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O que a “malandragem” nos ensina sobre o golpe (e os golpistas)?

Luiz Carlos Pinto / 22/06/2016

As razões do golpe parlamentar que tomou de assalto a democracia brasileira nesse ano de 2016 vem sendo explicitadas a cada dia – ou pelo desmantelo próprio do governo interino ou por análises variadas e criativas. Mas o que a malandragem tem a falar do golpe e dos golpistas? Mais precisamente: no que as visões da malandragem ajudam a entender o contexto da crise política atual?

O sentido mais comum e vulgar da malandragem se associa à ideia do jeitinho, do jogo de cintura, da habilidade para fazer da falta de saídas uma saída. Ou seja, a saída duma posição sem saída muitas vezes acontece via algum tipo de gambiarra – palavra aliás que resume muitas das táticas de sobrevivência na periferia. Esses referentes funcionam como caminhos de uma certa subversão a uma condição dada de impossibilidades.

Acossada por quatro derrotas seguidas, era, aliás, essa a situação em que se encontrava a oposição dos artífices da agenda neo-liberal radical e extremamente conservadora com a última eleição de Dilma. E, nesse sentido, quem não se sustenta pelos votos, precisou encontrar outros caminhos.

Mas a malandragem também é associada à vadiagem. Assim, essa associação identifica o malandro ao vadio, na maior parte das vezes ao indivíduo pobre, negro, sem condições de garantir o próprio sustento por não se dedicar à atividade laboral.

Vargas e a caça à malandragem

Essa última leitura se consolida a partir do conjunto de medidas tomadas pelo governo de Getúlio Vargas e que atingiram a população negra e mestiça diretamente: a malandragem, evidentemente mestiça como anota a bibliografia, passou a ser ferrenhamente perseguida, sob a justificativa oficial de se evitar a subversão da ordem social. O combate à vadiagem (a partir de então oficialmente identificada com malandragem) relaciona-se ao ideário trabalhista, que vinculava naquele momento a cidadania ao trabalho.

Não foi pequeno o empenho do governo varguista: o malandro era uma figura decantada em diversas canções que ressaltavam cartacaterísticas específicas como a simpatia, a sorte, o poder de sedução, a malemolência, a ginga, a esperteza, entre outras. Zé Carioca, personagem de Walt Disney, é uma interpretação lúdica do malandro.

Entretanto, esse personagem circula nas ruas e passa a ocupar uma posição desconfortável na vida social de um país que procurava se inserir internacionalmente como República “civilizada”. É o que se pode interpretar da repressão que o Estado brasileiro passou a realizar, por meio do Departamento Nacional de Propaganda, a partir de 1938, sobre as formas de representação do trabalho e do trabalhador. Essa repressão se intensifica em 1939 por meio de portaria que proibia em todo território nacional a exaltação da malandragem; e, a partir de 1940, o próprio Departamento de Imprensa e Propaganda passou a intervir junto aos compositores no sentido de produzirem “temas de exaltação ao trabalho e de condenação à boemia”, com evidentes reflexos sobre a produção musical – essa determinação fez surgir várias composições que, ironicamente, narram personagens “ex-malandros”, bem comportados, que questionam sua origem ou natureza malandra.

As leituras do malandro requerem mais elementos para entender o mundo de poder em que se movimentaram os principais artífices do golpe até agora identificados. Justamente porque essa persona do malandro – herói da raça ou sujeito a ser extirpado –, tipificado pelo senso comum e condenado pelo varguismo, vive num mundo sem o poder político daqueles que operaram e operam o golpe parlamentar em curso.

Aquela capacidade de adaptabilidade, entretanto, não está associada apenas aos extratos mais pobres da população brasileira. Da mesma forma, a prática dos expedientes escusos não pode ser associada naturalmente à população pobre nem desconsideradas das estratégias (e das táticas) das classes dirigentes. Na verdade, parte da implantação e consolidação do próprio capitalismo no Brasil foi/é/tem sido permeado por um tipo oblíquo de gambiarra. Assim como os ajustes da economia e da política internas às demandas de fora. Não é por acaso, aliás, que o pré-Sal tenha sido objeto de um Projeto de Lei que retira da Petrobras a exclusividade de sua exploração.

As elites dirigentes

Traços dessa adaptabilidade podem ser rastreadas na formação das próprias elites dirigentes, na ótica de alguns daqueles a quem o sociólogo Francisco de Oliveira chamou de “intelectuais demiúrgicos” da formação da sociedade brasileira – entre eles, Sérgio Buarque de Hollanda e Florestan Fernandes.

Assim, em Raízes do Brasil (2002), Sérgio Buarque de Hollanda, ao tratar do processo de colonização do trópico, pergunta-se o que teria tornado os portugueses tão bem-sucedidos em seu empreendimento civilizatório.

