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Para não esquecer: advogada agredida por delegado recebe apoio de organizações antirracistas

Débora Britto / 10/06/2020
Delegacia do Varadouro

Foto: Google Maps

Movimentos negros e organizações antirracistas realizaram ato na noite da terça (9) pelas redes sociais em solidariedade à advogada Ana Cristina, que foi detida arbitrariamente pelo delegado Osias Tibúrcio Fernandes de Melo na Delegacia do Varadouro, em Olinda. A agressão aconteceu no dia 28 de maio, mas desde então vem mobilizando esforços de ativistas e advogados para que não se torne apenas mais um número.

A advogada Ana Cristina estava à espera de uma cliente em frente à delegacia e foi abordada pelo delegado que pediu a identificação da advogada. Ela apresentou a carteira da OAB, mas se recusou a entregar o documento ao policial. Em seguida, segundo Ana Cristina, ela foi puxada pelo braço e arrastada para dentro de delegacia. Ao menos duas testemunhas estavam com ela – um rapaz que dirigia o carro da advogada e seu sócio. 

“Eu me desloquei para a Delegacia do Varadouro porque tinha marcado com a mãe do cliente para passar o resultado da audiência de custodia dele. Marcamos lá por ser um ponto central e, ao meu ver, por ser um local mais seguro. Nesse meio tempo, aproveitei para dar uma olhada numa salinha para alugar no prédio que fica ao lado da delegacia para montar o escritório de advocacia, eu e meu sócio”, lembra a advogada. 

Segundo ela conta, tudo foi muito rápido. À medida que era puxada para dentro da delegacia, ela segurou em uma grade e continuou sendo puxada com violência. 

“Ele perguntou qual era o nome do meu cliente e eu disse, depois ele perguntou o nome completo. Aí eu respondi que não tinha porque dar o nome completo do meu cliente. Ele disse ‘se identifique’ e eu prontamente tirei a minha OAB de dentro da minha bolsa e mostrei. Sendo que ele queria pegar em mãos. Eu não dei e fui guardar dentro da bolsa. Ele não ficou satisfeito, me puxou pelo braço e disse ‘venha para dentro da delegacia’. Eu disse que não tinha nada para fazer dentro da delegacia. E ele disse ‘você vem’ e saiu me arrastando como se eu fosse uma bandida, um animal. Saiu me arrastando com toda forca bruta, com violência. Chegou lá em cima da calçada, perto da entrada, eu segurei num ferro que tinha. Ele ficou me puxando com força, até hoje [quatro dias depois] meu braço esquerdo ainda está todo dolorido dos puxões. Ele gritava ‘você vai entrar, você vai entrar!'”.

O relato das agressões e humilhações sofridas pela advogada não acaba aí. Ela foi puxada com tanta força que chegou a urinar quando era empurrada para dentro da delegacia e passou horas detida sem poder ir ao banheiro se limpar ou ter apoio de qualquer pessoa. “Eu fiquei lá dentro, ele mandou trancar a grade da delegacia com cadeado e ninguém saia, nem ninguém entrava. Eu disse que ele [o delegado] estava sendo totalmente arbitrário, disse que eu sou uma mulher, advogada, profissional e o senhor está violando meu direito. Disse que ele praticando abuso de autoridade. Ele disse que eu podia representar na corregedoria”, relembra Ana.  

Enquanto a advogada estava arbitrariamente detida, o sócio dela mobilizou a Comissão de Prerrogativas da OAB-PE e outros advogados para tentar resolver a situação. Ainda assim foram necessárias quase seis horas para Ana Cristina ser liberada. Segundo ela, durante todo o tempo ninguém dentro da delegacia tentou intervir em seu favor. Para a advogada, o delegado estava visivelmente alterado durante todo o tempo e não há qualquer justificativa para o que aconteceu. 

