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São 12h50 e um grupo de cinco estudantes prepara o almoço do dia. A copa do Centro de Educação da Universidade Federal é pequena, mal cabem os jovens, esse repórter e um funcionário. Outros quatro estão do lado de fora conversando. O clima de aparente tranquilidade não esconde a urgência: ali se está em luta aguda contra a PEC 241 e o congelamento por 20 anos dos gastos com educação e saúde.
Luta aguda porque o CE está ocupado pelos estudantes desde a segunda-feira (24) para “mostrar que os donos disso aqui sabem cuidar e proteger o patrimônio que é verdadeiramente seu”, explica Gabriela Mesquita, aluna do quarto período de filosofia. Para ela e dezenas de alunos da UFPE não dava para ficar vendo a história ser transmitida (ou desconstruída) pela TV. Era preciso agir.
“Chega um momento em que a gente se sente tão violentado pela administração da universidade, pelos governos estadual e federal, que a gente precisa fazer um movimento para ser ouvido. Nós sabemos que o governo não está nem aí para a gente, que a mídia não está nem aí pra gente. Então nos sentimos tão ignorados que decidimos chamar a atenção especialmente das pessoas que não têm acesso a estas informações e para gerar o debate”.
Na terça-feira (25) foi a vez de os estudantes ocuparem o Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH). Os prédios ficam lado a lado. Nas suas paredes, as faixas e cartazes indicam o que move o movimento: “Fora Temer”, “Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física são importantes. Abaixo o governo Temer”, “Não aos cortes da assistência estudantil”, “A reforma é para um ensino médio sem voz”, “Acabou a paz. Aqui vai virar um CHILE. É guerra contra o capital”.
A PEC 241 é a síntese da onda conservadora desencadeada pelo governo Michel Temer. A pauta de reformas é extensa. Os estudantes estão também mobilizados contra a PL 257 que dispõe sobre a renegociação das dívidas dos Estados com a União e impõe uma série de ajustes e cortes no gasto com pessoal. A PL foi aprovada em dois turnos na Câmara e tramita agora na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Na lista da mobilização estão posições contra a Reforma do Ensino Médio e o fim da obrigatoriedade do ensino de filosofia, artes, sociologia e educação física; contra o movimento Escola Sem Partido; os cortes nas bolsas de assistência estudantil, ameaça de aumento no preço do Restaurante Universitário e demissão de terceirizados; e pelo fim dos processos administrativos contra os alunos que ocuparam a reitoria em 2014.
Lições a céu aberto
Os prédios estão fechados para as aulas. Os estudantes controlam o acesso. Mas o clima, na quarta-feira (26), não era de confrontação. Pelo contrário. No final da manhã um grupo de oito professores de psicologia e sociologia se reunia na frente do CFCH e discutia um modo de colaborar com os jovens. Eles vão se engajar nas aulas públicas que estão sendo ministradas no espaço do estacionamento que divide os dois prédios ocupados.
Sim, porque dizer que não há aulas não é verdade. Elas agora estão acontecendo a céu aberto e mobilizando professores, estudantes e funcionários nas discussões sobre educação e política. A professora de psicologia, Wedna Galindo, falou aos estudantes nesta quarta sobre Psicologia e Política. “O que a gente vê a cada passo e a cada momento é a confirmação de que estamos vivendo um golpe de estado no país com apoio da mídia, com apoio do Judiciário. Um golpe parlamentar”.
Constituição Cidadã está em xeque
Sobre a PEC, a professora diz que ela coloca em xeque direitos conquistados na Constituição Federal de 1988. “É uma proposta que vem para cortar gastos quando o que a gente deveria estar discutindo é como aumentar receitas, taxando grandes fortunas e enfrentado a sonegação de impostos. A discussão que se coloca por trás da PEC é a de tentar diminuir a atuação do Estado na proteção da vida das pessoas”.
Ricardo Santiago, professor do Departamento de Sociologia, concorda: “A PEC faz parte de uma agenda que visa diminuir o tamanho do Estado no Brasil. Por causa disso e por conta da ilegitimidade desse governo, ela viola a Constituição de 1988. Diminuição do Estado no Brasil, na condição de desigualdade social que impera, significa massacrar a população de baixa renda e prejudicar um projeto fundamental de saúde pública (que eles querem privatizar) e de educação”.
A luta também é digital
A mobilização contra a PEC 241 e a onda conservadora que pauta a educação do governo Temer não acontece apenas no campus, mas também nas redes sociais. Criada há dois meses, a página de facebook UFPE na Luta é a frente de combate digital montada por professores do Departamento de Comunicação Social. Ela conta com cerca de dez alunos-repórteres ativos produzindo conteúdo e cobrindo intensamente as ocupações no CE e no CFCH.
