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Crédito: Diadorim Jornalismo
por Iran Melo*
E, no apagar das luzes do ano, a linguagem não-binária volta a incomodar. No último dia 12, o Projeto de Lei nº 6256/2019, que institui a Política Nacional de Linguagem Simples nos órgãos e entidades da administração pública direta e indireta foi votado e aprovado na Câmara Federal, trazendo a antiga querela sobre o assunto para pensarmos um projeto de país. Dessa vez, tal PL defende que uma linguagem não-binária, por criar modelos não convencionais de representar gênero na gramática, é prejuízo para a escrita acessível de textos oficiais e, logo, deve ser banida desse contexto em território nacional.
O texto original sofreu grandes distorções durante a tramitação e, quanto ao seu tema central, que é a linguagem acessível, baseia-se em recomendações genéricas e, muitas vezes, vinculadas ao senso comum, portanto sem fundamento científico, para estabelecer “o conjunto de técnicas de linguagem simples” que deve ser observado pela administração pública em suas ações de comunicação dirigidas à sociedade. Entre essas recomendações, está a de se evitar o uso da voz verbal passiva e de estruturas intercaladas nas sentenças em qualquer situação, sem que se levem em conta o contexto e o objetivo da interação, regra básica tão cara aos estudos da linguagem.
A Associação Brasileira de Linguística (Abralin) por intermédio de sua comissão de Políticas Públicas, coordenada pelo professor doutor Xoán Lagares, estabeleceu diálogo com parlamentares federais para propor mudanças no texto do PL. Em reunião, conversou com a Deputada Erika Kokay (PT-DF), autora do projeto, a fim de apresentar contribuições da ciência da linguagem. Algumas colaborações foram acatadas, mas muitas outras ficaram pendentes e, mesmo assim, a matéria foi encaminhada para o Senado, que a votará em 2024.
Inadvertidamente, o compromisso desse texto e do grupo de representantes do povo que o propôs jogou a água da bacia com o menino dentro. Com fins de desburocratizar a leitura da voz da administração pública, não reconheceu que a linguagem é um bem cultural capaz de transformar a realidade na medida em que também se transforma. Num país que, por mais de dez anos consecutivos, está no topo dos mais transfóbicos do mundo, mudar a linguagem convencional, inventar novos modos de escrever, é mudar a convenção da violência que estrutura nossa sociedade e mata pessoas trans e travestis. A linguagem não-binária, que desmantela a ordem considerada normal das coisas, com seus “todes”, “elus” e “corpas” nos convida para outro horizonte social. A seguir, apresento algumas razões por que a linguagem não-binária é um direito de aprendizado para transformarmos o Brasil.
1. A legislação de uma língua nunca é de uma língua. É de usos dela. Quando a população cria uma palavra nova, uma maneira de interagir, um jeito de escrever, ela sempre está respondendo a necessidades sociais. É, de cara, um engano acharmos que vamos acabar com um modo de usar a linguagem por meio de decreto ou de lei. Mas, ainda que se busque legislar sobre a língua, é preciso que esse debate seja feito em diálogo com o povo e com especialistas. Algumas investidas assim já aconteceram em nosso país. Por exemplo, no começo dos anos 2000, o deputado Aldo Rebelo apresentou um projeto de lei que proibia estrangeirismos anglófonos no Brasil inteiro, com o objetivo de proteger a língua portuguesa do imperialismo estadunidense. Em meados dessa mesma década, o então governo Lula lançou uma cartilha orientando quais palavras eram proibidas em escolas, a fim de não criar ambientes “politicamente incorretos”. Essas tentativas não seguiram em frente, simplesmente porque, por mais bem intencionadas que estivessem, pregavam sobre a língua, mas não abriam conversa sobre ela. Nada sobre nós sem nós – qualquer legislação acerca da fala do povo deve ser aberta primeiramente à consulta pública e em franca interlocução com linguistas.
