, quer como resposta”.
Benevides, que já presidiu o Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de Minas Gerais, teve forte ligação política com Elias Murad, deputado federal (PSDB) por Minas por três vezes e deputado constituinte (PTB), médico, farmacêutico, professor, ferrenho proibicionista, falecido em 2013. Cloves ficou conhecido a partir de 2003, quando assumiu a Subsecretaria de Políticas Antidrogas da Secretaria de Esportes e de Juventude, que depois passou para a Secretaria de Estado de Defesa Social, com o nome de Subsecretaria de Políticas sobre Drogas, ocupando os cargos nas gestões dos governos do PSDB.
Foi também presidente do Conselho Estadual Antidrogas de Minas. Saiu do Sudeste em 2015, após a vitória de Fernando Pimentel (PT), indo para Alagoas, onde também atuou na área de política estadual de drogas como secretário-adjunto e secretário executivo.
Benevides era subsecretário em Minas Gerais quando o estado, através da Secretaria de Saúde, lançou o programa Aliança pela Vida, no governo Antonio Anastasia (PSDB), entre 2011 e 2012. O programa era estruturado em três eixos. Um era a realização de convênios com CTs e afins para financiamento de construções, compra de materiais de consumo e permanentes. O outro era o Território Aliança, de financiamento para atividades de abordagem de pessoas usuárias de drogas em situação de rua e compra de veículos de transporte. E o terceiro e último, o polêmico Cartão Aliança Pela Vida, de custeio de internação em Comunidades Terapêuticas.
Era por esse cartão, chamado por muitos de “bolsa crack”, que as famílias dos dependentes recebiam temporariamente uma bolsa de R$ 900. Desse valor, R$ 810 eram destinados ao tratamento em Comunidades Terapêuticas, com pagamento direto a essas instituições, e os R$ 90 restantes eram para custear a visita dos familiares ao interno. Para bancar os R$ 70 milhões ao ano previstos para o programa, uma lei impôs que todas as secretarias do estado deveriam destinar 1% de seu orçamento para as políticas relacionadas à prevenção e uso de drogas.
Em 2017, Benevides recebeu o Troféu Destaque da Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades Terapêuticas, Acolhedoras e Apac’s da Câmara dos Deputados, presidida pelo líder do Pros, o deputado Eros Biondini (MG). O prêmio é concedido a entidades, autoridades e personalidades que contribuíram com as atividades da frente. O secretário foi agraciado junto com nomes como o do atual ministro da Cidadania, Osmar Terra.
De maneira geral, Benevides faz “uma crítica e autocrítica de que, no Brasil, a política de drogas ainda tem baixíssima institucionalidade”. “Tanto que esses reveses, essas mudanças de rumos mais complexas e questionadas – seja pelo ponto de vista de a ou b, de quem pensa de uma maneira mais progressista ou de quem tem um comportamento mais conservador – se dão principalmente pela incapacidade da política brasileira, sobretudo o parlamento, de fazer um debate franco, sincero, honesto, verdadeiro”.
“O Brasil tem modelos e programas muito exitosos, mas não tem nada com longevidade”, muitas vezes com choques entre o que é pactuado em nível federal e as organizações estaduais e municipais. Como exemplo, ele cita o “Crack é Possível Vencer”, do Governo Dilma Rousseff (2014).
Os principais programas da Secretaria de Políticas de Prevenção à Violência e às Drogas são o Governo Presente, o Juventude Presente e o Atitude. Benevides tem neste último o exemplo mais consolidado de sucesso do país, como único programa que rompeu o ciclo dos dez anos, desde as iniciativas-piloto. Para ele, um caso na contramão disso é a política da Prefeitura e do Governo de São Paulo.
Confira alguns trechos da fala de Benevides à Marco Zero:
Muitos imaginavam que eu ia chegar aqui na caneta, em razão de um poder político hipotético, e desconstruir o Programa Atitude. É preciso dar crédito às pessoas e cobrar delas na proporção em que se dá esse crédito. Hoje eu diria que existem muito mais razões para que eu seja criticado pelas instituições com as quais eu sempre tive uma relação cordial, de construção, do que por aqueles que pensam diferente delas.
Essa Secretaria não foi criada para atender a política de drogas sozinha, ela foi criada para atender a um conceito mais alargado de prevenção e violência e política de drogas. Nosso conceito hoje tem sido ampliar a prevenção da violência com 30 mil vagas oferecidas aos jovens, implementação de 12 núcleos territoriais e discussão com coletivo para editais de projetos que reforcem as estratégias de prevenção para públicos específicos em territórios de maior vulnerabilidade. No campo da política de drogas, lançamos agora o Conselho em Foco, para debater com os municípios a importância de implementar conselhos locais como fomento ao controle social, na contramão do desenho nacional.
Nós fomos para a disputa no Conselho Estadual e perdemos. É democracia, é assim que funciona, ora se ganha e ora se perde (…) Há uma legislação em debate que é uma alternativa de regulação, agora tem parlamentares que pensam diferente, vamos fazer o bom debate e encontrar o caminhos.
O relatório do MPF, o que o País faz com ele? Quem já tem uma concepção contrária às CTs tem ali todas as evidências para dizer que o relatório valida esse entendimento. Quem diz que os serviços são bons se apega a um ponto metodológico e diz que o relatório não reflete a realidade. E aí ambos vão militar. Mas que horas vamos pegar os casos concretos do relatório e vamos tratá-los, inclusive na esfera criminal, quando há violação de direitos?
