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O negócio, a festa e a tradição da pega de boi no sertão de Pernambuco

Marco Zero Conteúdo / 21/10/2023
Foto em preto e branco de um grupo de vaqueiros a cavalo passando a galope pela vegetação seca da caatinga.

Crédito: Géssica Amorim/Coletivo Acauã

por Géssica Amorim, do Coletivo Acauã

Crédito: Coletivo Acauã

Eu cresci ouvindo o meu pai falar com frequência e orgulho, durante os nossos encontros semanais, sobre a primeira e última pega de boi no mato que ele organizou na fazenda Boa Vista (zona rural do município de Betânia, Sertão do Moxotó), no início da década de 1990.

Segundo ele, foram três dias de festa com apresentações de trios de forró, muita comida, bebida e a participação de mais de 200 vaqueiros e outros muitos espectadores vindos de fazendas, povoados e municípios de quase toda a região. O boi solto no mato era branco e tinha o nome de Camambá. Por ali, era tido como um dos mais valentes e difíceis de pegar no embrenhado da caatinga. Representaria a glória de qualquer vaqueiro cujo laço lhe alcançasse os chifres.

Meu pai fazia parecer que, em todo o sertão, ninguém nunca havia feito uma festa tão grande, bonita e duradoura – e eu, por muito tempo, acreditei nisso. Ele sempre falava a respeito do assunto apoiado numa frágil garantia de que tudo teria sido filmado por alguém cujo nome ele não lembrava e que, na casa de um dos vaqueiros presentes na farra daqueles três dias, localizada no pé de serra mais distante de nós, estaria guardada uma fita VHS com imagens da grande pega de boi de Zé de Santa, na fazenda Boa Vista.

Era verdade – pelo menos, a existência da fita: em 2017, pouco tempo depois de eu ter voltado para Pernambuco, após cinco anos vivendo no Sudeste, meu pai apareceu na casa de minha mãe, em Sítio dos Nunes (distrito de Flores, Sertão do Pajeú), trazendo um pendrive com imagens do que seria um resumo da afamada pega de boi da Fazenda Boa Vista. O vaqueiro guardião da fita a converteu em arquivo digital, copiou os vídeos e presenteou alguns amigos da época com o empréstimo do dispositivo para que também fizessem cópias e guardassem os registros.

Plugando o pendrive à televisão, me impressionei com o que vi, enquanto meu pai, alegre, atestava o que, em muitas versões, há muito tempo, contava e descrevia sem muita sustentação. Para mim, foi um momento de resgate – não só dos arquivos das imagens (que, até aquele momento, ninguém acreditava que pudessem realmente existir), mas do que estive distante durante o tempo que passei fora de casa.

Organizar uma pega custa R$ 50 mil, mas o lucro é garantido. Crédito: Géssica Amorim/Coletivo Acauã

Eu acabava de voltar de um período muito tenso, cinza e de muita saudade no estado de São Paulo. Olhar com mais disposição e atenção para algo tão comum e natural entre os muitos signos que compõem o que há no nosso cotidiano e na realidade plural sertaneja, me conduziu para a reaproximação de algo de que eu precisei me distanciar para enxergar a sua totalidade.

A paisagem, as expressões, os hábitos, as conversas e as toadas registradas no vídeo que meu pai me mostrou são de outra época. As imagens foram feitas em 1992 e muita coisa mudou por aqui e no resto do mundo em 31 anos. No entanto, depois de tanto tempo, tudo isso foi determinante para que eu quisesse buscar e me diluir nesse processo de reconhecimento de território e identidade.

Já se passaram sete anos desde que voltei e comecei a frequentar, observar, fotografar e aproveitar inúmeras festas de pegas de boi no mato pelos sertões do Moxotó e Pajeú. A última em que estive presente ocorreu no dia 7 de outubro, na fazenda São Gonçalo (zona rural de Betânia), organizada pelo vaqueiro Alison Siqueira, conhecido na região como Neném.

O vaqueiro tem 27 anos e organiza pegas de boi no mato desde os 22. Segundo ele, o tempo de preparação para esse tipo de evento, hoje, é de no mínimo um ano. Durante o período, ele precisa juntar dinheiro para arcar com os custos do evento, que vão da alimentação dos vaqueiros e visitantes ao pagamento das premiações dos vencedores, incluindo também as atrações contratadas para animar a festa.

