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O que podemos esperar para o segundo ano da pandemia no Brasil?

Maria Carolina Santos / 01/01/2021

Foto: Governo do Estado de São Paulo

Foi com a pergunta do título que a Marco Zero abordou profissionais da saúde que passaram o ano lutando contra a pandemia do novo coronavírus. Nas respostas, um misto de indignação com o descontrole da pandemia e de esperança com as vacinas, mas a certeza de que ainda temos um longo caminho pela frente.


“Enquanto o coronavírus estiver descontrolado em qualquer país, o mundo inteiro estará em risco”

Bruno Ishigami – Médico infectologista

Diante do cenário que estamos ver se desenhar – com números de casos, internamentos e óbitos em piora – acredito que o começo do ano vai ser bem complicado. Acho, inclusive, que há uma possibilidade de ser um pouco mais difícil do que na primeira onda, por assim dizer, entre os meses de março e abril. Estamos vivendo um momento de piora e o que a gente vê das redes sociais, dos noticiários, são pessoas se organizando para viajar e fica essa preocupação. A minha esperança é o plano de imunização. Mas resta saber se o Ministério da Saúde vai ter competência para executá-lo. Estrutura de logística a gente já tem, nosso programa é referência no mundo todo. Minha preocupação é como vai ser a articulação do Governo Federal com estados e prefeituras porque até agora a gente não teve articulação no combate à pandemia, ficou tudo meio solto.

Minha expectativa é de que a gente comece a imunização lá para fevereiro. Infelizmente o Brasil adquiriu pouquíssimas doses. Os Estados Unidos tinham feita projeção de imunizar o país até maio, se não me engano. Pela dimensão do Brasil, sua complexidade e conjuntura política, acredito que, em um cenário bem otimista, lá para agosto ou setembro a gente vai ter um momento de calmaria, porque a população estará sendo imunizada. Sendo pessimista, lá para dezembro.

Fico preocupado em relação a como a população vai reagir quando começar a vacinação: não adianta começar a vacinar para ir para rua, tem que vacinar uma parcela importante da população, 60%, 70%, a depender da eficácia da vacina que vai chegar por aqui. Uma esperança que eu tenho é que enquanto o coronavírus estiver descontrolado em qualquer país, o mundo inteiro estará em risco. Vimos a mutação no Reino Unido, mas se aqui a pandemia continuar descontrolada, o mundo inteiro terá que ajudar no nosso processo de imunização. Com mais multiplicação do vírus, mais risco de novas mutações. Os outros países vão ter que ajudar países subdesenvolvidos, como o Brasil, para conseguir resolver o problema do coronavírus.


Epidemiologista e professor da UFRPE Jones Albuquerque. Crédito: reprodução TV

“Precisaremos adaptar as nossas vidas ao novo modo de viver com vírus desta natureza, pois outros virão”

Jones Albuquerque – epidemiologista do Instituto para Redução de Riscos e Danos de Pernambuco (Irrdpe)

Do ponto de vista epidemiológico, segue 5 aspectos sem o compromisso de serem exaustivos mas exemplares:

(1) precisaremos restaurar a Autoridade Sanitária do País que está bastante fragilizada e sem respaldo nos vários estados e municípios que compõem o Brasil;

(2) precisaremos manter todas as práticas de distanciamento, uso de máscaras e higienizaçao durante todo o ano de 2021. Pois as novas variantes do vírus em alta infecção em vários países neste fim de 2020 e a demanda síncrona pelas vacinas em todo o mundo só nos garantirão imunidade segura, pelo que parece, só no 2o semestre de 2022;

(3) precisaremos adaptar as nossas vidas ao novo modo de viver com vírus desta natureza pois outros virão;

(4) precisaremos ter aprendido com a Covid-19 para não sofrer novamente com os mesmos erros. Isso passa por repensar os “modus operandi” das formas de trabalho, o formato das escolas e das universidades, o desenho das nossas residências e cidades, as formas de diversão e entretenimento, como cuidamos da nossa saúde repensando os “consultórios”, hospitais, como nos transportamos e nos locomovemos pelas cidades, entre outras formas pois tudo que junta mais que cinco pessoas simultaneamente precisará ser repensado se quisermos sobreviver “imune” aos novos vírus que nos acometerão;

(5) precisaremos redefinir o conceito de “saudável” de um indivíduo para incluir não só o aspecto clínico mas o aspecto epidemiológico de onde este indivíduo reside e circula.


