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Crédito: Divulgação
por Júlia Moa
Os ecos do passado escravocrata persistem no interior da Bahia. Vinte e três comunidades rurais e quilombolas de Palmas de Monte Alto, a 720 quilômetros de Salvador, pedem ajuda: há 15 anos os moradores reivindicam aos poderes públicos a construção de uma escola nas terras de seus antepassados. Enquanto o pedido não é atendido, a única solução para as crianças e jovens é encarar percursos de até 80 quilômetros, cinco vezes na semana, dentro de um ônibus sucateado para estudar na escola que existe na sede do município.
A logística é puxada e testa a resiliência dos pais e alunos; das 24 horas do dia, durante quatro (duas horas para ir e duas para voltar), os alunos estão em trânsito. Isso porque as comunidades do Baixio, que significa distantes da sede do município, estão isoladas 45 quilômetros da zona urbana, e desde 2008 inexiste uma escola que ofereça educação infantil, ensino fundamental e médio, além dos cursos profissionalizantes. Os estudantes têm como única alternativa o deslocamento até Palmas do Monte Alto ou outros povoados nos arredores.
Nelci Conceição, tataraneta de Vitor Rico, o primeiro quilombola que, há pelo menos 350 anos, pisou no solo conhecido hoje como quilombo Aroeira, é liderança do Coletivo de Comunidades Montealtenses e coordenadora do Conselho de Igualdade Racial Comunitário das Comunidades Quilombolas de Palmas do Monte Alto. Segundo ela, vivem por ali aproximadamente 2 mil quilombolas e agricultores familiares, e a construção de uma unidade escolar é demanda emergencial. “Nossos estudantes enfrentam o fator climático de muito sol, poeira e vento em péssimas estradas. Os ônibus escolares também não estão em boas condições para transportar os estudantes que têm o direito à educação. Precisamos de ajuda”, afirma Conceição. Sua crítica à pedagogia disseminada nas escolas fora dos territórios quilombolas se debruça sobre a não valorização das especificidades, contextos e tradições de seu povo.
Na infância, ela e seus irmãos frequentavam uma escola perto da comunidade. Eles andavam a pé aproximadamente três quilômetros para chegar à fazenda Aroeira. Quando o primeiro professor formado no quilombo começou a trabalhar, moradores conseguiram improvisar, no quarto de uma casa, a escola que trabalhava com a Educação de Jovens e Adultos (EJA), o programa Alfabetização Solidária e ainda dava conta de atender à educação infantil. O plano durou apenas dois anos, de 2006 a 2008, e, por decisão política, a escola foi fechada, com os alunos sendo transferidos para espaços fora dos quilombos.
Em 2021, o requerimento da construção do prédio escolar foi encaminhado para o então governador da Bahia, Rui Costa, atual ministro-chefe da Casa Civil. Este ano, o pedido chegou a Jerônimo Rodrigues (PT), eleito em 2022. Governo estadual e a Secretaria Municipal de Educação de Palmas do Monte Alto foram procurados pela reportagem e não manifestaram posição.
Para a construção da unidade escolar, um terreno foi doado à comunidade quilombola Brasileira, a 28 quilômetros de Palmas de Monte Alto, em um ponto praticamente equidistante para as 23 comunidades . A previsão é de que 1.200 estudantes venham a frequentar diariamente a escola, no dia em que ela for inaugurada.
“É visível na gestão pública municipal a falta de interesse em construir uma unidade educacional no Baixio, alegando falta de recursos. O foco deles está na edificação, dentro da cidade, de um colégio do campo, e nós queremos uma resolução que atenda os alunos das áreas descobertas”, destaca Nelci. Tivemos acesso ao ofício enviado aos órgãos governamentais, e não houve sequer uma visita técnica no terreno para conferir as possibilidades.
A lavradora Diana de Jesus Brito teve a rotina da família alterada no momento em que a Escola Municipal Flores, na zona rural do Baixio, encerrou as atividades em 2022 com a justificativa de não ter o número suficiente de alunos para o funcionamento do espaço. Atualmente, sua filha de 7 anos, realocada numa outra instituição longe de casa, sai para estudar às 11h e retorna apenas às 19h. A preocupação em relação à segurança das crianças no trajeto e a falta de equilíbrio nos hábitos alimentares, pois elas precisam almoçar muito antes dos familiares, por volta das 10hs, torna sacrificante o dia a dia de todos.
