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Os caminhos de um jornalista para desvendar o poder camuflado dos militares

Samarone Lima / 29/12/2022
Em uma mesa de madeira, em primeiro plano, levemente desfocado, o livro Poder Camuflado, de capa verde e título preto, com foto em preto e branco. O foco está no jornalista Fabio Victor, um homem branco, de cabelos pretos, barba grisalha, usando óculos de aro grosso e camisa cinza de botões.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Era setembro de 2017. O jornalista pernambucano Fabio Victor, de 45 anos, encarava um novo desafio profissional, depois de 20 anos na Folha de São Paulo, onde trabalhou em diversas editorias e funções, de repórter especial a editor, além de correspondente em Londres. Iria para a primeira reunião de pauta da prestigiada revista piauí, criada pelo cineasta João Moreira Salles, em 2006, conhecida pelas suas longas reportagens, ensaios, crítica, ficção, charge e poesia.

Para a surpresa do editor e da a equipe da revista, ele propôs se debruçar num assunto que começava a intrigá-lo:

“Quero saber por que os militares das Forças Armadas estão voltando à cena política, aparecendo tanto na mídia como protagonistas políticos do governo de Michel Temer.

Naquele momento, o ex-presidente Lula estava na liderança das pesquisas para a presidência da República, com 35% das intenções de voto, seguido por Bolsonaro (17%) e Marina Silva (13%).

“Você acha que Bolsonaro tem chances de ser eleito?”, foi a primeira pergunta que fizeram.

Fábio respondeu que não.

“Naquele momento, nem eu, nem ninguém achava”, lembra o jornalista.

Ele não sabia que estava começando um mergulho de cinco anos no fechado mundo da elite das Forças Armadas do Brasil, com suas leis e credos próprios, contradições e temas intocáveis. Fontes militares falando de temas que pareciam inacessíveis aos civis.

O resultado é um livro do mais alto nível jornalístico: Poder camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com o bolsonarismo, lançado pela editora Companhia das Letras neste final de ano.

O início

Uma pulga já tinha ficado atrás da orelha quando leu, nas páginas amarelas da revista Veja, uma entrevista do general Eduardo Villas Boas, comandante do Exército. O título era “O protagonista silencioso”.

“Nasci durante a ditadura. Não lembro de generais dando entrevistas assim. Ele chamava de ‘tresloucados’ os que pediam golpe. Acendeu uma luzinha. Tem alguma coisa acontecendo”.

Fabio propôs fazer um perfil de Villas-Bôas, recebeu o sinal verde, mas em fevereiro de 2018, teve início uma intervenção federal no Rio de Janeiro, com a participação do Exército. Ele foi escalado para acompanhar o cotidiano e os bastidores da missão militar.

Quase seis meses depois, em março de 2018, a capa da piauí tinha como título “A política dos generais”, e o aviso aos leitores:

“Fabio Victor mostra como a intervenção do Exército no Rio de Janeiro divide o Exército”.

Na longa reportagem, o jornalista abordava a questionada intervenção no Rio, além de apresentar um perfil de Villas Bôas e do também general Sergio Etchegoyen, que se tornariam o que ele considera os “pais militares” do apoio das Forças Armadas ao bolsonarismo. O “pai civil é o Michel Temer”, completa.

Em novembro, entre o primeiro e o segundo turno das eleições, a revista publicou um robusto perfil do general Hamilton Mourão, já candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, intitulado “O general do capitão”.

“Comecei a falar com o Mourão para o perfil quando ele ainda estava na ativa. As conversas eram em off. Quando ele foi para a reserva, começamos a falar em on. Isso eu respeito. Em nenhum momento você pode sacanear a fonte. Ele sabia que o perfil da revista é de centro-esquerda. Tenho que me ater aos fatos”.

A vantagem, para o jornalista, é que Mourão “topou ser perfilado”, e não criou barreiras para o acesso a certas informações e até situações inusitadas.

“Acompanhei até ele treinando em seu cavalo Às vésperas da eleição, acompanhei o Mourão numa competição de salto, na hípica do Rio de Janeiro. Ele levou uma queda. O cavalo parou e ele foi ao chão. Vi a cena, porque estava lá, porque ele me deu acesso. Tinha dezenas de pessoas no local, todas militares e seus parentes, então não saiu nada em canto nenhum”.

“Quando ele foi eleito, eu estava dentro de um avião com ele, indo para o Rio de Janeiro. Ele já desce no aeroporto com escolta da Polícia Federal e Bope esperando. Fui com ele até a casa do Bolsonaro, onde eles iriam comemorar, mas fui barrado”.

