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Por Almir Cunha*
Costumeiramente visito o meu twitter. Gosto dessa rede social por achá-la bastante dinâmica quando o assunto é a notícia em primeira mão. Em 28 de março, acompanhando os fatos políticos da semana, me deparo com um link compartilhado por um dos filhos do jornalista potiguar, Rubens Manoel Lemos, este, preso e torturado no período opressor da ditadura militar. O post em seu twitter fazia oposição obviamente a infame declaração de Jair Bolsonaro, saudosista e exímio lambe botas de torturadores. Me refiro a ordem enviada aos quartéis pelo presidente para que se comemore o 31 de março em alusão ao golpe de 64.
Para os que assim como Bolsonaro insistem em propagar por má fé ou por desconhecimento próprio a infame frase “que não houve ditadura” e “que tudo aquilo foi uma Revolução Militar”, peço encarecidamente que leiam o comovente e detalhado depoimento do jornalista Rubens Manoel Lemos através do link abaixo.
Entre os trechos do que Rubens Lemos intitulou de Memórias do Exílio, compartilho o que mais me comoveu:
Você não vai morrer
Fui tirado da cela. Diante de mim, o doutor Fernando, com uma bíblia na mão. Perguntou se eu acreditava em Deus. Respondi que minha formação religiosa era evangélica. Ele falou:
– Então você compreende que a própria bíblia justifica a violência. Cristo expulsou os vendilhões do templo à chibatadas. Pedro cortou a orelha de um centurião. Você está aqui para purgar seus pecados. O martírio é necessário para resgatar e purificar almas.
Eu arrisquei a perguntar:
– O senhor considera, então, a tortura como um ato de fé religiosa e cristã?
O doutor Fernando chamou o carcereiro Leite e ordenou:
– Leve esse canalha. Eu mesmo quero mostrar a ele o que é a bíblia.
Fui torturado por horas seguidas. E a pior tortura ocorreu quando puseram diante de mim um velho chamado Holanda, de Recife. Ele tinha o peito queimado por isqueiro. Um olho estava quase fora de órbita. Como se tivesse acontecido uma briga mortal entre dos galos. O velho Holanda me olhou, altaneiro:
– Irmão, eu sei que vou morrer, mas a ele não digo nada!
Diante dos torturadores eu disse:
– Não velho. Você não vai morrer. Mesmo que eles lhe matem.
Explodiu dentro de mim uma revolta enorme e, buscando coragem, não sei aonde, comecei a cantar:
Angústia, solidão, um triste adeus em cada mão, lá vai meu bloco, vai só desse jeito é que ele sai(…)
Por isso, quando eu passar,
Batam palmas pra mimGritos e gemidos calaram. E das imundícies das celas, uma voz tímida começou a cantar também. Outra voz de juntou. Outras vozes se juntaram. E os torturados fizeram um coro maravilhoso:
Merece uma homenagem quem tem forças pra cantar,
Tão grande é minha dor,
Pede passagem quando sai.
Por isso só, lá vai meu bloco, vai…E todos os prisioneiros políticos do DOI-CODI assumiram a música como uma das formas de resistência. Apesar das ameaças do doutor Fernando, coronel à época, cujo verdadeiro nome é Cúrcio Neto. Que torturava presos, lia a bíblia e, depois ia, possivelmente, fazer amor com as mulheres.
Por uma grata coincidência, no mesmo dia (28), recebo uma ligação do querido amigo de grandes encontros regados a cerveja e bons papos políticos, Carlos Lenine. A mim, ele relata que anda muito incomodando com o fato de Jair Bolsonaro, para além dos seus erros graves, anunciar que nos quartéis brasileiros o 31 de março de 1964 será reservado para comemorações ao período que se instalou o regime militar no país. Isso porque o seu pai, José Bezerra Furtado, membro do PCB à época e do Sindicato dos Conferentes de Pernambuco, foi preso e torturado nos anos de chumbo.
Lenine me manda via whatasapp um desabafo comovente. Na condição de neto de um preso político que teve seu mandato de prefeito da cidade do Paulista, na Região Metropolitana do Recife, cassado em 1964, e cumprindo o papel de jornalista em um regime democrático, não pensei duas vezes em ajudá-lo a compartilhar a sua história. Em partes do seu relato, Lenine conta que há duas semanas vem tendo pesadelos, lembrando das torturas e sofrimento do seu pai na ditadura, o velho Furtado, como chama cariosamente até hoje.
“Por várias vezes vi meu velho chegar em casa cheio de hematomas, o rosto inchado e vomitando sangue. Isso ainda hoje me atormenta” relembra.
Ele conta que atualmente tem se sentindo mais fortalecido e que sempre se recorda de uma frase a qual o seu pai disse certa vez: “Irei lutar até a morte, e pagarei com o meu silêncio, mesmo apanhado no pau de arara, não entregarei meus companheiros. E a luta continuará mesmo com a minha morte”. Segundo Lenine, esta frase foi dita no DOI-CODI, no Recife.
Furtado foi anistiado politico em fevereiro de 1994 e teve a oportunidade de ver sua anistia política publicada no Diário Oficial da União, assinado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. O Velho Furtado cursou até o 3º ano de medicina e abandonou o curso por causa da 2º Guerra Mundial. Trabalhou no Sindicato dos Conferentes dos Portos de Pernambuco, onde começou sua militância.
“Em 1964 morávamos no Edifício Califórnia em Boa Viagem, quando meu pai foi retirado de casa pelo Exército debaixo de porrada. Nessa época eu tinha 2 anos. E minha mãe, Dona Lúcia, contava sobre esse ocorrido”.
Lenine conta que na infância presenciou varias vezes esse fato. Numa delas ele tinha 11 anos de idade, dessa vez no Bairro Novo, em Olinda. “Ele passou 5 dias desaparecido. Ninguém tinha noticias. No sexto dia depois de tanto procurar, a família o encontrou em um pronto socorro no Recife”.
Entre as recordações mais fortes em sua memória, Lenine diz que lembra nitidamente a chegada do seu pai em casa. “Lembro dos vizinhos e familiares tirando o meu pai de dentro de uma ambulância, colocando ele numa cadeira de balanço e trazendo para dentro de casa”. Nesse momento, ele lembra que se perguntou: O que ele fez de tão grave para merecer isso?
O Ato Institucional nº5 cassou o direito do velho Furtado de trabalhar e a família passou por muito tempo vivendo da ajuda dos familiares. Ainda criança, Lenine diz ter tido a oportunidade presenciar várias vezes e participar de reuniões do partidão (Partido Comunista Brasileiro) com o seu pai, Paulo Cavalcante, Moacir Cortes (presidente do Sindicado dos Conferentes de Pernambuco) e demais membros do partido. “Ainda pequeno, acompanhava meu pai fazendo discurso em praça publica, falando da ditadura e a repressão social que o povo passava naquela época”, disse.
José Bezerra Furtado faleceu no dia 24 de setembro de 1994 em decorrência de um infarto.
* jornalista
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.