2. Proibir a linguagem não-binária é um retrocesso histórico, tanto do ponto de vista linguístico, quanto político. Linguisticamente, não paramos a língua censurando seus modos em usos específicos, como os textos do Estado. No máximo, com isso, o que fazemos é criar um lugar estratificado, estigmatizado, monitorado e de um determinado registro linguístico. Esse engessamento não é nada bom para quem usa a língua. O melhor a fazer é permitir que a mudança da língua afete os textos, sejam eles quais forem, sob pena de, além de se fomentar usos “de plástico” – não ligados ao natural do que as pessoas falam – também aprofundar a desigualdade de classe social, porque, por exemplo, ao se definir modelos prontos de escrita, criamos reservas de aprendizado para esses mesmos modelos e alavancamos pedagogias para o consumo de determinados modos em detrimento de outros (à maneira como já faz a escola no ensino de uma língua de prestígio). Já, politicamente, é imperativo nos perguntar: O que estamos fazendo se bloqueamos a disrupção, o rompimento, a mudança de criar novos paradigmas pela composição das palavras? Mantemos a estrutura presente. E é isso que queremos? Queremos que as pessoas continuem não reconhecendo que existem várias formas de gênero e que é saudável, bonito, interessante que valorizemos as muitas maneiras de representar essas formas? A língua anda conforme as passadas sociais, nem mais para frente nem mais para trás. Apostar no aprendizado pela diferença é também uma maneira de propiciar acessibilidade a textos escritos.
3. Com o projeto 6256/2019 estamos protegendo um direito e descobrindo outro. Imaginamos que as pessoas não conseguem entender a linguagem não-binária. Grande engano. Essa linguagem, que é também chamada de linguagem inclusiva de gênero por setores da Educação e do Direito, forma-se a partir de padrões que já existem nas gramáticas das línguas. Por exemplo, no nosso português, temos palavras com a terminação “-e”, que são designações para indicar que não estamos falando exatamente do masculino ou do feminino em pessoas, mas de uma possibilidade aberta de gênero, como no vocábulo “participante”, por meio do qual sabemos se estamos tratando de uma mulher ou de um homem não pela palavra em si, mas por outras relacionadas a ela, como o artigo “uma” em “uma participante”. Esse modelo de terminação (que, em termos técnicos, chamamos de vogal temática) é empregado pela linguagem não-binária, por isso, para não indicar o gênero de alguém ou para apresentar que esse alguém é de uma identidade de gênero não binária, muitas vezes, criamos palavras como “alune”, em vez de “aluno” ou “aluna”. É claro que esse modelo não se aplica a todos os investimentos da linguagem não-binária, mas este e todos os outros que existem seguem regularidades da língua, ou seja, no Brasil, os instrumentos usados para a criação de palavras novas que são encaradas como incompreensíveis nesse contexto são os mesmos que todas as pessoas já usam e aprendem na língua portuguesa. E isso não é uma novidade, pois um dos princípios da mudança linguística é de que ela acontece por padrões que se repetem de alguma forma. Quem propõe a linguagem não-binária pensa nesses padrões também e isso só mostra que ela acaba repetindo regularidades e que, portanto, não veio para ser inacessível, como se imagina.
Além dessas três observações, existe outra óbvia. O PL aprovado pode relativizar a linguagem não-binária e permitir alguns modos mais usuais e de fácil leitura que sirvam para desbinarizar os gêneros. Por exemplo, na pesquisa de mapeamento que faço desde 2021, percebo ser de maior absorção e mais fácil compreensão, no Brasil, a aplicação da terminação “-e” ou a dos chamados torneios linguísticos de gênero, isto é, incentivar que, sempre quando, nos textos oficiais, falarmos de pessoas em geral, sem discriminar seus gêneros, façamos uso de formas como as palavras “pessoa” e outras muitas que não marcam nem masculino nem feminino. Com essa estratégia dos torneios, também evitemos usar o masculino gramatical como universal para grupos formados por pessoas de diferentes gêneros, permitindo formas como, por exemplo, em vez de “prezados servidores”, “prezada equipe” ou “prezado departamento”.
O assunto vai longe e existem muitas nuances sobre ele, porém, o mais importante nisso tudo é não perder de vista, como o PL está perdendo, que a língua precisa ser um campo de diversidade, respeito e amor entre as pessoas. Tornar a linguagem simples é tornar as pessoas felizes.
*Doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Análise Crítica do Discurso e Linguística na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)
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