Interesse de Victor no tema começou com uma pauta para revista. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

A reescrita da história

A edição 150 da piauí, de março de 2019, tinha como título “História, volver – o 31 de março e a nostalgia da direita”, novamente com a assinatura de Fabio Victor.

“No começo de 2018 comecei a detectar que o governo estava começando a reescrever a história. Eles começaram a mudar toda a narrativa do golpe em diversos aspectos”.

O mais grave era a mitificação de um conhecido coronel que comandou um centro de tortura.

“Pela primeira vez desde o final da ditadura, o país atravessará a data histórica do golpe tendo à frente do Executivo alguém que contesta testemunhos e provas sobre as agressões e mortes cometidas pelos militares, mitifica um de seus oficiais mais associados à tortura, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, e está na linha de frente de uma cruzada revisionista pela memória do período, uma vez que considera que em 1964 não houve um golpe, mas um movimento feito por militares em favor dos valores democráticos”, dizia a reportagem.

Faltava a Fabio Victor conhecer de perto a “vitrine” do Exército Brasileiro, ou seja, a participação na “Minustah” (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, que durou 13 anos.

“O Exército criou até slogan: ‘Brasil no Haiti – um caso de sucesso’. Fez livros, organizou seminários, palestras, para mostrar o êxito da participação. Ótimo, mas sucesso para quem?”, pergunta Victor. “Os caras foram pra lá em busca de guerras.

Em seu livro, o jornalista oferece respostas.

“Haitianos dos mais variados estratos até hoje veem a missão como sinônimo de colonialismo, violações de direitos humanos, truculência e abusos de toda sorte contra a população”.

Uma frase do general Augusto Heleno parece sintetizar tudo.

“Eu era um médico sem doente. A missão de paz foi o doente da minha carreira”.

A pandemia e o projeto do livro

Em agosto de 20020, em plena Pandemia da Covid-19, Fabio Victor sai da revista. Fica em seu apartamento, deu um tempo. Queria voltar ao jornalismo, mas não para redações. Surgiu uma conversa com a Companhia das Letras, para escrever um livro sobre os militares.

“Assinei contrato com a Companhia das Letras em 2021, para entregar os originais antes das eleições, ou até o final de 2022. Quando comecei a escrever, sabia que tinha um ovo da serpente sendo chocado, mas não imaginava que estariam, depois da eleição, multidões fazendo vigílias em frente aos quartéis, pedindo golpe militar. Isso foi demais. É uma distopia. Isso eu não imaginava”.

Fabio mostra como a “onda fardada”, que marcou o país, com a chegada de Bolsonaro ao poder, tem raízes profundas, com características próprias: a preservação (e ampliação) de seus interesses, uma profunda recusa em admitir os erros e de se subordinar plenamente ao poder civil. Uma jornada de fôlego do melhor jornalismo, da reabertura democrática, em 1985, ao questionamento das urnas eletrônicas, nas últimas eleições.

Não por acaso, o comandante da Marinha, o almirante de esquadra, Almir Garnier Santos, tenha se recusado a se encontrar com o futuro ministro da Defesa, José Múcio, para a formalização da troca no comando das Forças Armadas. A antecipação da cerimônia de substituição dos comandantes das forças seria para não bater continência ao presidente eleito, Luís Inácio Lula da Silva”.

“Essas dificuldade na transição é tudo fruto da politização das Forças Armadas promovida por Bolsonaro ao longo dos últimos anos, com a conivência dos chefes militares”, observa Fabio.

“Esses comandantes militares de agora, eles foram trocados. De uma forma muito rara, desde a redemocratização, os comandantes das três armas foram trocados no meio do mandato.  Em geral eles ficam. Começam e terminam. Com Bolsonaro não, porque os primeiros comandantes militares não eram tão bolsonaristas quanto ele gostaria que fossem.  Então, os caras começaram a ser fritados. O comandante do Exército, Edson Leal Pujol, era leal, era da mesma turma de Bolsonaro da Aman [Academia Militar das Agulhas Negras] de 1977. Ele era super leal, mas Bolsonaro queria mais. Fritou, e os outros dois chefes militares caíram juntos, na mesma leva. E entraram esses, que são mais bolsonaristas”.

À frente de um enorme painel em homenagem ao Exército, dois cavaleiros fardados com uniformes de gala, desfilam com seus cavalos puxando uma carroça que carrega antigo artefato militar que solta fumaça

Militares não admitem erros e defendem os próprios interesses. Crédito: Antônio Cruz/Agência Brasil

O autor faz uma observação sobre o período final do governo Bolsonaro e os militares.

