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Foto: Beto Figuerôa
Nos nove primeiros meses deste ano, mais de R$ 30 milhões foram gastos pela Prefeitura do Recife em uma ação descrita no Portal da Transparência como “Outras medidas”, dentro dos recursos de Publicidade. Sob o item “Ação não informada” a gestão Geraldo Julio (PSB) executou outros R$ 6 milhões. Audiência pública, realizada na Câmara dos Vereadores do Recife, na última quarta-feira (19), perguntava “Para onde vai nosso dinheiro?” e teve o silêncio como resposta. Questionamentos previamente enviados pelo mandato do vereador Ivan Moraes (Psol), que convocou a audiência, sequer foram respondidos pela Prefeitura do Recife, que também não enviou representante. O vereador e organizações da sociedade civil presentes vão subscrever uma representação ao Ministério Público de Pernambuco pela ausência, que descumpriria a Lei Orgânica do Recife.
Um estudo do mandato feito pelo gabinete do vereador via Portal da Transparência identificou um aumento de sete vezes na previsão de gastos com publicidade para este ano: o orçamento original de R$ 10,9 milhões pulou para R$ 74,3 milhões, por meio de uma sucessão de decretos. Um crescimento da ordem de R$ 63,2 milhões. Esse número diz respeito à previsão de gastos, não necessariamente ao que já foi pago pelo Poder Público.
A atual gestão já gastou em 2018 mais do que a média dos últimos anos. Até setembro de 2018, um total de R$ 42,2 milhões já foram executados. Na divisão desse bolo, os únicos gastos descriminados são os com campanhas publicitárias, propaganda de utilidade pública, educativa e institucional (de acordo com o Portal da Transparência, no valor de R$ 4,2 milhões) e com “Promoção e Articulação do Governo Municipal com os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo (R$ 1,3 milhão).
O levantamento do histórico de gastos executados com publicidade nos últimos anos da gestão de Geraldo Julio apresentado na audiência reforça a tendência ao gasto recorde nos últimos cinco anos.
“Nos preocupa que haja mais de R$ 40 milhões do bolso do cidadão que a gente não sabe para onde foi. Nós precisamos saber como é feito esse planejamento e acontece um aumento de mais de sete vezes.”, argumentou o vereador. Segundo Ivan Moraes, a Prefeitura descumpre a Lei Federal 12.232, que obriga todas as gestões públicas a pôr na transparência ativa todo gasto com propaganda.
O artigo 16 da Lei citada pelo vereador, determina que “As informações sobre a execução do contrato, com os nomes dos fornecedores de serviços especializados e veículos, serão divulgadas em sítio próprio aberto para o contrato na rede mundial de computadores, garantido o livre acesso às informações por quaisquer interessados. Parágrafo único. As informações sobre valores pagos serão divulgadas pelos totais de cada tipo de serviço de fornecedores e de cada meio de divulgação”.
Procurada pela reportagem, a assessoria de comunicação da Prefeitura do Recife não comentou as questões levantadas pelo vereador.
Não bastasse o mistério de como foram gastos certa de R$ 36 milhões da comunicação do governo, a audiência pública foi palco de denúncias de descumprimento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, no que diz respeito à adequação de peças de comunicação a normas de acessibilidade comunicacional – destinadas à população que precisa de audiodescrição, intérprete de Libras e legenda para surdos e ensurdecidos.
Para o consultor em acessibilidade comunicacional Roberto Cabral, um dos convidados para a audiência na Câmara do Recife, falta vontade política para incluir a população que necessita de tecnologias de acessibilidade comunicacional. “Somos colocados como subcidadãos. O que falta para proporcionar dignidade para pessoas que pagam tributos como todas as outras?”, questiona. Para ele, se a população em geral tem um déficit de informação e acesso a políticas de comunicação, as pessoas com necessidades especiais sofrem mais ainda. No Recife, de acordo com dados apresentados por Cabral, mais de 300 mil pessoas têm algum tipo de deficiência. Cerca de 28,05% precisam de acessibilidade comunicacional.
