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Indígenas Tremembé de Barra do Mundaú buscam passar a cultura ancestral às novas gerações | Foto: Luan de Castro Tremembé
Por: Alice Sales da Eco Nordeste
“Quem me dera ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto
Como o mais importante
Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente”
Como bem expressa os versos de “Índios”, canção escrita por Renato Russo, cantor e compositor brasileiro, os povos originários do Brasil vêm, ao longo dos séculos, sofrendo pressões que ameaçam sua existência. Entre incêndios nas matas, lutas sangrentas pela demarcação de terras em um país cujo Estado negligencia a causa, e ataques que resultaram nos assassinatos impunes de lideranças indígenas, o ano de 2020 trouxe uma ameaça tão grande quanto tudo que já enfrentam. Com capacidade de dizimar uma etnia inteira, o coronavírus chegou ao Brasil trazendo dor, incertezas, medos e esperança por dias melhores para os povos indígenas brasileiros.
O Distrito Sanitário Especial Indígena do Ceará (Dsei-CE), no Boletim epidemiológico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), até o dia 12 de novembro de 2020, notificou 2.365 casos de Covid-19 entre os indígenas cearenses, sendo: 39 suspeitos, 816 confirmados, 1.510 descartados, 14 infectados (atual), 794 recuperados (curados) e 6 óbitos.
Situados no município de Itapipoca, no litoral oeste cearense, o povo Tremembé habita as margens da Barra do Rio Mundaú. Em um território de 3.580 hectares, se dividem em quatro aldeias: São José, Munguba, Buriti do Meio e Buriti de baixo. Em uma paisagem cercada de natureza, os aldeões vivem entre belezas naturais de mangues, rios, mar, faixas de dunas, lagoas e sítios arqueológicos. Uma verdadeira comunhão com a terra, de onde tiram a maior parte do sustento das comunidades.
Como principal fonte de sobrevivência, os Tremembé de Barra do Mundaú contam com a pesca artesanal e a agricultura familiar, além de pessoas que trabalham na área da saúde, educação e empregos formais e informais fora das aldeias. Anualmente, as comunidades se articulam para a realização dos festejos, momentos próprios para os cultos às tradições da etnia e uma oportunidade para a venda de artesanatos e comidas típicas.
Comum à realidade da maioria dos povos tradicionais cearenses, os festejos também são momentos de divulgar as lutas indígenas e receber novos olhares de visitantes sobre as tradições originárias. Com a pandemia, todas essas realizações foram canceladas, fato que impactou diretamente na sustentabilidade das comunidades.
“Neste ano, por causa da pandemia, não realizamos os tradicionais festejos anuais. Deixamos de realizar a Festa do Murici do Batiputá, a Festa de Iemanjá, do Dia do Índio e a Festa da Farinhada. Sofremos muito enquanto comunidade indígena, já que, nestes festejos, trazemos sustentabilidade para as famílias”, relata o agente indígena de saneamento dos povos Tremembé, Samuel Nascimento.
A mesma realidade tem sido compartilhada pelos povos Anacé, que vivem em Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). O território é dividido em três grandes aldeias e, dentro delas, há diversas micro áreas. Na Aldeia Japuara, a divisão é feita entre as áreas Pau Branco, Mangabeira, Pindoba, Japuara, Serra e Salgadinho dos Anjos. Já a Aldeia Santa Rosa divide-se entre as áreas Tabuleiro Grande, Jacurutu, Santa Rosa e Bom Tempo. Uma outra aldeia, a Reserva Indígena Taba dos Anacé, foi concedida com a remoção de duas aldeias para a instalação da refinaria Premium 2, da Petrobrás.
Os Anacé desfrutam de riquezas naturais valiosas, mas nem os recursos oferecidos pela terra foram suficientes para conter as dificuldades que a pandemia trouxe. Dependentes da pesca e da agricultura, como a maioria das comunidades indígenas do Ceará, tiveram que traçar novos caminhos para a sobrevivência, uma vez que as medidas mais rígidas de isolamento social impossibilitaram o escoamento da produção de alimentos e artesanatos das comunidades. “Ficamos muito fragilizados, pois não tínhamos como trabalhar informalmente fora das aldeias, nem como fazer circular nossa produção. Assim, tivemos que recorrer a campanhas de arrecadações para tentar sanar um pouco das nossas dificuldades”, relembra o cacique Climério Anacé.
Anacé, Jeninpapo-Kanindé, Pitaguary, Tabajara, Tapeba, Tremembé e tantas outras etnias indígenas cearenses, que tiram seus sustentos da terra, compartilham, ao longo de 2020, dos mesmos desafios para manterem-se firmes no período. Tiveram que reunir forças para o enfrentamento de um tempo difícil, em que a bondade do próximo se fez ainda mais necessária.
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O que fazer quando não se pode vender o que se produz, quando não se pode adquirir alimentos de fora da aldeia, sob o risco de exposição ao coronavírus e nem se pode sair em busca de trabalho? “Recorri a uma campanha de arrecadação de alimentos. Conseguimos aprovar um projeto individual com a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e compramos equipamentos de limpeza e alimentos. Asseguramos alimentação para mais de 500 famílias indígenas durante a campanha e estamos aos poucos voltando aos empregos informais e às vendas de artesanatos e produtos das nossas plantações”, destaca o cacique Climério.
