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Quando há ondas de calor, há aumento dos casos de dengue. Essa relação direta é apontada por uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que analisou os padrões de incidência de dengue em um período de 21 anos nas microrregiões do Brasil comparando com as anomalias térmicas no mesmo período — quando as temperaturas são mais altas do que a média histórica. O estudo Mudanças climáticas, anomalias térmicas e a recente progressão da dengue no Brasil serve como um indicador de previsão de surtos principalmente para regiões que eram consideradas de pouca incidência de dengue e que estão sofrendo com ondas de calor. E também acende um alerta para o Nordeste.
De acordo com os resultados do estudo, a frequência das anomalias térmicas durante o verão são o indicador climático mais importante no aumento das taxas de incidência de dengue no longo prazo. Áreas de maior altitude, antes consideradas um fator que restringia a transmissão da dengue, representam hoje uma zona geográfica suscetível à expansão da área de transmissão da dengue e também de outras arboviroses, diz a pesquisa.
No estudo, o que mais chamou a atenção foi o Centro-Oeste e parte do Sudeste e do Sul do país, que desde o final do ano passado sofrem com a alta de casos de dengue.
“Há cidades grandes, quentes e chuvosas que têm dengue circulando o ano todo, como Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Belém. Mas só que do ano passado para cá teve uma novidade que foi o interior. Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais, áreas que tinham baixa incidência de dengue começaram a ter uma incidência muito alta. E aí que entra a tal da mudança climática, porque começou a ter onda de calor ano passado no meio do inverno, em agosto e setembro, e isso fez disparar todo o processo da transmissão de dengue”, diz o pesquisador e autor do estudo Christovam Barcellos, do Observatório de Clima e Saúde, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz).
Há ainda uma relação intrínseca com o desmatamento do cerrado. “Falamos muito da Amazônia, mas a região mais desmatada do Brasil é o cerrado. É onde está se transformando floresta em pasto para produção de campos de soja, de milho. E o que está acontecendo é um desmatamento com migração para as cidades. Essas culturas usam pouca mão de obra. Tanto o trabalhador quanto o empresário, o fazendeiro proprietário de terras, não moram no campo. Geralmente moram em pequenas e médias cidades em torno do campo. Então isso inchou e aqueceu as cidades, criando uma bolhas de calor”, diz o pesquisador.
A correlação entre as anomalias térmicas e o aumento de casos de dengue já foi também recentemente estudado na Argentina. Lá, uma pesquisa semelhante também mostrou que os dias com temperatura acima da média são mais importantes no espalhamento da dengue do que o aumento da temperatura média ou das chuvas. Assim como boa parte do Brasil, a Argentina também está passando por uma epidemia de dengue, com hospitais lotados e até falta de repelentes nas farmácias.
Como são regiões – e países – onde a dengue não tinha tanta incidência, a população vulnerável aos quatro sorotipos do vírus da dengue é muito mais ampla do que no Nordeste, por exemplo. “Muita gente não tinha anticorpos contra a dengue. Então a velocidade de espalhamento é muito maior e pega muito mais gente. Isso explica, por exemplo, a rapidez com que os casos de dengue aumentaram no Centro-Oeste, por exemplo”, diz Barcellos.
Entre as limitações do estudo estão questões de dados das variáveis climáticas e epidemiológicas. O quadro pode não ser adequado para uma única cidade, ou seja, os surtos de dengue nem sempre são resultado de anomalias da temperatura local em uma cidade específica.
O estudo, contudo, mostra que a posição geográfica e outras características demográficas das cidades potencializam o efeito de anomalias térmicas. “Os surtos são previsíveis. Se a gente ficar olhando o termômetro e perceber essas ondas de calor, é um sinal de que muito provavelmente vai haver surtos de dengue depois. Então, nós, empresas, prefeituras, governos temos que já nos preparar para evitar um surto de dengue”, completa o pesquisador.
Uma pesquisa anterior da Fiocruz Pernambuco, realizada em 2005/2006, mostrou que boa parte da população recifense já teve contato com o vírus da dengue. E há uma variação em relação aos bairros que as pessoas moravam: nas áreas mais nobres, 74,3% dos moradores de áreas já haviam tido um dos quatro tipos de dengue, enquanto nos bairros mais pobres esse percentual dava um salto para 91,1%. A pesquisa não fez diferenciação entre os quatro tipos.
