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O MST quer acabar com o MST

Joel Santos Guimarães / 29/01/2020

Foto: Flickr/prodbdf

“Nós queremos acabar com o MST”. Para espanto do leitor, o autor da frase é Gilmar Mauro, um dos coordenadores nacionais do próprio Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

No dia em que o MST celebra só 35 anos da realização do seu primeiro congresso em Curitiba, Mauro fala sobre a trajetória, as vitórias e as derrotas de um dos mais importantes movimentos sociais da história da América Latina desde sua fundação.

Para ele, “enquanto existir uma família sem terra, seremos todos sem terra”. Para além da luta pela reforma agrária, principal bandeira norteadora das ações do movimento, Mauro propõe mudanças na forma de produzir e organizar a agricultura, com investimentos na agroecologia e em feiras da reforma agrária nas grandes cidades.

Acompanhe abaixo a entrevista exclusiva de Gilmar Mauro:

Olhando para o passado, é possível prever qual o futuro da luta pela terra no Brasil?

Nós queremos acabar com o MST. Mas os latifundiários não precisam soltar rojões e beber champanhe para comemorar. É preciso deixar claro que para o MST acabar é necessário primeiro fazer a reforma agrária popular. E para isso acontecer há um longo caminho a ser percorrido. Isso faz com que a gente tenha um problema grave com a burguesia brasileira , pois mexemos numa coisa sagrada para o capital que se chama propriedade privada dos meios de produção.

Os fundadores previam que o MST se tornaria o maior movimento social da América Latina?

Desde o começo, havia uma compreensão política de que era necessário criar um grande movimento pela reforma agrária. Claro que ninguém desenhou o movimento tal qual ele acabou se tornando. Ele surge em 1984. E aqui um parêntese, em 1984 já aconteceram as primeiras ocupações do MST. Eu tinha 17 anos e não fui. Em 1985, entrei no movimento e fui para uma ocupação. Ou seja, eu fui base do MST. Acabei sendo assentado em 1986 e meus pais vivem no assentamento. Passei o lote para o nome deles e estão assentados até hoje.

I Congresso do MST, em janeiro de 1985 (Crédito: Itamar Garcez)

É
possível fazer um balanço das conquistas e derrotas do MST nesses
35 anos?

O
balanço é muito positivo. Nós conseguimos construir um movimento
de massa em nível nacional, com reconhecimento internacional.
Primeiro foi necessário organizar os sem terra para lutar. Aliás,
não faz nenhum sentido construir uma organização que não responda
às necessidades de sua categoria. Além disso, nós sempre
conjugamos a luta econômica imediata com a luta política.

É por isso que nos princípios do MST estão incorporados à luta pela reforma agrária Popular e por transformação social. Nós achamos que foi um erro histórico as organizações que separaram a luta política da luta imediata; elas são inseparáveis.

Ou seja

Nós vinculamos o tema da terra com a questão da cooperação e de uma produção que beneficie os agricultores e também os consumidores. Por isso, mantivemos os assentados dentro do MST. É que no entender do MST enquanto existir uma família sem terra, seremos todos sem terra. Muitos defendiam que os assentados deveriam criar um movimento e o MST só deveria cuidar de sem terra. Ou seja, dos acampados. Mas o MST, por não separar a luta econômica da luta política manteve a todos no mesmo espaço organizativo.

E
qual foi o resultado dessa opção?

Isso foi importante, porque deu força política para o MST, tanto na produção, como na organização da vida social dos assentamentos e em todo o processo de formação política e ideológica. Além disso, nós sempre garantimos a unidade do MST. E unidade com diferenças. Sabemos que temos diferenças. Sabemos que as regiões do Brasil há muita diferença do ponto de vista geofísico. Mas sempre mantivemos linhas políticas que dessem unidade dentro do movimento.

E
quanto
às
derrotas sofridas?

Ao
longo da nossa história, nós sofremos várias derrotas, sim! A
principal delas é a perda de centenas de companheiros e
companheiras. E o episódio mais marcante foi o massacre de Eldorado
dos Carajás, mas foram muitos casos por todo o Brasil, da violência
cometida pelo latifúndio contra os sem terra. Some-se a isso todo o
processo de criminalização que o MST sofreu e ainda sofre, além da
prisão de companheiros e companheiras.

O que nós temos é uma política de assentamento, fruto de muito luta. Ao longo da história deste País perderam-se muitas oportunidades de fazer a reforma agrária. Estou dizendo perderam-se, mas, na verdade houve decisões políticas da classe dominante de não fazer a reforma agrária. Tanto assim que continuamos lutando por ela depois de 35 anos. A reforma agrária não foi feita, por isso ela está na pauta do MST até hoje.

Você
acha que o MST conseguirá atingir o seu objetivo principal que é a
reforma
agrária
popular?