“É muito cansativo deslocar daqui do quilombo até a cidade. Enfrentamos quatro horas na estrada em ônibus sem nenhuma qualidade. Seria bom ter uma escola mais próxima, porque não sobrecarregaria a minha mente, e eu poderia estar mais disposta para os estudos”, desabafa Cleide Vânia dos Santos Neves, 15 anos, que, diante da correria semanal, às vezes não consegue almoçar antes de ir para a escola. Ela persiste por gostar de aprender e sabe da importância em adquirir conhecimento para o seu sonho profissional, a faculdade de Medicina.
Essa luta cotidiana inicia, na perspectiva da líder do Grupo de Mulheres do Quilombo Vargem Comprida, Vanda Santos de Oliveira, aos quatro anos de idade, quando a maioria das crianças adoece. Uma tosse que perdura o ano inteiro, diarreias e vômitos por ingerirem água quente nas altas temperaturas do sertão baiano são algumas das consequências enfrentadas pelos pequenos quilombolas desde cedo. “A educação no campo para os pais e discentes se tornou difícil, nossos filhos encaram quilômetros de estrada de chão todos os dias para estudar. Sonhamos com escolas e creches para educar os remanescentes quilombolas dentro da cultura afro-brasileira sem perder o vínculo de valorização da nossa ancestralidade”, reflete Vanda.
A desmotivação cerca Diego Levy, oito anos anos, que, mesmo acordando às 5h da manhã para ir para a escola, não adaptou o seu relógio biológico à imposição rotineira. Diego prefere ser desafiado apenas pelos números; sua matéria preferida é a matemática. Por conta dela, se anima para não perder o pique e abandonar os estudos.
Utilizando os dados numéricos para avaliar o cenário educacional dos quilombolas do Baixio, observamos no levantamento fornecido pelas comunidades que 278 pessoas são analfabetas. Mesmo diminuindo a taxa de analfabetismo no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pessoas que não sabem ler e escrever são majoritariamente negras. Comprovando mais uma vez que o racismo estrutural segue em curso com o projeto que desprivilegia gente preta do mapa da existência.
A quilombola Shirley Pimentel de Souza, membro do Fórum Permanente de Educação Escolar Quilombola da Bahia e doutoranda em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que o movimento quilombola está tentando se articular para sanar as divergências via mediação da Defensoria Pública. A questão das comunidades do Baixo é pauta prioritária no Fórum, assim como publicizar nas redes sociais e grupos de WhatsApp, para poder circular as notícias das violações dos direitos das comunidades quilombolas, pressionando o poder público para que os órgãos responsáveis possam agir.
“A negação da ancestralidade africana repercutindo dentro do espaço escolar é fruto do racismo estrutural institucionalizado. As escolas possuem racismo na base. Temos um arcabouço de legislação que garante o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígenas nas escolas e, posteriormente, temos as diretrizes curriculares para educação escolar quilombola”, informa Shirley, que acompanha as comunidades quilombolas na organização de uma maior representatividade dentro do currículo escolar a fim de impedir a destruição do conhecimento local, conceito conhecido como epistemicídio.
A Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) está conferindo presencialmente a conjuntura das escolas quilombolas pelo país, cenas calamitantes são descritas em diferentes cantos. Givânia Maria da Silva, co-fundadora da Conaq e coordenadora do Coletivo Nacional de Educação, menciona que na Bahia o fechamento das escolas quilombolas causa impactos negativos. Sabe-se que muitas instituições encerraram as atividades mesmo com a alta frequência de estudantes. “Todos esses problemas nos fazem compreender que o projeto colonial em curso impede o avanço significativo na educação quando o público-alvo é a população negra. Lamentável estar no século 21 e ainda não ter os direitos assegurados a todas as pessoas. Não é verdade que durante a pandemia da covid-19 as crianças quilombolas estudaram remotamente; isso nunca aconteceu. Elas ficaram sem estudar por um longo tempo”, contesta Givânia.
Na tentativa de recuperar o tempo perdido e somar forças nas demarcações territoriais, a Conaq investe no treinamento e formação de professores, para que estes estejam munidos de ferramentas práticas no ensino inclusivo e antirracista nas esferas municipais, estaduais e federais.