Os Tremembé contaram com o apoio dos parceiros e entidades. Receberam auxílio do Centro de estudos do trabalho e assessoria ao trabalhador (Cetra), da Fundação Nacional do Índio (Funai), Instituto Terramar e Instituto do Meio Ambiente do Município de Itapipoca, que organizaram campanhas de doações de materiais de higiene e cestas de alimentação. “Buscamos projetos para fortalecer a pesca e a agricultura neste momento, a fim de garantir a sustentabilidade das famílias, para que possam produzir seus próprios alimentos. Estamos desenvolvendo um projeto de cultura de alimentos, que traz a vivência e a cultura viva do nosso povo. Temos projetos na área da Medicina Tradicional no qual distribuímos plantas, sementes e mudas para as famílias, com o intuito de produzir alternativas, já que neste período ficamos isolados”, ressalta Samuel Nascimento.
Com a chegada da Pandemia, o Ministério Público Federal (MPF), em parceria com o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) vem atuando junto ao Distrito de Saúde Indígena (Dsei) do Ceará em prol das vidas indígenas. Desde o início, foi apresentado um protocolo de enfrentamento à pandemia de Covid-19, com um plano de vacinação e toda a política necessária, inclusive priorizando ouvir as comunidades. “Vem acontecendo uma articulação com as lideranças, que viabiliza o conhecimento das tradições, quesito fundamental neste processo”, enfatiza Hugo Porto, promotor de justiça do MPCE e integrante do Grupo Especial de Combate à Pandemia.
E completa: “Seguimos articulando com todos os municípios com esse intuito de prestar assistência às comunidades indígenas de todo o Estado. Definimos esses protocolos no plano de contingência e, em seguida, cuidamos da questão da segurança alimentar. Articulamos para que chegassem recursos para assegurar a sustentabilidade das famílias de forma segura”.
Segundo o promotor, outro ponto de intervenção foi a questão da saúde mental das pessoas neste período, em virtude de um suicídio que ocorreu na comunidade dos Tremembé. Por causa disso, foi feita uma capacitação com lideranças, contando com a participação de um antropólogo, Sérgio Brissac, do MPF.
Ele destaca que o maior ganho nisso tudo foi o fortalecimento dessa rede de apoio entre as autoridades e entidades estaduais e federais trabalhando juntos para um proposito: “Tivemos muitos desafios, por se tratar de uma situação nova, em que a ciência se debruçou e os agentes públicos e privados também. Como êxito, tivemos essa articulação para que chegassem recursos de saúde, testes, kits de higiene, preparação de equipes, conscientização das aldeias e dos agentes que interagem, além da comunicação e articulações”.
Para Hugo Porto, a maior necessidade das comunidades indígenas é a aproximação. Precisam ser ouvidos e terem seus costumes e tradições respeitados, assim como as nuances da vida aldeada e da ancestralidade indígena. Outra necessidade é a de comunicação, que precisa ser clara e acessível para que chegue em todos os pontos. “Nesta rede de apoio, procuramos maximizar e obter os melhores resultados dentro das possibilidades dos nossos recursos”.
Os Pitaguary, povo situado entre os municípios de Maracanaú e Pacatuba, na RMF, confeccionaram máscaras, distribuíram entre as aldeias e conseguiram ajudar outras comunidades indígenas do Ceará. “Recebemos doações de cestas básicas e kits de higiene. Seguimos com a campanha de conscientização para que a aldeia siga fechada e as pessoas não saiam, caso não seja uma necessidade”, destaca Rosa Pitaguary, liderança indígena.
“Chegou um dia que não tivemos outra escolha. Elegemos uma pessoa para ir resolver algumas coisas na cidade e fazer compras. A questão da educação foi muito sentida, tanto para pais, responsáveis, alunos e a própria aldeia”, reflete Renan Tabajara, da Etnia Tabajara, situada da Serra das Matas, em Monsenhor Tabosa, no sertão dos Inhamuns.
De acordo com Juliana Alves, liderança do povo Jeninpapo-Kanindé, filha da Cacique Pequena, escolhida como a primeira cacique mulher da América Latina, pelo menos algumas pessoas da comunidade em que vive estão sendo beneficiadas pelo auxílio emergencial disponibilizado pelo Governo Federal. Outras formas de apoio foram prestadas pela Federação dos Povos indígenas no Ceará (Fepoince) e suas organizações de bases local, estadual, regional e nacional, que buscaram arrecadar fundos para a compra de cestas básicas, junto ao Centro de Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza e da Secretaria de Serviço Social do Município de Aquiraz, na RMF, onde situa-se as comunidades do povo Jeninpapo-Kanindé.
