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Projeto de Lei quer que condenados paguem pela própria tornozeleira eletrônica

Raíssa Ebrahim / 10/11/2019

Num estado onde 80% da população carcerária é preta ou parda, um Projeto de Lei (PL) conjunto (439/2019) está tramitando na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) para que pessoas condenadas passem a pagar pela própria tornozeleira eletrônica. O preso ou apenado terá que ressarcir os cofres estaduais pelo aluguel do equipamento. Dois deputados – Gustavo Gouveia (DEM) e o Delegado Erick Lessa (PP) – fizeram propostas semelhantes  e, por isso, seguindo o regimento interno da casa, os PLs passaram a tramitar de forma conjunta num só texto, em forma de substitutivo. Projeto semelhante vem tramitando também no Senado (saiba mais abaixo).

De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a tornozeleira é a principal forma de monitoramento remoto usada no Brasil. A despesa média mensal por pessoa monitorada oscile entre R$ 167 e R$ 660, a depender do contrato e do fornecedor. A Marco Zero Conteúdo solicitou à Secretaria Executiva de Ressocialização de Pernambuco dados sobre os custos do equipamento e quantas pessoas usam e quantas teriam direito de usar, mas não receberam o dispositivo. A pasta, no entanto, não respondeu.

O PL prevê que o Estado providenciará, no prazo de 24 horas, a instalação do equipamento de monitoramento após o recolhimento do valor fixado. Em caso de dano ou avaria, o preso ou apenado também será responsável por ressarcir o governo estadual. Quem não tiver condições financeiras de arcar com a cobrança poderá ficar isento, desde que comprove sua inviabilidade e também a da família. Outra possibilidade prevista no projeto é que as pessoas encarceradas paguem pela tornozeleira com trabalho, mediante regulamentação estadual. Quem não pagar fica passível de ter o nome negativado e a dívida, cobrada na Justiça.

O projeto, segundo análise de representantes de movimentos sociais e coletivos que atuam pelo desencarceramento, pode terminar acentuando ainda mais as desigualdades econômicas e raciais dentro e fora do sistema prisional, uma vez que a liberdade, estabelecida judicialmente, fica condicionada a um fator econômico, criando a possibilidade de a pessoa sair das grades, mas ficar presa às dívidas.

Além disso, como chamam a atenção os integrantes das entidades, o PL coloca em xeque a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que permite mulheres gestantes, lactantes e com filhos até 12 anos incompletos terem a prisão preventiva convertida em prisão domiciliar. O direito está previsto no chamado Marco da Primeira Infância. O monitoramento eletrônico é justamente o que possibilita que essas mulheres possam ir para casa. A cobrança aumentaria a probabilidade de se criar uma seletividade para a concessão desse direito, já que o perfil da maioria do sistema prisional feminino em Pernambuco é de mulheres pobres, negras e que vivem precariamente.

Na visão de Cláudio Ferreira, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PE), o Brasil precisa encontrar formas de minorar o exercício da pena através da reintegração dos presos à sociedade. “Há formas mais criativas do que simplesmente vincular a evolução de uma pena à capacidade de pagamento, porque aí se criam duas categorias de presos, uma que pode pagar e a outra que não pode. E ninguém é mais ou menos culpado por ter ou não ter dinheiro. Isso fere os direitos humanos”, afirma.

Na avaliação de Cláudio, apesar disso, não há inconstitucionalidade na proposta. Ele aponta para o fato da matéria criar uma obrigação de ressarcimento, não havendo impacto em relação à progressão ou fixação dos regimes de cumprimento da pena. O presidente explica que a proposta se insere em matéria de competência concorrente entre estados e União.

Em nota, o Liberta Elas, coletivo antipunitivista e abolicionista penal, entende que “o PL possui um viés político fundamentado na lógica racista e punitivista do estado brasileiro, priorizando interesses de empresas capitalistas e multinacionais. O PL desconsidera a vida de mulheres e homens que estão no cárcere, assim como de suas famílias, precarizando ainda mais suas condições de sobrevivência. O PL revela o populismo penal tão presente no contexto político atual em que se busca lucrar com a indústria do encarceramento em massa que atinge a população jovem e negra de nosso país. Com o aluguel das tornozeleiras eletrônicas, poucos irão lucrar e muitos sofrerão. Haverá ainda mais a desumanização da população carcerária”.

O projeto já foi aprovado pela Comissão de Constituição, Legislação e Justiça (CCLJ) Votaram a favor Alberto Feitosa (PP), Romário Dias (PSD), Joaquim Lira (PSD), Diogo Moraes (PSB), Priscila Krause (DEM) – relatora -, Antônio Moraes (PP) e Romero Sales Filho (PTB).

Por conta das controvérsias e da continuidade dos embates diante da proposta, a CCLJ marcou uma audiência pública para debater o assunto nesta segunda-feira (11), às 10h, na Alepe. O texto, que pode ou não receber novos substitutivos, precisa passar ainda pelas comissões temáticas. Depois disso, segue para votação em plenária e, caso aprovado, para sanção do governador Paulo Câmara (PSB).