O Ministério da Igualdade Racial (MIR), órgão inaugurado em 2023 no mandato do presidente Lula (PT), declarou coordenar o Programa Aquilomba Brasil, que recupera e amplia o programa Brasil Quilombola, e a Agenda Social Quilombola. Conforme a Coordenação-Geral de Educação Étnico-racial, as políticas específicas para a educação quilombola ainda não foram finalizadas e aprovadas num plano de ação. Da mesma forma, até o presente, não está finalizado o plano de ação do Aquilomba Brasil, onde constarão as métricas físicas e financeiras dos programas que incidirão sobre a comunidade quilombola nos próximos quatro anos, de forma integrada por todos os ministérios, envolvendo repasse de recursos, formação continuada, oferecimento de bolsas, termos de compromisso e acordos para a viabilização de obras etc.
No entanto, a Coordenação-Geral do Ministério da Educação (MEC) informou que o seu plano de ação será autorizado pela respectiva Secretaria no decorrer deste mês, quando poderá ser passado de forma integral e segura.
O que está funcionando neste momento, voltado para a melhoria da formação da equipe de educação nos quilombos, é o Escola Quilombo, um curso de aperfeiçoamento em educação escolar quilombola que preconiza a formação continuada de profissionais da educação e lideranças quilombolas. Este programa está acontecendo simultaneamente no Instituto Federal da Bahia (IFBA), Instituto Federal do Pará (IFPA), Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
A Bahia é permeada por contradições e conflitos em sua dinâmica territorial. Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, geógrafo e professor titular da Universidade de Brasília (UnB), chama a atenção para o Censo Demográfico de 1872. Nele, a Bahia foi a província que apresentou o maior número de africanos, africanas e descendentes recenseados. Ou seja, a Bahia é um estado de essência africana, comprovada cartográfica e historicamente.
“A resistência não resolvida de cinco séculos ainda se configura de forma predominante na sociedade atual e nos territórios afro-brasileiros, sobretudo nos quilombos contemporâneos e nos terreiros religiosos de matriz africana. Neste sentido, o processo educacional (público e privado) é uma pista concreta para a transformação deste quadro de resistência colonial no país, onde os segmentos invisibilizados secularmente passem a ser vistos e inseridos na cidadania nacional”, pontua Sanzio, que sinaliza a negligência estatal no não reconhecimento oficial das tradições e tecnologias que os antepassados trouxeram da África, como a agricultura comunitária, a medicina natural, a religião estruturada, a mineração eficaz, as técnicas de arquitetura e construção, o artesanato e utensílios de cerâmica e palha, as línguas diversas, o sistema de numeração e matemática, a relação sagrada com o espaço geográfico, a amplitude da culinária, a forma comunitária de uso e ocupação do território, dentre outras maneiras de expressão cultural e tecnológica.
Na avaliação do professor Sanzio, as ações do atual Governo Federal indicam a opção de não resolver de forma eficaz as demandas territoriais conflitantes. Nessa direção, a falta de uma “política de Estado”, consistente e duradoura, e não “política de governo,” pontual e cosmética, possibilita o processo de extinção e descaracterização desses territórios étnicos, vistos erroneamente como “espaços de problemas,” porém podem ser olhados com outra ótica, ou seja, “territórios das soluções” para demandas sociais e econômicas da nação. Como exemplo, ele cita a economia quilombola com sua diversidade de produtos e referências produtivas que podem ser inseridas nas cidades brasileiras.
“O ‘Selo Quilombola’ que agrega valor e integridade ao território e a comunidade tradicional, poderia ser implementado de forma mais assertiva na estrutura do Estado. Entretanto, constatamos que o Brasil africano continua invisível oficialmente há 135 anos, melhor dizendo, a rejeição secular do Estado ao fim do sistema escravista é o fio condutor básico da frequente articulação para a naturalização-normalização da democracia precária e da conservação dos privilégios. Importante lembrar que a manutenção do quadro de desinformação da população brasileira no que se refere ao continente africano continua sendo um entrave estrutural para uma perspectiva real na democracia racial do país”.
O professor da UnB frisa o papel da educação para a inserção da população de matriz africana na nossa sociedade: “A inferiorização desta população no sistema escolar causa danos imensuráveis para as sucessivas gerações. Uma vez que estamos tratando com uma ordem que está institucionalizada há mais de um século, sobretudo na educação geográfica permitida e na forma distorcida e limitada como é ensinada no país”.
*Jornalista multimídia, vencedora do prêmio Respeito e Diversidade do MPF
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