“A desinformação é inimiga da Saúde e da Democracia”

Rafael Moreira – Médico epidemiologista pesquisador na Fiocruz e professor na UFPE

Em 2021 esperamos que todos os grupos prioritários do plano de vacinação sejam de fato imunizados e que a maior proporção de pessoas dos grupos não prioritários também seja vacinada. Contudo, para que isso ocorra, o plano deve ser executado de modo estratégico-situacional, ou seja, que permita constantes revisões e alterações com vistas a acelerar a cobertura vacinal. Não podemos aceitar um plano apenas normativo e engessado por disputas político-ideológicas.

Esperamos que as pessoas ainda continuem mantendo os comportamentos de prevenção durante todo o próximo ano haja vista o plano inicial prever a vacinação completa em 1 ano e 4 meses após o seu início. Paralelamente, esperamos que as autoridades sanitárias continuem atentas ao plano de convivência com o vírus de modo contingente ao cenário epidemiológico. Não devem ser descartadas novas iniciativas de redução de aglomerações, fiscalização, serviços mais rápidos de testagem em massa e educação continuada da população, além de manutenção do arsenal assistivo hospitalar como recurso de pronta disponibilidade.

Esperamos que os governos, em suas distintas esferas administrativas, sejam sensíveis e responsáveis pela continuidade de medidas de auxílio financeiro para as populações afetadas diretamente pelas medidas de restrição de atividades econômicas que possam ocorrer.

É importante investimento nas políticas de redução e criminalização das fake news, tendo em vista o grande efeito nocivo que elas causam para o aumento da pandemia. A desinformação é inimiga da saúde e da democracia.

Contudo, a esperança de que possamos vislumbrar, finalmente, a redução dos números de casos e de óbitos existe e é possível, se de fato as precauções aqui elencadas e o plano de imunização ocorram conforme a necessidade clama. Nesse sentido, poderemos observar uma visível e significativa redução dos efeitos devastadores que a Covid-19 vêm causando na já sofrida sociedade brasileira.


Bernadete Perez. Crédito: Arquivo Pessoal

“Ao mesmo tempo que vai ser um ano muito duro, vai ser um ano que tenho muita esperança em relação às resistências”

Bernadete Perez – Médica sanitarista, professora do Centro de Ciências Médicas da UFPE e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)

A gente pode esperar uma situação muito difícil ainda. Uma situação onde temos um presidente da República e um governo federal que insistem em negar a gravidade da pandemia, em medicação e kits sem eficácia. Que insiste em negar a desigualdade e o racismo no Brasil. Podemos esperar então um segundo ano da pandemia no Brasil muito duro. Muito difícil. A continuidade do desmonte do SUS, que tem se dado em várias frentes diferentes, do financiamento à atenção primária, no investimento de tecnologias hospitalares, biomédicas, são ameaças para um saída da pandemia.

Na verdade, temos que ter saídas em várias dimensões: dimensão ecosocial, política, simbólica, uma dimensão de proteção social e condição de renda, dimensão de desigualdades. De investimento em pesquisa, em vacinas, de desenvolvimento nacional de vacinas. Isso tudo temos visto que tem ficado em segundo plano no Brasil.

O desmonte do SUS foi muito forte em 2020. E tudo aponta que em 2021 vamos enfrentar muitas tentativas de deslegitimação do SUS, que é um sistema muito generoso.

Por outro lado, acho que nós somos a esperança. No sentido de dupla capacidade de reação. Num primeiro ponto, resistindo a tudo que degrada a vida, a tudo que desconsidera a vida das pessoas, no sentido de que nossos idosos, mulheres, população negra, de periferia continua sendo desprezada pelo governo federal, mas, ao mesmo tempo, essa resistência nossa continua. Vamos continuar constituindo movimentos amplos, com uma militância e movimento agregado, com várias frentes diferentes, pelo direito à terra, renda, saúde, educação.

E, no segundo ponto, da capacidade criativa em defender as pessoas. A partir das organizações territoriais, de pessoas reais e concretas, dos enredos territoriais e da nossa capacidade, enquanto trabalhadores do SUS, resistindo de forma criativa, conseguindo levar adiante a proteção das pessoas.

Então, ao mesmo tempo que vai ser um ano muito duro, vai ser um ano que tenho muita esperança em relação a uma resistência criativa e uma resistência contra esse discurso necrófilo por parte do governo federal e de alguns estados no Brasil. Digo isso de forma esperançosa mesma. Não no sentido de esperar, mas de movimentos articulados que levem adiante toda capacidade de resistência. Essa é minha esperança no ano que vem. Nossa perspectiva de vacina é muito fechada e muito sombria em função de tudo isso. Mas temos a nós, o SUS e os movimentos.