Ao longo do tempo o MST vem construindo alianças. É que, no nosso modo de ver, a reforma agrária não depende apenas do MST. Para conquistá-la, dependerá da correlação das forças políticas do País. Por isso, a reforma agrária para ser alcançada vai depender também de outras categorias e de outros setores que pensam completamente diferente do MST, mas que toparam estar juntos nessa luta. Eu diria até que o MST é uma das organizações mais longínquas na história do Brasil, por causa da solidariedade que teve dentro do País e da solidariedade internacional.

Foto de Sebastião Salgado publicada no livro 'Terra'

Por
que o MST elegeu a agroecologia como prioridade?

O
MST elegeu a agroecologia como uma das linhas políticas do movimento
por várias razões. Para explicá-las eu uso sempre um comparativo
de que a reforma
agrária
parece feijoada. E uma feijoada, para ser boa, precisa de vários
ingredientes que não o feijão, mas sem feijão não é uma
feijoada.

A reforma agrária é parecida, pois sem distribuição de terra ela não existirá. Mas só distribuição de terras não é a reforma agrária que nós queremos e necessitamos.

Qual
é a reforma agrária que os sem terra consideram ideal?

Aquela idéia de uma reforma distributiva, produtivista, que fez parte da origem do MST e hoje não é mais. Agora, o movimento trabalha com a ideia de uma reforma agrária aopular. É que no nosso modo de ver, é preciso mudar não só a estrutura agrária brasileira. É preciso mudar também a forma de produzir e organizar a agricultura. Não só no Brasil, mas no mundo todo. Por razões bem objetivas: há um processo de contaminação do solo, da água, dos recursos naturais muito graves, além da emissão de gases que comprometem a saúde do planeta e o futuro da humanidade.

E
o que fazer para mudar esse quadro?

Diante
desse quadro, é evidente que há uma necessidade de mudança do
padrão alimentar de todo o planeta,
inclusive com uma perspectiva mais saudável do que é hoje o padrão
alimentar majoritariamente consumido no mundo.

E
no nosso modo de ver, grande parte das pesquisas sempre esteve
voltada para as grandes empresas. É preciso mudar isso, aproximando
o campo do campus. E o campus do campo. E essa aproximação já
começa a acontecer. Não é uma aproximação que vai levar
conhecimento para os pobres agricultores ignorantes. Ora, no campo
também tem conhecimento. Agora, é evidente que nos queremos todo o
conhecimento científico e toda a pesquisa também.

Há quem vá para o campo com a ideia de que lá é tudo bonitinho, tudo lindinho. Enfim, uma visão romântica dos acampamentos e assentamentos. E eu sempre digo que o MST é um movimento de massa, não um movimento de anjos.

Quais
as lições aprendidas ao longo desses 35 anos?

Aprendemos, por exemplo, com a história das organizações das Ligas Camponesas. Ou seja, não dá para ficar só na distribuição de terra. É preciso elevar o nível de compreensão e consciência política. Por isso, a educação e a formação política e ideológica são prioridades com que o MST sempre trabalhou.

Qual
é a importância das feiras da reforma agrária e de Agroecologia
que o MST vem realizando em várias capitais e cidades do interior do
País?

De certa forma é uma tática do MST realizar essas feiras. É que, de alguma forma, elas são uma espécie de amostragem daquilo que se produz no Brasil, ao mesmo tempo, são um grande espaço de divulgação daquilo que é produzido nos acampamentos e assentamentos do MST. Isso é importante num momento de pouco espaço nos meios de comunicação que, na maioria das vezes criminalizam o MST.

Além disso, as feiras têm nos aproximado de setores com os quais nós não tínhamos uma relação mais próxima, a exemplo dos artistas, dos intelectuais e dos chefs de cozinha, além de setores da classe média que começam a ver o movimento de outra maneira, e também da classe trabalhadora, evidentemente.

As feiras podem consolidar o que pode ser definido como aliança campo-cidade?

De certa forma, sim. Nós achamos que investir na agroecologia e realizar as feiras da reforma agrária é uma maneira para dar vazão à produção agrícola dos assentamentos e acampamentos, e ao mesmo tempo, mostrar à sociedade, o papel da reforma agrária na produção de alimentos. Com isso, podemos desfazer parte dos fake news e das notícias equivocadas que tentam criminalizar o MST.

AUTOR
Foto Joel Santos Guimarães
Joel Santos Guimarães

Jornalista especializado em economia solidária, agricultura familiar, política e políticas públicas. Trabalhou na "Folha de Londrina" e "O Globo", onde esteve por mais de 20 anos exercendo diversas funções, entre elas a de chefe de redação da sucursal de São Paulo. Em 2003, fundou a Agência Meios e a Agência de Notícias Brasil-Árabe (ANBA), com Paula Quental. Foi coordenador do projeto por dez anos. Sob sua gestão, a agência conquistou 11 prêmios de jornalismo web e alcançou 1,2 milhão de acessos mensais.