Para Sérgio Buarque, o tipo que orientou a colonização e que foi responsável pelo seu sucesso e herança é o espírito de aventura. É este, em oposição diferenciadora ao espírito do trabalhador, que estimulou os portugueses à adaptação ao meio-ambiente, às rotinas adequadas ao novo mundo que se descortinava, a aprender a lidar com os instrumentos e utensílios indígenas por serem eles mais adequados ao contexto; a mesma pulsão aventureira seria a responsável pela modificação na forma de dispor varandas dos pátios internos (herança moura) para a área externa da casa. É claro que outros fatores contribuiram para o sucesso da colonização portuguesa e o próprio Sérgio Buarque as menciona.

(Aliás, é válido lembrar que a análise de Sérgio Buarque de Hollanda se propõe tratar de fragmentos de formas de vida social, de instituições e mentalidades que o autor acreditava estarem em vias de serem superadas).

Também parece válido ressaltar que o olhar de Sérgio Buarque identifica a inexistência de uma “moderna religião do trabalho” e o “apreço à atividade utilitária”: “uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia”, escreve o pai de Chico Buarque.

Noutro sentido, pode-se ver na análise de Florestan Fernandes que o caráter autocrático da organização e da conduta das classes dirigentes no Brasil – traço estrutural no processo de formação histórico da sociedade brasileira –, é estamental e basicamente adaptativa.

Uma consequencia disso é que o que guia a união dos indivíduos é a inclusão ou exclusão ancorada a contatos, uniões, prestígios, privilégios, ou seja, garantias acionadas pela simples participação no estamento. Este é voltado para dentro e assim, como concha, oferece a seus membros posições vantajosas; não se pauta pelo risco, ou pelas oportunidades incertas, mas pelas garantias à mão, pelos interesses privativos do grupo.

Esse raciocínio se traduz, na realidade, na busca por estancar operação Lava Jato, por garantir a implementação de um programa neo-liberal que mantém privilégios e nega direitos conquistados,

por uma ação de Impeachment que aciona instrumentos democráticos contra a democracia. Mais ainda: essa interpretação permite compreender porque as manifestações de indignação das classes médias e altas são seletivas: um mês de governo interino e ilegítimo foi o suficiente para inviabilizar ou desfazer algumas das conquistas sociais que vem sendo gestadas desde a Constituição de 1988. Não mereceram batida de panelas porque são consideradas normais, esperadas e desejadas.

Obviamente que essas necessidades externas e as pressões internas precisavam de prepostos, Michel Temer e Eduardo Cunha entre os mais visíveis. Além das camadas da burguesia que considera injusta toda forma de dividir.

Sem juizo moral

Mas a leitura que talvez mais ajude a identificar o elemento “malandragem” no golpe vem da literatura. Ou, mais precisamente, do ensaio que Antônio Cândido escreveu em 1970 sobre o livro Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida.

Cândido identifica na obra não somente o primeiro malandro a aparecer na literatura brasileira – Leonardo Filho. Mas, principalmente, a existência de um polo positivo de ordem, comportameto, legalidade, lealdade, práticas e um polo negativo de desordem entre os quais Leonardo oscila, participando ora de um, ora de outro.

Esse é, como escreve Cândido, o mundo das alianças, das carreiras, das heranças, da gente de posição definida; todos estão do lado positivo que a polícia respeita. Esse malandro, que se equilibra mal entre um lado e outro convive com um contexto no qual os personagens dançam entre o lícito e o ilícito, sem que possamos afinal dizer o que é um e o que é o outro. Isso porque todos os personagens acabam circulando de um lado para outro também, com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações. Embora o romance seja ambientado no Brasil urbano da primeira metade do século XIX, essa ambiência soa dolorosamente atual.

No Brasil rurbano do Século XXI, as declarações de deputados e senadores na votação da ação de impedimento da presidenta Dilma; assim como a aberta conspiração do vice-presidente eleito; a formação de um ministério tomado por homens, brancos, idosos, ricos e suspeitos ou indiciados em ações judiciais atestam esse universo que parece liberto do peso do erro e do pecado – tal como em Memórias de um Sargento de Milícias.

Ordem e desordem, portanto, extremamente relativas, se comunicam por caminhos inumeráveis. No livro de Manuel Antônio de Almeida, fazem do oficial de justiça um empreiteiro de arruaças; do professor de religião um agente de intrigas; do pecado do Cadete a mola das bondades do Tenente-Coronel; das uniões ilegítimas, situações honradas; dos casamentos corretos, negociatas escusas.

No circo da política palaciana atual,a dialética da malandragem, a dança entre o certo e o errado transformou conquistas democráticas em uma ponte para o passado; converteu um menestrel do caos como Ciro Gomes na esperança insurgente denúncia corajosa; os caminhos inumeráveis dessa ordem e desordem transformam um apologista do estupro em Senador (não seria deputado?) e em candidato ao cargo de presidente; dos ritos corretos em shows que escondem acordos que ninguém quer ver; de um político inexpressivo no presidente da maior economia da Latina.

Nesse universo que parece liberto do peso do erro e do pecado, o caráter adaptativo, tático e estamental de nossas elites se exprime com eloquencia a malemolência, a ginga, a esperteza que o senso comum atribui à malandragem popular. Nesse universo, o remorso não existe, pois a avaliação das ações é feita segundo a sua eficácia.

AUTOR
Foto Luiz Carlos Pinto
Luiz Carlos Pinto

Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.