“Tudo faz crer que 2021 será ainda mais difícil do que o ano que passou”

Tiago Feitosa – Médico sanitarista e doutor em saúde pública pela Fiocruz

O Brasil entra no segundo ano de pandemia em uma situação extremamente frágil, difícil. Estamos vivendo um aumento no número de casos e óbitos, em uma situação em que as pessoas estão menos protegidas ou se protegendo mesmo. Há um relaxamento geral das medidas individuais e coletivas, das pessoas e dos governos. Estamos às portas de um janeiro que vai ser muito difícil, talvez seja o mês mais difícil de toda pandemia até agora.

Em termos de políticas públicas, a gente vê que os governos lavam as mãos e não investem mais em proteção social. Há a saída de cena do auxílio emergencial e a falta de comunicação e informação em relação a essa tragédia que assola o Brasil. Tudo faz crer que 2021 será ainda mais difícil do que o ano que passou.

Enquanto o mundo todo lida com a possibilidade da vacina, o Brasil é lanterninha. É lanterninha em testagem. Quando as pessoas têm acesso ao teste, demora para sair o resultado – muitas vezes a pessoa já saiu da infecção. Temos vivido esse caos em relação a saber se tem ou não a doença e as medidas de bloqueio após a testagem.

E o outro fator fundamental para controlar a epidemia: a vacinação. Já temos aí no mundo milhões de pessoas vacinadas e no Brasil não temos nem noção de quando começa a vacinação. O ano de 2021 tem tudo para ser caótico do ponto de vista da saúde com um grande número de pessoas sofrendo, adoecendo e morrendo sem políticas públicas efetivas tanto de amparo social como de saúde.

Com relação à vacinação, começamos o ano sem saber quando seremos vacinados. É um realidade dura. Ao mesmo tempo todo o antigo normal das minoras continua, com a desigualdade, a perda de direitos, e com uma pauta fascista de extrema direita em curso, violenta contra as pessoas e estimuladora de uma cultura do ódio. As comunidades e grupos estão se organizando e tentando resistir a isso tudo. Será um ano de muita luta.


“Não tenho como esperar um quadro menos dramático pela omissão do governo federal em articular uma ação nacional”

Ana Brito – professora da Faculdade de Ciências Médicas, médica epidemiologista e pesquisadora do Instituto Ageu Magalhães, Fiocruz-PE

Não é necessário ser médica, pesquisadora ou cientista para prever que o segundo ano da pandemia no Brasil talvez seja até mais dramático do que tem sido esses primeiros dez meses. Por uma série de razões. Primeiro pela omissão criminosa do governo federal em não articular um plano de enfrentamento para a pandemia que resulta nesse momento na ausência de um plano de vacinação. Indiscutivelmente, a vacina é uma das medidas que nós temos para reduzir os impactos da gravidade da pandemia. Mas, mesmo nos países que já iniciaram a vacinação, não vamos esperar uma redução da transmissão rápida, porque a escala de produção não permite vacina para toda população global.

O ano de 2021 será um ano que teremos de conviver com a alta escala de transmissão da pandemia, se a adoção de medidas não medicamentosas como distanciamento físico, higienização, uso de máscaras e redução severa de circulação das pessoas não forem adotadas concomitantemente. É um quadro extremamente temerário que se esboça no mundo. Temos um quadro que não nos dá nenhuma tranquilidade, uma vez vez que temos 600 mortes diárias no Brasil, reproduzindo um pouco o quadro que observamos de junho a setembro. E nada nos faz apostar que tenhamos uma melhora em função das grandes mobilizações no fim de ano, com pessoas viajando, se confraternizando em bares e restaurantes fechados. O mês de janeiro certamente será um dos piores da pandemia.

Há o esgotamento e o sucateamento dos serviços de saúde. Os hospitais de campanha foram desativados prematuramente, mesmo o Brasil nunca tendo saído da primeira onda. Nós permanecemos numa turbulência de casos e nunca controlamos em nenhuma área do Brasil a transmissão comunitária. O papel da atenção primária foi negligenciada, renunciamos ao papel de prevenção que o SUS tem. Mesmo cambaleante, o SUS tem sido um amortecedor dessa crise.

Não tenho como esperar um quadro menos dramático para o Brasil pela omissão do governo federal em articular uma ação nacional. Há uma fragmentação grande no controle da pandemia no Brasil. E estamos nessa mesma situação em relação às vacinas. Espero que a sociedade e as forças políticas se mobilizem para que a gente possa ter ações articuladas pelo menos na área de vacinação.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org