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Crédito: Acervo pessoal
por Fabiana Coelho
Vinte e seis de janeiro é o Dia Nacional de Prevenção e Combate à Hanseníase. As estatísticas mais recentes registram mais de 200 mil casos novos da doença no mundo. Quase 30 mil deles estão no Brasil, que ocupa a vice-liderança mundial – atrás apenas da Índia. Neste Janeiro Roxo, mês em que a população deveria ser convocada a discutir a hanseníase, é o caso de questionar como uma doença, que tem cura e não se transmite facilmente, pode continuar existindo por mais de 3.500 anos?
Para quem atua na área, três pontos merecem ser destacados: as falhas nos diagnósticos; a negligência com alguns sintomas e as políticas públicas insuficientes de prevenção e tratamento.
O caso de Maurineia Vasconcelos é emblemático. Ela tem hanseníase há 23 anos. Quando obteve o diagnóstico, a doença já estava avançada. Não havia manchas no corpo, apenas dores. Os médicos falavam em reumatismo ou febre reumática. Foram quase dois anos de peregrinação pelos postos de saúde.
Maria (nome fictício) passou mais de 20 anos buscando a causa para suas dores. Recebeu diagnósticos de fibromialgia, Síndrome do Túnel do Tarso, polineuropatia, a lista é longa.
Ambas carregam no corpo as consequências destes diagnósticos tardios: Maurineia tem as “mãos em garra”, um nervo dos braços comprometido e metade da perna esquerda amputada; Maria tem pés e mãos deformados. “A hanseníase tem cura mas, se não tratada logo, as sequelas são permanentes, a exemplo de poblemas vasculares, feridas crônicas e nervos destruídos. Tudo isso pode causar cegueira, amputações e muitos outros problemas”, afirma Pollyane Medeiros, do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas Pela Hanseníase (Morhan), em Jaboatão.
Foi o que aconteceu com Maurineia. Com uma ferida crônica, que não foi tratada adequadamente, ela precisou amputar metade da perna esquerda em 2020. “Isso acontece com muitas pessoas e é uma de nossas lutas: que as pessoas com sequelas possam ter acesso a um acompanhamento digno, com salas de curativo e mais facilidade na assistência”, diz Pollyane.
Para Alexandre Menezes, diretor da organização não governamental Fundação NHR Brasil, pouquíssimos médicos estão capacitados para diagnosticar a doença. “Fala-se da hanseníase como uma doença dermatológica e a maioria dos especialistas da área são dermatologistas, mas trata-se de uma doença dos nervos. Geralmente as lesões na pele só surgem quando ela já está adiantada. Os sintomas neurais são negligenciados”, explica.
Andrea Maia é médica vascular e hansenóloga. Trabalha nessa área há 14 anos, no Serviço de Referência Municipal de Petrolina. Para ela, a própria OMS (Organização Mundial de Saúde) tem responsabilidade na negligência aos sintomas neurais quando define os casos da doença conforme o número de lesões na pele. “A bactéria parasita células que ficam dentro dos nervos periféricos ou em pequenos nervinhos da pele. Os profissionais de saúde não aprendem sobre o acometimento neural na faculdade. Como tentar acabar com uma doença neurológica se temos que esperar que ela apareça na pele?”, questiona.
Uma das pacientes de Andrea, que prefere não se identificar, descobriu a hanseníase por acaso. Com uma espécie de cansaço permanente nas pernas, procurou uma médica vascular para tratar o que ela acreditava ser um problema de circulação. Ao apalpar os nervos da paciente, Andrea percebeu um espessamento. Os sintomas eram discretos mas, com as observações clínicas e um exame PCR, a especialista conseguiu confirmar o diagnóstico.
A maioria dos exames disponíveis hoje podem apenas sugerir a doença. A baciloscopia só é positiva quando o paciente já apresenta muitos bacilos espalhados pela pele. A dosagem de anticorpos pode servir para acompanhamento, mas a presença de anticorpos apenas indica que o paciente está exposto à doença, e não que tenha a presença da bactéria. O PCR permite detectar a infecção e investigar o DNA do microorganismo.
No caso dos sintomas neurais, também é possível observar o espessamento e alterações dos nervos a partir de instrumentos como a ultrassonografia e a eletroneuromiografia. “Mas a ultrassom de nervos periféricos e a eletroneuromiografia não estão disponíveis na maioria das cidades. E o PCR, por enquanto, só é realizado em centros de pesquisa. Não está disponível comercialmente e nem pelo SUS”, afirma Andrea.
Para o diagnóstico, os médicos precisam levar em conta diversos fatores, incluindo o histórico do paciente. Segundo Andrea, área de pele aparentemente normal, mas com anestesia, já fecha o diagnóstico. É importante avaliar a sensibilidade e a força muscular dos olhos, mãos e pés. “Outro achado comum, mas desconhecido pela maioria das pessoas e profissionais de a saúde, é a presença de áreas sem pelo nas pernas de homens”, relata a médica.