“Se você prestar atenção ao noticiário nos últimos meses, e eu andei prestando atenção, não teve uma semana em que não teve um ponto de atrito, alguma questão grave envolvendo os militares, seja pelo fato de os militares entrarem naquela onda de colocar as urnas eletrônicas em dúvida, e participar daquela comissão de fiscalização das eleições, sempre deixando uma dúvida sobre a lisura, sobre a correção do processo eleitoral, a segurança das urnas… É desde tudo, desde Pazuello…”

“Espero que os militares leiam. Sei que muitos vão ficar decepcionados, ou podem querer deturpar. O Exército é uma instituição importante, mas não pode ser politizada, não é? Eu tenho uma visão crítica em relação a isso”

Victor não imaginava que aquela primeira pauta à piauí o levaria a um mergulho profundo nas águas muitas vezes turvas das forças armadas. Em cinco anos, fez 99 entrevistas, leu 160 livros de referência sobre o tema, pesquisou em arquivos e coleções de jornais.

Poder camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com o bolsonarismo, vem recebendo diversas resenhas elogiosas.

“Excepcional”, escreveu Ruy Castro em sua coluna na Folha de São Paulo.”Os militares também deviam lê-lo, para aprender sobre os militares”.

***

Leia trechos do livro:

  • Arquivos da ditadura

“Por mais que tenha representado apenas um ínfimo raio de luz na escuridão que reinava (e em muitos aspectos até hoje reina) no quesito, Collor foi o primeiro presidente a autorizar, em 1991, a abertura dos arquivos da repressão, os dos Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo e do Rio de Janeiro, que estavam sob guarda da Polícia Federal – algo reconhecido por militantes de direitos humanos”.

  • Direito à memória e à verdade

“Ao apresentar o projeto de lei da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, que reconhecia como mortas pessoas desaparecidas por participação (ou acusação de participação em atividades políticas de 1961 a 1979, Fernando Henrique Cardoso foi o primeiro presidente a assumir como responsabilidade do Estado os crimes cometidos pelos governos da ditadura”.

  • Guerra pela memória

“O fim da ditadura marca o início de um confronto diferente, a guerra pela memória. Desde a abertura política, vigora na caserna a ideia de que os militares perderam – para a historiografia, as universidades, s imprensa, a sociedade civil como um todo – as primeiras batalhas desse conflito. Até hoje é onipresente entre altos oficiais fardados a certeza de que, graças a essas derrotas na esteira da redemocratização, a maior parte dos brasileiros sem farda nutre em relação às Forças Armadas uma postura revanchista pelo ocorrido na ditadura”.

  • Guerra cultural e kit gay

“Bolsonaro captou o espírito do tempo com sagacidade. A revisão histórica da ditadura era um tópico importante na guerra cultural, mas a agenda de costumes regressiva (uma espécie de atualização do lema fascista ‘Deus, pátria e família’, do começo do século XX e dos valores por trás da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, de 1964) seria também fundamental na construção de sua figura pública. Um golpe baixo, mas eficiente, nesse processo, foi a invenção do “kit gay”, expressão com que o deputado [Bolsonaro] batizou o material educativo do programa Escola sem Homofobia, lançado em 2011 pelo Ministério da Educação liderado por Fernando Haddad. Em pautas do tipo, Bolsonaro atuava em parceria com a bancada evangélica, e nesse caso, a ofensiva do grupo foi brutal: naquele 2011, deputados federais de direita atacaram o ‘kit gay’ em 47 discursos. Acossada por líderes evangélicos, Dilma caiu na esparrela. Embora o material do programa fosse voltado a professores, para auxiliá-los em atividades de combate à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, a presidente vetou o material e deu até declaração que parecia ter saído da boca de um fundamentalista religioso: “Não aceito propaganda de opção sexual. Não podemos intervir na vida privada das pessoas”.

  • “Teto duplex” dos salários

“Em apenas um ano após a assinatura da portaria liberando os supersalários aos militares, os generais do governo Bolsonaro já haviam recebido R$ 350 mil a mais”.

“Os rendimentos do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucionalda Presidência, general Augusto Heleno, somaram R$ 866 mil, R$ 342 mil acima do teto constitucional”.

General Augusto Heleno, homem idoso de cabelos brabcos e sem blante neutro, sentado por trás de uma bancada. Ao seu lado, projeções de fotos suas ao lado de Bolsonaro e fardado com boina azul das tropas das Nações Unidas.

No governo, o general Heleno teve salários R$ 342 mil acima do teto. Crédito: Marcello Casal/Agência Brasil

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AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.