Advogados destacam que não existe obrigação legal de entregar o documento da OAB a alguma autoridade, de acordo com as prerrogativas da profissão. O caso ainda está sendo apurado pela OAB-PE e pela Polícia Civil. A advogada Ana Cristina ainda irá prestar depoimento na delegacia.

Como Ana Cristina teve as prerrogativas de advogada violadas, a Comissão de Defesa de Prerrogativas da OAB-PE está acompanhando o caso diretamente, além das Comissões de Igualdade Racial e da Mulher, uma vez que há elementos racistas e machistas na agressão que Ana sofreu. 

Movimentos negros e sociais denunciam racismo 

“Me ver pobre, preso ou morto já é cultural”, verso da música Negro Drama, de Racionais MC, foi o mote do ato em solidariedade à advogada Ana Cristina, que também chama atenção para as diversas expressões e formas de violência contra a população negra que, inclusive, aumentaram mesmo durante a pandemia do coronavírus. 

O ato foi organizado pelas organizações que compõem a Articulação Negra de Pernambuco (ANEPE) e aconteceu na noite de terça-feira (9), transmitido pelas redes sociais do movimento. De acordo com Sheyla Xavier, educadora, integrante do Coletivo Afronte e da ANEPE, a ideia do ato veio no sentindo de dar voz a Ana Cristina e não deixar o caso cair no esquecimento. ” A gente percebe que muitas coisas que acontecem com a população negra no nosso estado costumam ficar muito veladas, apagadas. A ideia é que todos as entidades que compõem a ANEPE e parceiros possam falar sobre isso para dar visibilidade a esse ato tão sério. Tem gente do Brasil todo que mandou vídeos em solidariedade a Ana e em repúdio à violência praticada contra ela”, conta.

Articulação publicou nota em apoio à advogada nas redes sociais.

Para a ANEPE, o caso é mais um exemplo de racismo institucional, ou seja, o racismo impregnado dentro de instituições governamentais ou privadas e que, em geral, é pouco debatido pela sociedade e pelas próprias instituições.”O racismo tem todas esses facetas e às vezes a população não consegue enxergar. É importante falar para as pessoas o que é e como acontece. A ideia é não deixar esse caso ficar impune e fazer a sociedade, para além das pessoas envolvidas com o movimento negro, saber o que aconteceu. Além disso, é preciso entender como o racismo incide nas pessoas negras independente de posição social e de qual profissão ela exerça”, explica Sheyla.

Durante o ato, integrantes de diversas organizações e movimentos sociais fizeram falas sobre racismo e como combatê-lo. Além de prestar apoio a Ana Cristina, diversas falas lembraram a necessidade de acompanhar as investigações do caso de Miguel, menino de 5 anos que caiu de um prédio de luxo no Recife.

“O racismo atua de forma muito sorrateira, ele atua onde a gente não está. A gente precisa pensar sobre os espaços de poder. Entender a história, compreender que somos um só povo e que precisamos estar juntos nessa construção. Nesse momento de enfrentamento à Covid19, a gente precisa construir as estratégias de luta com muita sabedoria”, defendeu Karla Pereira, da Frente Favela Brasil.

Além de reforçar que tanto Ana Cristina como a família de Miguel não estão sozinhos e podem contar com o apoio dos movimentos e organizações, lideranças pontuaram a importância de manter a mobilização para denunciar outros casos de violência e racismo. “A pandemia escancarou diversas desigualdades e escancarou as cruéis condições de vida às quais a população negra é submetida. Nós queremos construir a total superação do racismo”, afirmou Mônica Oliveira, da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e da ANEPE.

Combate à naturalização do racismo

Segundo Manoela Alves, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB Pernambuco, apesar de não ter sido registrada durante a agressão alguma fala ou expressão racista não significa que o caso não tenha o racismo como motivação. A Comissão foi acionada ainda no dia em que ocorreu a agressão e irá acompanhar o desenvolvimento do caso. 