“Temos fatores de sobra para sermos contra o PL. Acreditamos que ele é o pontapé inicial para a privatização das prisões dentro de um projeto neoliberal de redução do Estado”, avalia Robeyoncé Lima, advogada e co-deputada das Juntas (Psol), que presidem a Comissão de Cidadania, Direitos Humanos e Participação Popular da Alepe. “O projeto é uma acentuação das desigualdades, inclusive dentro do próprio sistema prisional. Isso sem falar da perda do direito à prisão domiciliar. Podemos até dizer que as pessoas estão sendo julgadas duas vezes, uma pelo poder judiciário e a outra pelo capital”, complementa.

O mandato coletivo, apesar da aprovação na CCLJ, defende que o PL das tornozeleiras é inconstitucional, uma vez que o sistema de monitoramento eletrônico é objeto de regulação do Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal e, portanto, de competência da União, e não dos estados.

Um projeto semelhante, o (PLS 310/2016), de autoria do senador Paulo Bauer (PSDB-SC), está tramitando no Senado e teve aprovação, por unanimidade, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em setembro. Caso não haja recurso para votação em plenário, o projeto segue para a Câmara dos Deputados. A relatora, Simone Tebet (PMDB-MS), apresentou parecer favorável, com duas emendas. Uma estabelece punições para o preso que não pagar pelo equipamento, que podem ir de advertência à volta para o regime fechado. E a outra permite que o estado custeie a tornozeleira do condenado que comprovar não ter condições financeiras.

“Sabemos quão caro custa o sistema penitenciário no Brasil. Nada mais justo que os presos que não são de alta periculosidade possam aguardar a sentença dentro de seus domicílios. Só não o fazem porque os estados não têm condições de arcar com esse custo. Com esse projeto singelo temos duplo alcance, econômico e social. O preso vai pagar R$ 350, R$ 400 por mês, garantindo economia aos cofres públicos, diminuindo a superlotação nos presídios e impedindo que se aliciem os presos de menor periculosidade”, declarou Simone em setembro.

A reportagem solicitou entrevista com os deputados autores das propostas, mas não conseguiu falar com nenhum dos dois parlamentares. Gustavo Gouveia estava sem agenda na sexta (8) e a assessoria de imprensa do Delegado Erick Lessa não retornou.

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Principais problemas do PL das tornozeleiras

Um grupo de mais de 200 coletivos, movimentos sociais e pessoas físicas assinam uma nota técnica contra o PL das tornozeleiras. Confira o resumo dos principais pontos do texto:

  1. O PL nada mais é do que uma nova seleção econômica e racial das pessoas. Por exemplo, para ter acesso à prisão domiciliar, as pessoas passarão não só pelo crivo do Poder Judiciário, mas também ficarão à mercê do capital.
  2. A cobrança acentuaria ainda mais as desigualdades sociais e econômicas, além de contribuir com a manutenção do racismo e do ciclo de pobreza que existem em todos os âmbitos da sociedade brasileira, inclusive no sistema carcerário.
  3. Aprovar o PL implica numa responsabilização também das famílias das pessoas encarceradas, uma vez que, na ausência de possibilidade de trabalho dentro do cárcere, são elas que terão que arcar com esses custos.
  4. A imposição de prévio pagamento para cessão do equipamento restringe de forma ilegal a liberdade sem qualquer respaldo constitucional, uma vez que a restrição da liberdade deve ser precedida de ordem judicial.
  5. O monitoramento eletrônico só interessa ao próprio poder público. Considerando que frequentemente é imposto como medida para desafogar as prisões, de péssimas condições (Pernambuco é o estado com maior déficit de vagas, segundo o Conselho Nacional de Justiça), já representa uma verdadeira economia para cofres públicos.
  6. O PL coloca como possibilidade o ressarcimento dos custos da tornozeleira mediante trabalho, sendo que a parcela das pessoas encarceradas que trabalham é muito baixa, assim como os salários (confira dados abaixo)

Perfil da população carcerária

  • 42% das presas e dos presos no Brasil são provisórias e provisórios
  • 62% têm até 29 anos
  • 78% possuem ensino médio incompleto
  • 7% exercem atividade laboral
  • 17% da população carcerária trabalham, dos 47% não são remunerados e 23% ganham apenas ¾ de um salário-mínimo

 

Tipos de crimes

  • Homens: roubo (32%), tráfico de drogas (29%), furto (14%) e homicídios (12%)
  • Mulheres: tráfico de drogas (65%), roubo (16%), homicídio (8%) e furto (5%)

 

Pernambuco

  • 6ª maior população carcerária do Brasil (sem contar com as pessoas presas em delegacias)
  • 80% de sua população carcerária é preta ou parda
  • 7% da população carcerária trabalha

 

(Dados do Infopen 2017)

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com