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Pajés não morrem

Marco Zero Conteúdo / 19/12/2022
à direita da foto, está o pajé, um homem idoso, sem camisa, com colares tradicionais e um pequeno cocar de penas brancas e uma pena preta; à esquerda da foto está um homem jovem, de pele escura, colares tradicionais pretos e um cocar de penas azuis e detalhes em penas vermelhas.

Crédito: Acervo pessoal Alcides Potiguara

por Pedro Paz*

O corpo do pajé Chico tombou subitamente no epílogo de 10 de maio deste ano, por volta das 23h30. Fora vítima de um infarto do miocárdio, que é quando um coágulo bloqueia o fluxo sanguíneo para o coração. – “Pajé Chico não morreu, ele foi plantado”, advertiu-me Alcides, ex-cacique, braço direito da liderança e auxiliar indígena de mobilização de políticas sociais.

Com a voz embargada e em meio a silêncios que revelavam seu desalento, contou-me que o dia seguinte ao ataque cardíaco foi de luto sagrado em Baía da Traição, onde fica a casa de taipa do pajé, na aldeia São Francisco, a mais populosa povoação do litoral norte paraibano, com mais de três mil famílias. Nenhuma escola abriu. Não houve atendimentos nas unidades de saúde da região.

Após acolhimento da família e de parentes, de amigos, de outros pajés, de caciques e cacicas, de demais lideranças indígenas, de curumins e de representantes de instituições públicas como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o povo potiguara seguiu a pé, no início da tarde, em Toré, ritual comum a diversas etnias do Nordeste brasileiro, entre elas Pankararu e Xukuru-Kariri, para enterrar o tronco de Francisco José dos Santos.

O sepultamento aconteceria na aldeia São Miguel, a cerca de sete quilômetros da aldeia São Francisco, onde fica o cemitério mais próximo, perto das ruínas da igreja de São Miguel Arcanjo, edificada entre os séculos XVII e XVIII e tombada em 1980, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep).

Os escombros são símbolo da presença católica dos colonizadores portugueses, marco da ocupação territorial do Brasil e onde estão os ancestrais dos potiguaras. Se não houvesse a possibilidade de encova no campo-santo, pajé Chico já tinha comunicado que preferia no interior de uma mata.

Trajados de cocares e de marajás e na posse de flechas e de bordunas, caciques e cacicas de Baia da Traição e dos municípios vizinhos de Marcação e de Rio Tinto, que formam o território potiguara na Paraíba, conduziram a cerimônia com a presença dos encantados, entidades sobrenaturais indígenas.

Na itineração de formações vegetais de mangue e de floresta tropical, sob forte ventania e com curumins ora alegres e ora em silêncio, foram entoadas canções como “Lá no pé do cruzeiro, ô, Jurema” e “Caboclinha da Jurema”, também ponto de Umbanda, regravada pela cantora e compositora baiana Maria Bethânia.

“Cabocla, seu penacho é verde / Seu penacho é verde / É da cor do mar // É a cor da cabocla Jurema / É a cor da cabocla Jurema / É a cor da cabocla Jurema // Juremá // Cabocla, seu penacho é verde / Seu penacho é verde, é da cor do mar // Eu vou me banhar / Lá nas águas claras / Nas águas de Janaína / Lá nas águas claras”, modulavam os originários.

Ao final, ocorreram a recebida e a entrega do corpo do pajé Chico aos seus encantados de luz, sendo realizada, logo em seguida, sua consagração, a fim de devolvê-lo à Mãe-Terra, como se fosse uma jurema, uma das muitas espécies das quais a acácia é o gênero, uma planta considerada sagrada no sincretismo brasileiro afroameríndio.

Chico deixou a esposa, um filho, seis filhas fêmeas e netos. Mas o povo potiguara é seu primeiro filho. Alcides reivindica que o pajé teve participação ativa na demarcação das terras potiguaras e tabajaras, que ocupa trecho entre a Ilha de Itamaracá e a foz do rio Paraíba, além de territórios em Piripiri e em Lagoa de São Francisco, no Piauí.

Organizados politicamente, os potiguaras mantêm um conselho de 32 lideranças. O grupo, mais o cacique-geral Sandro Gomes Barbosa e o conselho de anciãos, responsável por conservar e preservar costumes e tradições e por avaliar condutas, resolverá quem assumirá a pajelança do Chico.

Alcides sabe que tem que honrar o legado do pajé. Por meio de áudios no aplicativo de troca de mensagens WhatsApp, relatou-me os motivos pelos quais seu tio merecia um obituário, fundamentados na sua experiência enquanto cuidador do pajé, participando também de reuniões e de assembleias em Brasília, no Distrito Federal.

Assim, conheceu todas as obrigações de uma liderança indígena no contemporâneo e aprendeu a midiatizar o trabalho e a causa, com noção do que é ou não é notícia, do que deve ou não ser dito. Produção de fotos e de vídeos para meios de comunicação e redes sociais digitais.

Independentemente de ser ou não escolhido novo pajé potiguara, compreende que não pode fugir do compromisso da defesa do território, da cultura coletiva e familiar, da educação, da saúde do seu povo; um guerreiro de luz com sabedoria capaz de promover alianças e de disseminar a cosmovisão potiguara aonde quer que vá.

*Pedro Paz é jornalista e doutorando em Antropologia pela UFPB.

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