É possível encontrar no Diário Oficial a origem de parte dos recursos transferidos para o orçamento de comunicação. Para aumentar os recursos, a Prefeitura transferiu R$ 50 milhões do orçamento destinado a “crédito de obras e instalações de Urbanização de áreas de Risco, por meio dos decretos nº 31.345, de 16 de abril de 2018, e nº 31.394, de 27 de abril de 2018”. Os dados foram levantados no estudo realizado pelo gabinete do vereador psolista.
O aumento dos recursos destinados à publicidade em mais de sete vezes foi realizado dentro das normas legais, por meio de decreto. No entanto, a população questiona a moralidade da ação.
Karla da Costa, 23 anos, moradora da comunidade do Bode, na Zona Sul do Recife, foi uma das que questionou a destinação de recursos sem qualquer justificativa. Segundo ela, no dia a dia do local em que vive ouve da mesma Prefeitura que não há recursos para melhoria dos serviços na comunidade, a exemplo de creches. “Eu vi uma publicidade da Prefeitura que mostra uma criança dizendo que depois que entrou no Compaz ele virou cidadão. Pra mim qualquer pessoa que nasce já é cidadão. Nossas crianças que não passam por um Compaz não são cidadãs?”, perguntou indignada.
Carol Vergolino, integrante do movimento por mais mulheres na política partidA e candidata a deputada estadual da Juntas, pelo Psol, questionou possível uso dos recursos para beneficiar indiretamente a campanha a reeleição do governador Paulo Câmara (PSB), do mesmo partido e grupo do prefeito do Recife, ambos escolhidos pelo ex-governador Eduardo Campos. “Basta ver e somar dois mais dois. Esse ano a prefeitura esta fazendo propaganda para a prefeitura e para governo do estado. A gente tem que entender isso e colocar isso. Não podemos aceitar nada disso que está acontecendo. O que a gente pode fazer é se reunir e lutar para fazer barulho”, defendeu.
Parte dos recursos executados com Comunicação deveria ser destinado à Rádio Frei Caneca, mas não há menção ao veículo nos gastos disponibilizados pelo portal. A rádio pública, atualmente vinculada à Fundação de Cultura do Recife, precisou de mais de 50 anos para ir ao ar – uma das reivindicações históricas do movimento pela democratização da comunicação no Estado. Rosa Sampaio, jornalista e integrante do Fopecom (Fórum Pernambucano de Comunicação) lembrou que a rádio só foi ao ar a partir de pressão da sociedade civil, e que agora tem informações a conta gotas sobre como o veículo está sendo conduzido. Para ela, o modo genérico como os gastos são expostos no Portal dificultam o acesso à informação que precisaria estar clara para a população.
A jornalista defendeu que parte dos recursos utilizados de forma indiscriminada poderia fomentar a formação em comunicação nos territórios como parte de uma política pública de comunicação. Segundo ela, a gestão do PSB tem dívidas com propostas que não andaram, como o Compaz. “Os Compaz não são suficientes, mas poderiam cumprir papel de formar comunicadores comunitários, populares. Estamos aguardando até hoje um plano de formação. Isso representa a falta de pensamento da comunicação como direito humano, como vetor para integração de direitos, de educação. O vazio dessas cadeiras (referindo-se à ausência de representantes da Prefeitura do Recife na audiência pública) é um desrespeito com o povo do Recife, e não só com os movimentos sociais, mas também com quem está lá fora escutando a rádio”, criticou. Camerino Neto, gerente da Rádio Frei Caneca, que representaria Diego Rocha, presidente da Fundação de Cultura do Recife, também não compareceu à audiência.
Wagner Souto, da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias em Pernambuco, que representa quase 400 veículos com outorga em Pernambuco, defendeu que parte dos recursos públicos sejam investidos também na comunicação alternativa, comunitária – além da mídia privada. “A verdade é que isso é uma caixa preta. As questões de licitação, tudo bem, mas na hora de dividir esse bolo esses recursos não chegam nas rádios comunitárias, na comunicação alternativa. E a gente sabe a farra que existe de gastar dinheiro público com mídia”.