Esse contato prévio com o vírus pode diminuir o ritmo de propagação da dengue na população nordestina, mas também pode significar uma probabilidade maior da população desenvolver casos mais graves da doença. “Porque essas pessoas provavelmente já tiveram casos de dengue anteriormente. Os infectologistas afirmam que uma infecção atrás da outra de dengue, com diferentes sorotipos, pode agravar os casos”, diz Barcellos.
Há ainda uma outra preocupação que os dados do estudo mostram para o Nordeste. É só observar nos gráficos: tirando o litoral, grande parte do Nordeste está em vermelho desde 2007. O que quer dizer que são áreas que tiveram de 12 a 30 dias com temperaturas acima da média em meses de verão.
“Se há onda de calor atrás de onda de calor, não podemos nem mais chamar de onda. Já é um patamar diferente. Pode significar uma elevação de temperatura de um grau, até dois graus acima do valor histórico. Pode ser que as mudanças climáticas estejam acontecendo definitivamente nessas áreas. Não é mais uma anomalia térmica, como ainda chamamos, mas um novo normal”, destaca o pesquisador.
A dengue é uma doença difícil de ser combatida tanto por conta da sua forma de propagação – pela picada de um mosquito – quanto pelos fatores socioeconômicos que favorecem a propagação deste vetor. A eliminação do Aedes aegypti já teve e tem várias estratégias: mosquitos geneticamente modificados para reproduzir mosquitos que morrem antes da fase adulta; mosquitos infectados com a wolbachia, uma bactéria que impede que os vírus se desenvolvam no Aedes aegypti; e os famosos fumacês, pulverização maciça de inseticidas. Mas nada disso parece funcionar isoladamente.
“Você achar que vai eliminar um mosquito é muita arrogância do ser humano”, diz a pesquisadora de saúde pública da Fiocruz Pernambuco Eduarda Cesse. Ela defende que não há bala de prata para um problema tão grave e complexo quanto a epidemia de dengue no Brasil . “Há uma relação muito forte da doença com os determinantes sociais. Há ondas de calor, mas as pessoas não têm abastecimento de água adequado, então vão juntar água, que irão virar criadouros. Não acredito que o mosquito possa ser eliminado. O que a gente precisaria, que também é difícil, seria eliminar os condicionantes do mosquito”, afirma.
A mesma pesquisa da Fiocruz Pernambuco citada nesta matéria também mostrou que a “força da infecção” chega a ser três vezes maior entre os moradores de um bairro rico e de um bairro pobre.
Para Eduarda Cesse, o que é necessário, e urgente, para se combater o aedes aegypti é uma gestão de saúde coordenada. “Com tecnologia, mas com várias frentes. E com o empoderamento da população, mas não culpabilizando essa população. Quando uma pessoa junta água no quintal, não é porque ela está querendo fazer um criador propositalmente. É porque a água não chega na torneira dela. Então, ela precisa entender, já que a gente não consegue ter uma política pública que diminua ou controle todas essas desigualdades, que o principal criadouro da dengue está dentro da casa dela. E não é culpa dela isso. Mas que se ela não tiver esse cuidado, ela vai ser a principal vítima também. A gestão coordenada e o empoderamento da população são questões fundamentais”, afirma.
O mais próximo de uma solução definitiva pode ser a vacinação em massa da população. Mas a única vacina existente no Brasil é a do laboratório japonês Takeda, em quantidade ainda insuficiente. E que mesmo assim ainda está sobrando nos postos de saúde de algumas cidades autorizadas para a vacinação – que é apenas para crianças e adolescentes de 10 a 14 anos.
Há, ainda, a expectativa de que a vacina do Butantan – em estudo há mais de 20 anos – finalmente saia da fase de teste e siga para o pedido de aprovação da Anvisa. “Só quando tiver realmente aprovada e com muita gente imunizada é que vamos ver como vai se dar a imunização da população. Por enquanto, não podemos contar com uma vacina que não está disponível. Quem trabalha com saúde pública sabe como é importante uma vacina para controlar uma epidemia”, diz Cesse.
Para Barcellos, a vacinação em massa deveria seguir o modelo da febre amarela. “Não existe negacionismo contra a vacina da febre amarela. É uma doença horrível, como a dengue também é, e que pode ser controlada com a vacinação. As pessoas tomam quando vão para áreas em que há a circulação do vírus, não se pode viajar sem tomá-la. Acho que a vacinação será o mais próximo que teremos como bala de prata contra a dengue”, afirma.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org