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Para não deixar o esquecimento tomar conta da verdade

Samarone Lima / 20/08/2016

Recife, 18 de agosto de 2016. Auditório do Sindicato dos Servidores Públicos de Pernambuco (Sindserp), na Boa Vista, Recife.

Pauta do Marco Zero: Audiência da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara.

Tema: Violação dos direitos humanos no campo durante a Ditadura Militar.

O auditório tem cerca de vinte pessoas, entre os velhos militantes políticos, alguns jornalistas e poucos jovens, que parecem pesquisar sobre o tema. A mesa da Comissão vai sendo montada, para o procedimento de praxe: uma breve introdução sobre os trabalhos da Comissão, e o objetivo do dia.

Neste caso, ouvir e registrar o depoimento de oito pessoas que viveram na pele, no corpo e na alma a violência do período militar recente (1964/1985). São sete homens e uma mulher. Cada um deve se identificar, com nome completo, RG e CPF, e falar durante vinte minutos. Ao final, os integrantes da mesa vão fazer inúmeras perguntas, pare elucidar as circunstâncias das mortes de quatro pessoas, cometidas por agentes do Estado, naquele período.

Martinho Leal de Campos resgatou a memória de um companheiro do Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT), Paulo Roberto Pinto, o Jeremias, assassinado aos 22 anos, dia oito de agosto de 1963, no Engenho Oriente, em Itambé, quando liderava um movimento dos trabalhadores rurais para pressionar pelo pagamento do 13º salário.

“Quando ele chegou ao Engenho, estava acompanhado por uma multidão. Abriu os braços e disse: ‘Estamos vindo em paz’. Foi morto, com mais dois camponeses”.

O momento mais tocante do seu depoimento, no entanto, foi uma reflexão sobre o papel da memória:

“A memória é uma forma de enfrentar a morte. É uma forma de não deixar o esquecimento tomar conta da verdade”.

Sete meses depois, veio o Golpe, e ninguém foi punido pelos assassinatos.

José Paulo de Assis se apresentou como um camponês analfabeto, que começou a trabalhar com sete anos. Lembrou a mudança que houve no campo, com a eleição de Miguel Arraes para governador, em 1962, e a posse em 1963. “Foi quando o pobre aqui comeu uma carninha”, disse.

A alegria durou pouco. Arraes foi deposto com o Golpe, ficou um ano preso em Fernando de Noronha e depois foi para o exílio.

O depoimento de José Paulo, que é de Rio Formoso, foi como um panorama da violência sistemática e organizada, promovida pelos donos de Engenho, que tinham seus capangas para resolver as coisas pessoais, e a Polícia (e depois o Exército) para missões de larga escala. Mortes, surras, desaparecimentos.

Comissão da Verdade 2

José Joaquim Camilo, Maria Alda Bezerra Costa, José Paulo de Assis, José de Santana, Anacleto Julião, Martinho Leal Campos, José Joaquim da Silva e Antônio Alves Dias resgataram, com seus depoimentos à Comissão da Verdade, a memória dos crimes da Ditadura no campo.

Sorte ou acaso

José Joaquim da Silva, o Zito da Galiléia, era um menino de oito anos, quando viu nascer, em Vitória de Santo Antão, o fenômeno das Ligas Camponesas, sob a liderança do seu avô, o Zezé da Galiléia.

Resumiu uma vida em vinte minutos. Cresceu num momento em que a semiescravidão no campo, especialmente na Zona da Mata, começou a ser enfrentada, no final da década de 1950.

Após o Golpe, acompanhou de perto o desastre – muitas lideranças do movimento foram caçadas, presas, torturadas e mortas. Seu avô foi preso no 7º R.O., em Olinda. Recebia apenas pão, sem água, que retirava de um esgoto quebrado, no meio da cela. Ficou seis meses incomunicável, teve um AVC e foi libertado. Morreu em 1969. Com medo do clima repressivo, Zito se mudou para São Paulo. Foi motorista de ônibus, casou, teve filhos. Só passou a falar da Galiléia depois que o Brasil voltou à democracia.

Severino José de Santana foi um dos presidentes da Liga de Bento Velho. Após o Golpe, foi preso, com dezenas, centenas de outros do campo. Ao chegar à Secretaria de Segurança Pública, no Recife, já sabia o que lhe esperava – torturas, pau-de-arara.

O acaso o livrou, quem sabe, da morte.

“Tiraram meu documento do bolso, mas eu estava com a identidade do meu irmão. Foi por isso que saí, e hoje estou aqui, contando a história”, disse.

Ele foi para São Paulo e mudou o nome para Djalma. Mas de 1964 a 1979, vivia agoniado, com medo. Só com a Anistia, passou a respirar. “Eu pensava que a qualquer momento seria descoberto, como aconteceu com Francisco Julião”.

Com a mesma simplicidade dos outros camponeses, ele disse que nunca foi um homem que pudesse ser chamado de “perigoso”.

“Os homens da Usina diziam que, seu eu fosse preso, não sobreviveria, porque era perigoso. Mas nunca matei ninguém, nunca roubei, nunca invadi terra de ninguém, para dizerem que eu era perigoso”.

Por conta dos dois nomes, o processo dele na Comissão da Anistia foi arquivado. Ele encaminhou com o nome de Djalma.

“Mas Djalma e Severino são a mesma pessoa”, lembrou.

Manoel Morais, membro da Comissão a Verdade Dom Helder Câmara, e da Comissão da Anistia, explicou que o processo dele poderá ser reaberto. Pegou os dados e ficou de encaminhar oficialmente o pedido.

Comissão da Verdade 3

Primeiramente, Fora Temer. Anacleto Julião, filho do líder das Ligas Camponesas Francisco Julião, associou o momento atual da política brasileira aos anos 60: “Tivemos uma ditadura militar. Agora, podemos ter uma ditadura civil, respaldada pela Justiça e a Imprensa”.

 

“Fora Temer”

O advogado Anacleto Julião, filho de Francisco Julião, começou seu depoimento com um “Fora Temer”. E explicou:

“Agora, neste momento, estamos vivendo um Golpe no Brasil. Hoje, temos que falar o que foi este período de extrema aflição, que foi uma ditadura civil-militar. Agora podemos ter uma ditadura civil, respaldada pela Justiça e pela Imprensa”.

Ele fez uma breve reflexão sobre a questão da violência no campo:

“Todos os camponeses que deram depoimentos aqui, são da raça negra, descendentes de escravos. A mesa é toda da raça branca. Há um componente de raça”, observou.

Após seu depoimento sobre vários aspectos da luta no campo e da violência antes e durante o Golpe, ele fez a doação de vários documentários produzidos por diferentes autores, ao longo dos anos, e cópias de vários processos encaminhados à Comissão da Anistia, que encaminhou como advogado.

Todo este material fará parte do acervo do Memorial da Democracia, após a conclusão dos trabalhos da Comissão da Verdade, em dezembro deste ano.

 

AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.