Em resposta à Eco Nordeste, o Ministério da Saúde (MS) enviou nota onde destaca que a Sesai, desde janeiro, desenvolve estratégias de proteção, diagnóstico e tratamento da Covid-19 e vem fortalecendo a rede logística e o suprimento de insumos e equipamentos de proteção individual (EPI), estabelecendo fluxos de atendimento nas aldeias, polos base e Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI).
Destacou, ainda, que implantou Unidades de Atenção Primária Indígena (Uapi), com o objetivo de fortalecer os serviços nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei), respeitando as especificidades culturais e que, até o momento, 208 Uapi foram instaladas para identificar precocemente os pacientes de síndrome gripal ou de Covid-19 e iniciar os primeiros procedimentos no local.
“A criação das Equipes de Resposta Rápida (ERR) foi outro passo importante no combate à pandemia. Composta por médico, enfermeiro e técnico de enfermagem, a equipe permanece de prontidão no município que sedia o Dsei, com meios de transporte prontos para levá-la às localidades com eventual quadro de surto da doença. Em ações interministeriais, a Saúde Indígena integrou 15 missões com o objetivo de reforçar o atendimento médico em regiões de difícil acesso, por meio do atendimento de saúde especializado, testagens e distribuição de cestas básicas aos povos indígenas, de forma a preservar a saúde e evitar deslocamentos até as cidades para adquirir alimentos”, informou a Pasta.
Uma das principais preocupações por parte das lideranças está sendo a de proteger vidas de crianças e anciões indígenas, aqueles considerados como os verdadeiros guardiões da sabedoria e cultura ancestral dos povos originários. Somente nas comunidades dos povos Pitaguary, foram contabilizados mais de 50 pessoas infectadas. Em uma única família de 14 pessoas, 11 foram contaminadas. “Tivemos perdas, parentes que faleceram da doença e isso para a gente foi uma tristeza muito grande”, lamenta Rosa Pitaguary.
“Perdemos o senhor Francisco Pitaguary, um ancião de 83 anos, universitário do curso de História, na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Ele tinha uma história, uma vida, que nos movia a buscar nossos objetivos”, lamenta. E completa: “Seu Francisco foi inspiração para mim e para muita gente aqui. Sou estudante de Antropologia, na Unilab, e, por diversas vezes, pensei em desistir, mas quando olhava para ele, me sentia motivada. Deixou um legado de exemplo de vida, de força e de garra”.
Nas comunidades dos Anacé, foram registrados cerca de 40 casos e uma morte. Já os povos Tremembé contaram com a dádiva da recuperação de todos as pessoas que confirmaram positivo para a doença.
De Acordo com o Cacique Climério Anacé, seu povo conta com o maior número de idosos e crianças na população. “Isso reflete o cuidado que temos com os anciões que são a chave e quem repassa nossa cultura desde sempre, são quem preserva e mantém vivo nossos contos e espiritualidade. Com uma grande população de crianças, fazemos a proximidade dos ciclos”.
Nas comunidades dos povos Tabajara, os idosos seguem cumprindo rigorosamente o isolamento social. “Vejo como essenciais para essa luta dois fatores: acreditar na espiritualidade e respeitar as pessoas idosas”, ressalta Renan Tabajara.
“A luta indígena é por sobrevivência mundial, pois defendemos o meio ambiente, defendemos a redução dos gases pesados que aumentam o aquecimento global. É uma causa que defende a preservação das nascentes, rios e mares como fonte finita de vida, pois, se não cuidarmos logo, não teremos mais. Defendemos a equidade da sociedade e o respeito a todas as pessoas, defendemos que não é justo que no Brasil tenha mais boi que gente. Defender a luta indígena é defender a humanidade que ainda resta no mundo. É proteger a fauna e a flora, é defender tudo que tem vida, inclusive os que não estão mais em terra, preservando suas memórias”, enfatiza o Cacique Climério Anacé.
Para Samuel Nascimento, uma das lições que seu povo teve durante este período, “é que precisamos cuidar cada vez mais do território, porque, apesar de toda dificuldade, tivemos condições de tirar o nosso alimento da terra. De alguma forma, conseguimos sobreviver. É nessas horas que vemos a importância de preservar a natureza e a nossa mãe terra para que a gente tenha cada vez mais essa valorização”.
Segundo ele, a pandemia trouxe uma reflexão muito ampla para as pessoas em geral, de que devemos respeitar o outro, a natureza, o mar, a terra e os nossos ancestrais. “Nós, enquanto população indígena, sofremos por várias chagas sociais, como o preconceito, a discriminação, o retrocesso e a retirada dos nossos direitos e já é hora disso mudar. Esperamos por dias melhores”, finaliza.
A Eco Nordeste produziu este material em homenagem a cada vida indígena que padeceu em decorrência da Covid-19. Prestamos nossa solidariedade a todas as famílias indígenas brasileiras e reiteramos a máxima de que cada vida indígena importa. Todas as imagens (fotos e vídeos) foram produzidas por Luan de Castro Tremembé, membro da Rede de Comunicadores Indígenas- Juventude Indígena Conectada, uma forma de valorização da cultura local e de preservação das aldeias da presença de estranhos em meio à pandemia.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.