De acordo com ele, na atual gestão da Abraço não há projetos ou convênios com o município do Recife, apesar de terem iniciado um diálogo. “A gente quer que haja investimento na mídia alternativa em si. A gente tem batalhado muito no Congresso Nacional não só sobre transparência, mas sobre mais espaço para mídia alternativa. Para manter uma rádio atualmente é muito mais difícil do que ter uma rádio sem outorga”, analisou o radialista. Para montar rádio comunitária é preciso investir cerca de R$ 10 mil, informou Wagner.
Outra questão levantada pelo vereador é a barreira para conhecer o destino final dos gastos com comunicação – incluindo publicidade, propaganda e campanhas educativas. Atualmente, não é possível identificar como foram aplicados os recursos nas caixinhas que aparecem no Portal da Transparência. Para os curiosos, a única forma de saber que empresa recebeu dinheiro público é identificando o CNPJ e, a partir dele, buscar todos os empenhos por parte da Prefeitura.
Para o cidadão comum, um caminho com mais obstáculos. Na prática, boa parte das pessoas desiste no processo. Assim, sequer sabemos que empresa, produtora de vídeo ou veículo de comunicação recebeu para publicar peças de comunicação pagas com dinheiro público. “A Prefeitura do Recife se gaba de ter o melhor ou um dos melhores portais da transparência do Brasil, mas eu discordo. Precisamos saber como foi gasto esse dinheiro, quem são os destinatários finais desse dinheiro. Eu quero saber como foi feito, como foi gasto cada parte do dinheiro”, criticou o vereador Ivan Moraes.
As perguntas sem respostas:
1. Como foi realizada a execução do montante destinado na rubrica Coordenação, Supervisão e Execução das Políticas de Comunicação e Relações Institucionais? Quem são os destinatários finais dos recursos (agências, produtoras, veículos de mídia)?
2. Dos R$ 74.140.000,00 atualmente previstos para esta rubrica, quase 40 milhões já foram executados até agora. Qual é a previsão de alocação do restante desses recursos até o final do ano?
3. Foram liquidados R$ 27.247.861,01 sob o título ‘outras medidas’. Que ‘outras medidas’ são essas e qual foi o destino final desses recursos?
4. Também foram liquidados R$ 5.232.487,39 sob o título ‘ação não informada’. Que ações são essas e qual foi o destino final desses recursos?
5. Por que a rubrica de Publicidade iniciou o ano com pouco mais de R$ 10 milhões e hoje ultrapassa os 70 milhões? Como a prefeitura explica essa diferença entre o planejado e o executado?
6. Durante o ano de 2018, quanto no total foi investido na estruturação (investimento e custeio) da rádio frei caneca FM?
Em reposta à críticas de opositores, Moraes reafirmou que não defende que acabe o dinheiro para comunicação “mas queremos que tenha dinheiro pra política pública de comunicação, a gente não quer que seja gasto só com propaganda do prefeito”, disparou.
Com duas horas de atraso, um ofício da Prefeitura do Recife com data do mesmo dia da audiência chegou à Câmara. O documento informava a ausência do secretário de Governo e Participação Social Sileno Guedes, assim como a justificativa para a ausência da diretora Executiva, de licença médica, e propunha o adiamento da audiência pública para o dia 9 de outubro, dois dias após o primeiro turno das eleições.
Para a realização de uma audiência é preciso aprovação pelo coletivo de vereadores e no mínimo 15 dias de antecedência. Para Ivan, não há justificativa plausível para a falta de respostas e a ausência que, segundo ele, fere a Lei Orgânica da Cidade do Recife, “que obrigada a prefeitura a comparecer quando convocada”, disse. “A Prefeitura não pauta essa casa. Quando um secretário falta duas reuniões o nome disso é improbidade administrativa. E a gente vai cobrar”, garantiu o vereador, engrossando o tom.
Ainda assim, foi acatado pelas organizações e movimentos presentes a realização de nova audiência no dia sugerido pelo secretário, na ofício encaminhado com duas horas de atraso.
O vereador Ivan Moraes vai encaminhar um requerimento para que todas as peças de publicidade da Prefeitura cumpram as normas de acessibilidade comunicacional, outro tema que foi debatido na audiência.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.