Na semana passada, o Ministério da Cidadania, através da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred), lançou o mapa virtual de comunidades terapêuticas cadastradas junto ao governo federal, sob o argumento de que a “ferramenta busca democratizar o acesso ao tratamento da dependência química”. Em Pernambuco, dez unidades aparecem cadastradas no mapa, nenhuma delas na capital, somando quase R$ 3 milhões em previsão de recursos para 208 vagas. Desse total de vagas, somente 12 são para mulheres, sendo apenas uma delas para mães. Isso mostra o quanto a política baseada em CTs exclui as mulheres.
O mapa online oferece georreferenciamento, informações como nome, e-mail, número de vagas e recursos públicos aportados na unidade. É uma tentativa de mostrar apoio às famílias e transparência à população diante de um serviço envolto em tantas comprovações negativas.
Em março, o Ministério da Cidadania anunciou a ampliação do número de vagas gratuitas para tratar dependentes químicos. Mais 216 Comunidades Terapêuticas em todo o Brasil foram selecionadas através de retificação do edital de seleção lançado em abril de 2018, no governo Michel Temer. No dia, em maio deste ano, no ato em Brasília, três portarias que instituem o cadastramento, a fiscalização e a certificação das entidades também foram assinadas. Assim, ao todo, o governo federal injetará R$ 153,7 milhões, ao ano, para 10.883 vagas em 496 entidades. Em cada vaga há, em média, três acolhimentos por ano.
Desses 216 novos contratos, firmados mediante edital de seleção, três são de Pernambuco, sendo dois deles com a Fazenda Esperança – em Garanhuns, no Agreste, e em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife – e o outro com a Comunidade Paniel, em Petrolândia, no Sertão. A maioria das CTs de Pernambuco beneficiadas pela ampliação do governo Bolsonaro tem contratos firmados desde 2018, no governo Temer, que já havia dado início, em menor grau, à aproximação e ao financiamento das entidades. Em outubro do ano passado, ele anunciou a ampliação, em mais de 50%, do número de vagas custeadas pelo governo federal, a um total de R$ 90 milhões. Nas palavras do ex-presidente, “essas comunidades foram selecionadas para desenvolver as atividades que são uma conexão entre o estado e a sociedade em favor da família”.
Na época, a fala do então ministro da Saúde, Gilberto Occhi, também já reforçava a virada de atuação: “O Ministério da Saúde já vinha atuando em várias frentes contra a dependência química com hospitais e Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e agora amplia a ação para Comunidades Terapêuticas, que cuidam não só da droga, mas também do álcool. É um trabalho muito importante. Nossa previsão era credenciar menos vagas (6 mil) e agora vamos chegar a 9 mil vagas e essas vagas podem ter uma média de quatro meses de tratamento, elas se multiplicam por três durante o ano, algo em torno de 28 mil atendimentos em todas as regiões brasileiras”.
Em 2010, último ano do segundo governo Lula (PT), o programa “Crack, é Possível Vencer” foi quem incluiu as Comunidades Terapêuticas entre os dispositivos do eixo de cuidado, como Serviços de Atenção em Regime Residencial Transitório. Foi a partir de 2011, no governo Dilma Rousseff (PT) que nasceu o financiamento direto, através de edital, a essas entidades, através da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), e o lobby em Brasília, com nomes fortes como Osmar Terra.
A pedido da Marco Zero Conteúdo, uma das fontes desta reportagem levantou, em números, os investimentos do governo mineiro da época no Programa Aliança pela Vida, assim como seus resultados, em confronto com as verbas de implantação e fortalecimento dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico e seus similares que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Nos Planos Plurianual de Ação Governamental previstos para os anos de 2014 constavam para o Aliança pela Vida R$ 26 milhões e para a Raps, cerca de R$ 11,32 milhões. Em 2015, R$ 45 milhões e R$ 23 milhões, respectivamente.
De sua criação até o final do ano de 2014, o Aliança pela Vida credenciou 74 comunidades terapêuticas, com 1.275 vagas. “Após conhecermos a fundo o que acontecia no programa, constatamos que o resultado clínico das CTs era pífio, a rotatividade das vagas era enorme e o tempo médio de permanência era de menos de um mês”, relatou uma pessoa que trabalha no governo mineiro.
A Coordenação de Saúde Mental realizou, no final de 2015, após cerca de três anos da implementação do Aliança Pela Vida, vistorias em 42 das 74 CTs credenciadas. Dessas, 22 não tiveram o contrato renovado por causa da gravidade das situações encontradas, tanto do ponto de vista do descumprimento de exigências mínimas presentes no edital de credenciamento quanto em relação a questões assistenciais e violações de direitos humanos. As outras 20 tiveram a chance de novo contrato, com prazo para sanarem as irregularidades encontradas.
Além dessas 42 vistoriadas, em outras cinco CTs foram abertas auditorias tendo em vista a gravidade das ocorrências, todas elas com desvio de recursos financeiros. Após o resultado, o contrato de todas elas foi rescindido, algumas tendo que devolver dinheiro.
Em 2015, o PT foi eleito para governar o estado e a gestão Fernanda Pimentel foi, aos poucos, desativando os contratos e convênios nos três eixos do programa, não sem resistência e ameaças parlamentares.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com