As estudantes do terceiro período do curso de Rádio e TV, Débora Oliveira e Amanda Santos, não precisaram se formar para sentir a pressão do trabalho diário de uma redação. Elas são voluntárias na cobertura das ocupações na UFPE e têm se dedicado a gravar vídeos, tirar fotos e escrever sobre tudo que testemunham.
A professora do Departamento de Comunicação Social, Adriana Santana, explica que a página funciona de modo artesanal e que é alimentada por um grupo de professores nas horas vagas, entre uma aula e outra. A UFPE na Luta é fruto de uma parceria voluntária entre professores, estudantes e funcionários. Eles utilizam seus próprios celulares, computadores e combustível para produzir conteúdo de divulgação do movimento.
Temos que fazer alguma coisa
A iniciativa de mobilização dos alunos mexeu emocionalmente com os professores. “Nós professores estávamos vivendo um momento meio letárgico. Muito tristes. Foi a partir da ação dos estudantes que retomamos a ideia de luta, de que a luta é válida. Eles estão dando uma lição de envolvimento, de engajamento”, analisa Adriana.
Ela viaja no tempo: “Sempre que eu lembrava de 1964, eu pensava: meu deus, como é que teve gente que não fez nada? Continuou vivendo sem fazer nada? E eu me perguntava: e se acontecer a mesma coisa de novo? Será que passaremos por essa mesma letargia? Então eu vivo essa dor de consciência. Temos que fazer alguma coisa”.
E quando vê os jovens se expondo como estão agora, a professora tem a certeza de que nem todos “vão continuar vivendo sem fazer nada”: “Eles têm tanto a perder, têm bolsa a perder, têm uma vida acadêmica a perder, o semestre, mas eles estão colocando a luta acima das decisões individuais. Isso é muito bonito. A universidade é dos estudantes, é deles, é nossa. Eles estão lutando pelo patrimônio da universidade”.
A gente sabe o que faz
Depois de dormir apenas três horas durante a noite e de passar o dia em assembleias e ações de organização da ocupação, Gabriela – a estudante do quarto período de filosofia – não aceita o discurso fácil (e óbvio) tantas vezes repetido nas páginas dos jornais e nas tribunas dos parlamentos e da própria academia de que os jovens não estão preparados para se governar.
“O espaço administrativo da federal é dos alunos, sabe? E a gente sabe cuidar desse espaço. A gente tá organizando aulas, a gente tá vendo a questão da alimentação, da dormida, da segurança. A gente sabe lidar com o espaço. A gente teve uma ótima conversa com os terceirizados, boa conversa com os professores. A desculpa de quem administra mal é a de que os estudantes não têm capacidade de administrar, mas quando a gente ocupa a gente mostra que tem capacidade de administrar, sim. A exemplo dos secundaristas, que deram um show de ocupação, um show de maturidade política em todo o Brasil”.
Mas essa história você não vai ler no jornal ou ver na TV. “A mídia não dá espaço. A gente tem mais de 1.000 escolas estaduais ocupadas, mais de 100 institutos federais e universidades federais ocupados. Tem uma histórico de luta de muito tempo. Mas a grande mídia não dá espaço para isso. Não mostra isso”.
Esse sentido de ocupar o patrimônio que é seu e de ocupar a política tem mobilizado estudantes em vários cantos do estado nos últimos dias. Na Universidade Federal Rural de Pernambuco, nos campus Recife e Nazaré da Mata da UPE e no campus da UFPE de Vitória de Santo Antão. Os próprios professores da Universidade Federal de Pernambuco estão em estado de greve e devem se reunir em assembleia nos próximos dias para deliberar sobre uma possível greve geral. Afinal, a política que não sai nos jornais (ou é criminalizada por eles) também está se movendo.
O poder, as corporações e a verdade
Os desafios são enormes. Como se pode ouvir na aula pública a céu aberto ministrada pelo professor do Departamento de Sociologia Paulo Henrique Martins, no início da tarde da quarta-feira (26), e acompanhada por dezenas de estudantes. “O sistema político brasileiro hoje é corporativista. Não existe unidade política. Com a crise há uma luta dessas corporações pelos recursos estatais. Lutam entre si para ver quem controla o sistema e os recursos do Estado. Corporações como o Poder Judiciário. O véu está caindo e mostrando a natureza do poder no Brasil. De base colonial e corporativista”, fala o professor.
Mas esses estudantes não estão apenas escutando o professor, decidiram ir à luta por seus próprios meios e não parecem dispostos a aceitar todas as verdades que já estão postas. Na academia ou fora dela.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República