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Crédito: Giovanna Carneiro/MZ Conteúdo
Uma mãe que estava disposta a fazer de tudo pelo seu filho. Saiu de sua casa em plena pandemia e atravessou a cidade no transporte público para cuidar da casa da madame e garantir o sustento e um futuro para o seu amor mais verdadeiro. Passaram trezentos e sessenta e cinco dias, mas para ela é como se fosse uma vida inteira, porque o norte de sua caminhada agora é outro.
Trezentos e sessenta e cinco dias depois e ela não sai mais de casa para servir à branquitude, a dor e a morte escureceram os fatos e a fizeram enxergar que precisava de conhecimento para derrubar as estruturas do racismo. O luto ficou para depois. Após trezentos e sessenta e cinco dias esse depois ainda não chegou.
Quem dera pudesse passar o dia revirando as fotos e relembrando os momentos felizes que teve nos cinco anos que pôde dividir com o seu único filho. Quem dera a justiça zelasse pela vida de pessoas como ela, de pele escura, vida sofrida e oportunidades limitadas, mas ela sabe bem que não é assim, agora mais do que nunca.
Esmorecer ante a morte era uma opção viável e compreensível, pois perder um filho é ir contra a lei natural da vida, afinal, “o certo é o filho enterrar a mãe e não o contrário”, quantas vezes não ouvimos isso? Mas há uma força que ultrapassa a compreensão de muitos, mas que é comum às pessoas negras. É coisa de pele, como faz questão de escurecer a mãe.
Ancestralidade, negritude e comunidade, são os valores que colocam de pé dezenas e centenas de mães que perderam seus filhos. Não é difícil de entender quando você se encontra com uma delas. Sempre rodeadas de seus semelhantes, mãos e abraços pretos unidos em uma corrente pronta para amparar as dores sem fim de um povo que foi e segue sendo humilhado, à mercê de uma sociedade e de uma justiça escravocratas e racistas.
Em trezentos e sessenta e cinco dias, a trabalhadora doméstica virou estudante de Direito, o núcleo familiar de três pessoas, avó, mãe e filho, se transformou em um corpo social com milhares de integrantes, que, juntos, gritam, escrevem e clamam #justiçaporMiguel.
No asfalto em frente ao prédio de luxo de onde a criança caiu do 9º andar, dezenas de corpos se estiraram e afirmaram: “eu só queria minha mãe”. Quantas crianças pretas do Brasil só queriam crescer felizes, amparadas pelas suas famílias, e acabaram mortas antes mesmo de conhecer as possibilidades para além dos lares, no horizonte do futuro? Quantas mães enterraram seus filhos e junto com eles seus sonhos?
Miguel, que sonhava em ser policial, agora é filho da futura advogada Mirtes Renata. A perda de um filho fez nascer em uma mulher preta o desejo de fazer justiça com suas próprias mãos e voz. Essas mãos pegam os livros de Direito há noite e de dia seguram o microfone em mais um ato pelas ruas da cidade do Recife, na construção de uma luta que tem o objetivo de garantir um futuro digno e seguro para crianças pretas como a sua.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.