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Crédito: Agência Mazella
por Martihene Oliveira*
Quando esta jornalista negra se dirige a fazer uma reportagem sobre racismo, nunca é só sobre o fato. É sobre quem será entrevistado, sobre as circunstâncias que se encontra a fonte principal e sobre a própria jornalista também, afinal, talvez um dos exemplos mais convincentes para a sociedade de que a imparcialidade jornalística é um mito é quando entrevistadores e entrevistados se parecem, comungamos no mesmo diálogo.
Meus olhos marejaram quando o professor Eduardo Nogueira chorou, e eu senti um arrepio imensurável, por dentro e por fora, quando conversei com seu advogado que também é negro. Ao falar sobre o caso de seu cliente, o profissional acabou me relatando algumas de suas dores em uma conversa informal. A jornalista, o professor e o advogado encontraram-se na última quarta-feira (17), nas portas do Armazém Coral Achaqui, com mais umas 50 pessoas; entre nós, alguns brancos antirracistas. Todos com a mesma bandeira: a política de atendimento a clientes e funcionários negros do Armazém Coral de materiais de construção precisa urgente ser reconstruida. Não é só responsabilizar o funcionário, é capacitá-lo para um atendimento respeitoso, que não nos constranja quando na loja entrarmos, passarmos ou sairmos, além de indenização para a vítima e de cumprimento da lei.
O fato se deu porque no dia 6 de janeiro deste ano, quando o professor Eduardo comprou um produto no estabelecimento, foi constrangido por funcionários a abrir sua mochila e tirar todos os seus pertences na loja da avenida Getúlio Vargas, em Bairro Novo, Olinda. “Meu sentimento é de repúdio diante da minha integridade. Nunca roubei, nem matei e nem fiz nada de errado para isso ter acontecido. Fui acusado pelo gerente e pelo segurança de ter roubado o produto da loja e eu não roubei nada”, enquanto o professor me falava, lembrei das incontáveis preocupações em manter minhas mãos sempre à mostra quando entro nas lojas com sacolas. É que a gente respira melhor quando entramos em uma loja e já lacramos a sacola, melhor do que entrarmos com ela aberta, né não?! A gente tem todos os cuidados e ainda passa por isso. Lembrei do dia em que insinuaram que eu e meu irmão teríamos furtado brincos de R$ 5,00 em uma loja de miçangas e dos relatos das irmãs Adriana e Betânia, moradoras do Córrego do Sargento, em Linha do Tiro, que ao entrarem nas lojas Americanas com seus filhos, todos retintos, ouviram o grito de uma vendedora para a outra: “Olha o baculejo!”.
Essas coisas que a gente fala, todo mundo sabe que acontece. Sabe, sabe sim. Ninguém é inconsciente sobre isso, nem mesmo o negro sem letramento racial, que sente dores mas não sabe de onde vem, e, se ele não sabe de onde vem, não tem diagnóstico e, se não tem diagnóstico, demora pra encontrar remédio, mas, ainda que com toda essa problemática, causada pelo roubo da nossa identidade, até ele sabe que isso sempre acontece. Aí eu pergunto a vocês: o que nos cura do racismo sofrido?
“Eu provei a eles que estava com a sacola da própria loja e com a nota fiscal, mesmo assim, ele queria que eu abrisse a mochila e mostrasse o produto que estava dentro dela. Eu pedi para que chamassem a polícia e chamassem também alguém de testemunha para mim. Aí apareceu Betânia e Alexandre, seu esposo, clientes da loja, que serviram de testemunhas. Foi quando eu coloquei a mochila na mesa, tirei as coisas de dentro dela e não tinha nada da loja porque eu não roubei, a não ser o produto que eu paguei e que estava com a nota fiscal”, continuou.
Quando chegamos ao local do ato, o Movimento Negro Unificado (MNU) estava lá, a CUT, sindicatos e diversos movimentos sociais, algumas viaturas da Polícia Militar também, o que me gerou um questionamento instantâneo sobre a pressa da PM em estar no local, e eu tendo a certeza de que não foi o nosso povo quem chamou, – pois é, se não foi a gente, a serviço de quem a PM chegou? – a pressa da PM em evitar nossa “desordem”, como “negras e negros arruaceiros” que somos, não foi a mesma para atender o professor. Algo percebido por mim e por ele, e sei que se eu entrevistasse mais pessoas, elas também comentariam sobre isso. As cinco horas de espera para ser atendido foi destaque nos jornais da TV quando esse caso ocorreu.
Para o professor, houve negligência no atendimento da polícia, para mim, também. “Eu achei estranho o atraso da polícia, o primeiro registro foi às 11h09, e a polícia só chegou depois das 16 horas. Se fosse o contrário? Hoje, aqui neste ato, a gente chega e tem diversas viaturas aqui, porque não tiveram essa mesma urgência para atender a minha denúncia?”, disse.
Nesse ato, eu vi, um estudante branco que passou correndo para pegar o ônibus, enquanto ele corria, mostrava o dedo do meio ao armazém. Do outro lado da rua, um homem branco, de cabelos escuros, nariz afilado e um relógio caro, filmava por horas o nosso protesto, por trás de uma árvore, entre as folhagens. Depois, entrou tranquilamente, sem riscos de ser agredido, passando pelo nosso grupo ao som que saía dos nossos microfones, dizendo que ele podia filmar porque não vamos recuar. Brancos constrangidos rompiam nosso motim, alguns com cara de poucos amigos e enquanto isso, funcionários negros cravavam seus pés na porta da loja, enquanto outros puxavam carros de cimento para fora e entravam com carros vazios para dentro. Foi assim durante todo o protesto.
O advogado da vítima, informou que teve acesso às imagens da câmera de segurança e que não há nenhum sinal que possa ser subentendido que Eduardo estaria cometendo um crime. “Ao todo, cinco pessoas foram demitidas, mas o que queremos não é a demissão dos funcionários, o segurança, por exemplo, um homem negro, exerceu seu papel conforme foi orientado pela funcionária que operava as câmeras de vigilância. Nós queremos retratação do Armazém Coral com uma política de capacitação dos funcionários e de combate à discriminação racial, bem como a indenização para o professor”, afirmou o jurista.
Apesar da minha parcialidade, pela ética e pelo direito de resposta do outro lado, procurei o Armazém Coral para ouví-lo, não me receberam. Eu sei! Mesmo apresentando meu DRT, não foi minha câmera que intimidou o armazém. Foi o meu black, a minha cor, o meu vestido colorido que me denunciou. Eu não estava a favor deles.
*Martihene Oliveira é mulher negra, jornalista, idealizadora do Coletivo de Mídia Independente e Popular Sargento Perifa e autora do Livro-reportagem Urubu Marrom – Relatos de uma jornalista da favela.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.