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Crédito: Eduarda Burguez/SMOI/PMPA
Na audiência pública realizada quarta-feira para discutir o projeto de 108 relógios digitais, com câmeras de segurança, a Prefeitura do Recife jogou o debate sobre o reconhecimento facial para o futuro. O encontro, virtual, começou com uma apresentação do projeto feita por Raul Bezerra, gerente geral de Concessões e Parcerias Público-Privadas. De pronto, ele afirmou que a discussão sobre a privacidade e os vieses da tecnologia “fogem do escopo” do projeto, mas que esse debate será realizado – sem citar data. Também afirmou que o “o setor privado não terá acesso às imagens”, ainda que isso não fique claro no projeto. “Vai direto para a prefeitura, que vai decidir como usar essas imagens”, acrescentou.
O projeto da Prefeitura do Recife deve ter edital aberto para licitação no começo do próximo ano. A empresa vencedora terá o direito exclusivo de exploração publicitária por 20 anos. O pagamento mínimo ao governo municipal é de R$ 2 milhões e a estimativa é de que, ao longo das duas décadas, o investimento para a cidade seja de quase R$ 90 milhões. A empresa vencedora terá que, além de fornecer o mobiliário urbanístico, cuidar das praças e canteiros onde eles serão instalados.
O projeto prevê que os 108 relógios sejam equipados com câmeras de segurança com zoom óptico de 20x, movimento 360° contínuo e a polêmica tecnologia do reconhecimento facial. O secretário executivo de Parcerias Estratégicas, Thiago Barros Ribeiro, não soube justificar porquê incluir isso no projeto, além de dizer que se tratava de “equipar a cidade do mais moderno aparato tecnológico possível”, que a prefeitura tinha ciência das controvérsias e que seria usada da forma mais benéfica possível – sem os malefícios.
Quatro cidadãos falaram na reunião. E todos, por motivos variados, contra a tecnologia. A advogada Raquel Saraiva, especializada em tecnologia e uma das fundadoras da IP.Rec, entidade civil de governança na internet, lembrou que o reconhecimento facial é uma tecnologia de vigilância em massa. E que não há “melhores práticas” para tal cerceamento da liberdade. “O que temos visto em termos de melhores práticas é o abandono do reconhecimento facial. Empresas como IBM, Microsoft e Amazon já se recusam a vender essa tecnologia porque reconhecem que existe um problema. É preciso que as diretrizes de privacidade que vão guiar esse projeto, de como será o tratamento de dados, venha desde o começo da concepção do projeto. A hora de debater isso é na concepção do projeto e não mais pra frente. A prefeitura deveria dizer não à vigilância em massa”, disse.
Outro ponto levantado por Raquel é o de que esse tipo de tecnologia é inibitória do comportamento humano, podendo limitar a liberdade de expressão das pessoas, causando danos aos direitos humanos. Um exemplo? As câmera com essa tecnologia podem mapear e identificar pessoas que estão participando de manifestações, o que pode constranger o público a protestar.
Também do IP.Rec, o cientista da computação André Ramiro lembrou que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) estabelece que as diretrizes de privacidade devem ser estabelecidas na concepção do projeto. “Na documentação da prefeitura não há qualquer expressão da base legal do que seria utilizado”, afirmou, na audiência.
Em entrevista à Marco Zero, concedida pouco depois da audiência, Ramiro enfatizou o viés de racismo que a tecnologia de reconhecimento facial carrega. “Essa tecnologia prevê um treinamento prévio de pontos da face humana a fim de gerar a identificação. Como o treinamento desses algoritmos é feito com grande maioria de rostos de pessoas brancas e ocidentais, gera um grande número de falso positivo em pessoas negras, trans e não-binárias”, afirma.
Na prática, isso significa que pessoas trans ou não-binárias e pessoas negras ou orientais, especialmente as mulheres, têm um menor grau de identificação do que homens brancos. Se uma mulher negra, por exemplo, tem um mandado de prisão em aberto, as chances de uma outra mulher negra ser identificada como a foragida é bem maior do que um homem branco ser falsamente identificado como outro homem branco foragido. Isso significa mais pessoas negras sendo abordadas e detidas injustamente.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados, Informática e Tecnologia da Informação do Estado de Pernambuco (SINDPD-PE), Reinaldo Melo Soares, apoiou a carta aberta assinada por mais de 25 entidades contra o projeto recifense. Também lembrou que a LGPD exige que a discussão sobre a privacidade deve ser agora, e não depois. “Isso de ser tratado em um momento futuro não atende a lei. A captação dessas imagens será feita ao longo de 20 anos e isso é preocupante. Temos visto empresas públicas que estão para ser vendidas para o setor privado e o risco para esses dados é grande. Não sabemos como esses dados podem ser monetizados ao longo desses anos de contrato”, afirmou.
Um outro aspecto à discussão veio do representante da empresa de mobiliário urbano Shempo, Murilo Trindade Costa. Ele ponderou que, já que a a tecnologia de reconhecimento facial não é o cerne do projeto, deveria ser retirada do futuro edital. “O equipamento muda completamente a estrutura de custos do projeto”, afirmou, lembrando que outros itens dos relógios já exigem que a empresa vencedora possua uma central de controle para oferecer as informações em tempo real sobre a qualidade do ar, o tráfego na região, entre outras.
A prefeitura não respondeu à Marco Zero sobre qual seria o custo para a implantação da tecnologia de reconhecimento facial. Ao final da audiência, o secretário-executivo Thiago Barros Ribeiro chegou a se mostrar incomodado que os questionamentos focassem apenas na polêmica sobre a tecnologia do reconhecimento facial. Disse que não era atribuição da secretaria de Desenvolvimento Econômico lidar ou estabelecer com a política de tratamento de dados. Ainda assim, voltou a afirmar “que não haverá nenhum tipo de invasão ao seio privativo do cidadão”.
O secretário de Desenvolvimento Econômico, Ciência Tecnologia e Inovação da Cidade do Recife,Rafael Dubeux, participou da audiência, mas só falou ao final. Ele enfatizou que a consulta e audiência pública não são obrigações da prefeitura para este tipo de projeto. E que a discussão sobre reconhecimento facial “não diz respeito ao edital”.
Após a audiência da quarta-feira, a Marco Zero encaminhou para a assessoria de comunicação da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação as perguntas abaixo, mas não obteve nenhuma resposta até a tarde desta sexta-feira.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org