Basicamente, a organização de uma pega de boi funciona assim: o dono ou a dona da festa reúne amigos e familiares, escolhe o local para o evento, manda cercar o terreno, monta uma cozinha, um bar e uma bilheteria; abate alguns bois para o churrasco dos vaqueiros e de quem vem assistir, contrata atrações musicais para o forró da noite, escolhe e confina uma semana antes da festa os bois que serão soltos no mato no dia da pega. Tudo precisa estar bem alinhado e os horários precisam ser cumpridos com rigor.

Os vaqueiros vão chegando pela manhã e o almoço começa a ser servido às 11h – em algumas festas, um pouco mais cedo -, alguns organizadores também costumam oferecer café da manhã. Ao meio dia, o gado é solto na caatinga e, só uma hora depois, os vaqueiros têm permissão para sair em disparada. Eles voltam ao ponto de partida à medida em que vão conseguindo laçar e trazer os bois consigo. A busca pelos animais tem de acontecer até às 18h do mesmo dia.

Neném conta que os gastos com a festa chegam a quase 50 mil reais, mas garante que, no final das contas, consegue uma margem de lucro satisfatória com o investimento. “A gente investe bastante nessas pegas de boi. Esse ano, eu calculo perto de 50 mil. A comida é à vontade, mas a gente cobra uma taxa na entrada, com a bilheteria, cobra a inscrição dos vaqueiros que vão pro mato e vende a bebida aqui no bar que a gente monta todo ano. No final, consegue tirar um lucro em cima do valor investido e guardar um pouco pra próxima festa. Vale a pena”.

Organizador da pega tem de garantir a carne para um dia todo de churrasco. Crédito: Géssica Amorim/Coletivo Acauã

As pegas de boi no mato realizadas no sertão atualmente, com essas proporções e configurações, têm uma origem ligada ao trabalho dos vaqueiros no campo – que até hoje existe e se mantém ativo. Por aqui, há algumas versões para contar como tudo começou, antes de ganhar o caráter de entretenimento e lazer que tem hoje. Uma das mais comuns diz que as pegas de boi vêm de uma época em que não existiam cercas delimitando as propriedades rurais onde fazendeiros e vaqueiros viviam. Assim, quando os animais desgarravam dos seus rebanhos e adentravam na caatinga, era necessário que os vaqueiros vestissem o gibão e se mobilizassem para trazê-los de volta.

No início desse ano, no mês de janeiro, os vaqueiros do município de Betânia fundaram a Associação Betaniense de Promotores de Pegas de Boi (ABPPB). Segundo a presidenta Taiza Magalhães, 28, que também organiza pegas de boi em uma das fazendas da região, a associação foi criada para a representação da classe dos vaqueiros, valorização da cultura local e para a busca de parcerias e contribuições privadas para a realização das pegas.

“A associação tem 26 integrantes e um calendário anual previamente definido para que os vaqueiros trabalhem no planejamento e realização das festas durante o ano todo, com mais espaço e facilidade. Por mês, até três pegas de boi são realizadas no território do município de Betânia. Isso auxilia numa melhor distribuição dos eventos durante esse período do calendário e também ajuda a manter viva a cultura das pegas de boi no município”, afirma Taiza.

Agora, as pegas de boi e muitos outros símbolos e elementos que se integraram ou voltaram a fazer parte do meu cotidiano, estão predominantemente impressos no meu trabalho jornalístico e fotográfico. Desde que comecei a circular com mais disposição e atenção pelos lugares por onde ando hoje, tenho internalizado muitas imagens e impressões.

Presto atenção na vaidade dos vaqueiros, que, ao voltarem do mato com o rosto cortado pelos garranchos, se orgulham do sangue correndo pela pele – sem tratar dos ferimentos ou sequer minimamente higienizá-los -, sinto falta de mulheres na disputa, buscando o gado no mato, dou atenção às músicas, vejo quem dança, circula e trabalha. Comparo as posturas, gestos e expressões com outras referências que carrego e vejo que tudo é muito parecido e, ao mesmo tempo, muito diferente.

Em casa, tenho me agarrado cada vez mais à certeza de que nada representa plenamente a realidade dos sertões, ao contrário do que parece para muita gente que vive fora daqui, acostumada a tipos, símbolos, imagens petrificadas, congeladas. Também tenho preservadas, em algum lugar de mim, as imagens mostradas pelo meu pai e muito do que tenho visto e escutado por aqui, na tentativa de não contaminar o meu olhar e a minha percepção com quaisquer expectativas que não dialoguem com a diversidade do que eu observo e com o que tento aprender a me relacionar com mais lucidez. Prossigo nessa viagem atenta pelo universo que compõe o lugar onde nasci.

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