Apesar de não ser uma doença cuja transmissão esteja relacionada à questões de saneamento básico ou higiene, a hanseníase afeta sobretudo as classes sociais mais baixas. “A qualidade da nutrição é um dos fatores que contribui para isso. Trata-se de uma doença que afeta de forma diferente as pessoas conforme o grau de imunidade. E uma alimentação inadequada diminui a imunidade”, explica Andrea.
Para Alexandre Menezes, questões como moradia e assistência à saúde também contribuem para que a doenca se torne uma doença que atinge sobretudo os mais pobres. “A hanseníase não se transmite facilmente, como uma covid ou uma gripe. É preciso haver um contato prolongado. Nas áreas mais pobres é comum mais de dez pessoas dividirem um único quarto. Ambientes pequenos, mal ventilados e com grande concentração de pessoas”, explica.
A recomendação da OMS e do Ministério da Saúde é que, nos casos de hanseníase, seja feita a investigação dos contatos, ou seja, que as pessoas próximas sejam acompanhadas clinicamente. Mas, os vários grupos que atuam no enfrentamento à doença são unânimes em afirmar que esse acompanhamento é falho e, quando acontece, restringe-se aos contatos domiciliares.
Entre outras iniciativas, a NHR Brasil tem se dedicado a uma pesquisa clínica de medicação preventiva para contatos próximos de pacientes com hanseníase. Os testes estão sendo feitos com famílias de Fortaleza e Sobral (Ceará), e também por filiais da organização na Índia e Indonésia. A pesquisa envolve estudos, mapeamento de casos e administração dos medicamentos. A expectativa é que seja concluída em 2026.
Mesmo sendo uma doença que tem cura e de difícil transmissão, o estigma ainda pesa contra os que têm hanseníase. Recentemente, Pollyane Medeiros, do Morhan, testemunhou um episódio de preconceito que de um profissional de saúde em uma clínica de fisioterapia. “Ao ter acesso ao laudo de uma pessoa com sequelas, que já tinha cumprido tratamento, ele chegou a afirmar, na frente de todos, que a hanseníase não tinha cura, revelando sua ignorância sobre a doença e expondo a pessoa à discriminação e preconceito”.
Falta de informações e uma cultura milenar, atrelada a conceitos bíblicos e religiosos, contribuem para isso. Uma das entrevistadas que não quis se identificar relata: “Deixei de ser convidada para alguns eventos quando falei a colegas sobre minha doença”.
Organizações como a NHR Brasil e a Morhan, e diversos grupos de autocuidado, contribuem para que pessoas com hanseníase lidem de forma coletiva com a doença. Premiada no ano passado durante o Fórum Social Brasileiro de Doenças Infecciosas e Negligenciadas, Maurineia Vasconcelos coordena o Grupo Saúde, que reúne pacientes da policlínica municipal Clementino Fraga, no Vasco da Gama. Atividades de empoderamento, oficinas de empreendedorismo, troca de experiências, apoio e assistência, festividades e eventos ajudam os participantes a lidar com a doença e com o preconceito.
A hanseníase tem cura, mas ainda há controvérsias quanto à forma de administração dos medicamentos. A médica Andrea Maia, por exemplo, é contra a padronização nos prazos de duração do tratamento. “Passado o período de seis meses ou um ano, sugerido pela OMS, é preciso haver um acompanhamento cuidadoso. Tenho observado casos em que algumas bactérias resistem”, conta.
Glauco Lima teve hanseníase na década de 80. Teve erupções na pele e demorou até obter o diagnóstico. Na época, o processo de tratamento era mais longo e complexo. Seis anos depois, a doença se manifestou nos tendões.
Ele garante que foi infectado duas vezes. Mas, para Andrea, é possível que alguma bactéria tenha resistido e, com o tempo, voltou a se reproduzir no organismo. “Este é o objeto de minha tese de mestrado. Venho acompanhando casos em que, mesmo depois do período de tratamento, o material coletado e enviado para biópsia revela a presença de bactérias vivas. Acredito na importância de haver um acompanhamento dos pacientes para que os prazos para administração dos medicamentos seja adequado a cada situação”, diz.
O fato é que, embora seja uma doença milenar, ainda há um longo caminho a percorrer até zerar a transmissão da doença, meta antiga para quem atua na Saúde Pública. Para isso, há que reforçar os estudos e informações sobre a doença; melhorar as políticas de prevenção e tratamento; dar atenção aos sintomas invisíveis e neurais; e agir contra a desinformação e preconceito.
Fique atento aos sintomas: não apenas manchas ou falta de sensibilidade na pele. Dormência ou formigamento em mãos ou pés, câimbras constantes, dores no corpo, fraqueza ou cansaço muscular. Tudo isso também pode ser um sinal de Hanseníase. O tratamento da doença é feito apenas pela rede pública. Se você tem alguns destes sintomas e é atendido na rede particular, pode convencer seu médico a fazer uma investigação mais aprofundada antes de procurar o posto de saúde de seu bairro.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.