“Para a gente falar numa perspectiva de racismo, de machismo, a gente não necessariamente vai confirmar apenas e tão somente quando a pessoa for pega usando expressões racistas ou machistas. A gente fala de um racismo estrutural e machismo fruto do patriarcado. Paramos para pensar: será que se fosse um homem ele teria sido arrastado para dentro da delegacia da forma como foi? Será que teriam deixado o tempo que ela passou urinada, numa sala? Ele teria esse mesmo tratamento?”, questiona Manoela. 

Para ela, é importante não perder de vista a compreensão do racismo estrutural. “É claro que características como ela ser uma mulher, ser negra, fazem com que ela fique muito mais vulnerável nesse contexto”, diz. 

Para Eliel David, advogado negro e que também integra a Comissão de Igualdade Racial da OAB e a Articulação Negra de Pernambuco, infelizmente, situações de discriminação não são novidade no exercício diário da advocacia. Ele explica que, apesar de negros e negras serem a maioria da população, nos espaços institucionais muitas vezes a presença de um advogado negro é vista com estranhamento. “Existe sempre uma surpresa e muitas vezes o questionamento de querer confirmar através da carteira profissional se você é realmente advogado”, conta.

Não há novidade. O racismo disfarçado de estranhamento permanece vivo nas instituições. Às vezes será apenas um olhar, em outras situações pode acabar em violência, como foi o caso da advogada Ana Cristina. 

“O tratamento diferenciado vai muito no questionamento. Muitas vezes é através desse questionamento que a gente tem prerrogativas violadas e foi o que aconteceu com a doutora Ana Cristina. Nesse processo de racismo o delegado não entendeu ou duvidou que ela fosse realmente uma advogada e fez questionamento de que ela apresentasse a carteira e chegou as vias de fato”, analisa Eliel. 

Outro ponto central apontado pelo advogado é a “facilidade” com que a advogada teve seus direitos violados, sendo mantida detida por horas apesar de todos os esforços da OAB. “O que mais me chamou a atenção no caso da advogada Ana Cristina é o fato de como é fácil prender e manter presas, sobretudo se essas pessoas forem pessoas negras. Foi o que aconteceu ali. Ela passou mais de 6 horas detida e mesmo tendo uma articulação enorme para que o direito dela fosse resguardado ainda assim demorou muito tempo. Eu, quanto advogado preto, me coloquei nesse lugar”, reflete. 

Foi preciso apenas um delegado para submeter Ana a uma situação de degradação e humilhação arbitrária. A advogada conta que, durante o tempo que passou na delegacia, não teve sequer a permissão de ir ao banheiro, nem lhe foi oferecido água. Também nenhum servidor na delegacia interveio para questionar a atitude do delegado.

Posição da Polícia Civil e Corregedoria da SDS

Em nota, a Polícia Civil informou à reportagem que um delegado foi designado especialmente para apurar o que aconteceu. “A Polícia Civil de Pernambuco informa que em face ao episódio registrado na tarde do dia 28/05/2020, envolvendo uma advogada e um delegado de polícia no Plantão da Delegacia do Varadouro, designou em caráter especial o Delegado Frederico Marcelo para apurar em sua inteireza o evento. Convém ressaltar que a Corregedoria da SDS-PE e da OAB-PE se fizeram presentes no plantão acompanhando os procedimentos inicialmente adotados. Por fim, a Polícia Civil enfatiza que vem trabalhando diuturnamente em conjunto com todas as instituições em prol da sociedade pernambucana, buscando sempre a excelência na prestação dos serviços de polícia judiciária”, diz o posicionamento.

Também perguntamos se há registros de outras denúncias ou investigações relacionadas à conduta do delegado que deteve a advogada, mas fomos informados de que essas informações deveriam ser solicitadas à Corregedoria. 

Entramos em contato com a Corregedoria da Secretaria de Defesa Social (SDS) no dia 3 de julho, mas até a data de publicação da reportagem não obtivemos resposta. 

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.