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por Tereza Amorim*
“Não é um abandono do país, não é desistir da minha luta. Muito pelo contrário: é resistir.“ A frase, pronunciada recentemente pela deputada federal Carla Zambelli (PL-SP), poderia ter saído da boca de dezenas de políticos brasileiros – ou latino-americanos – que, acuados por decisões judiciais, decidiram sair de cena. Não para enfrentar a Justiça, mas para, de longe, narrar sua própria versão dos fatos: a de que não fogem, resistem.
Zambelli anunciou que deixou o Brasil “já faz alguns dias”, buscando, segundo ela, tratamento médico, mas, agora, pedirá afastamento do cargo. Em nota, atacou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou sua prisão preventiva, classificando-a como “ilegal, inconstitucional e autoritária”. Para a deputada, sua imunidade parlamentar foi “rasgada” e a democracia, “violentada”.
O script é velho e conhecido. Quando o poder já não protege, quando o foro privilegiado não basta, quando a Justiça bate à porta, resta recorrer àquilo que decidi chamar de “Asilo Político Contemporâneo”: fugir do país sob o manto de uma resistência que, na prática, é puro instinto de autopreservação.
Do ponto de vista neurocognitivo, não é difícil explicar o fenômeno. Quando confrontada com uma realidade que ameaça sua identidade – no caso, a de parlamentar forte e combativa – a pessoa tende a ajustar a narrativa para reduzir a dissonância cognitiva. Assim, a fuga não é uma demonstração de medo, mas um ato de coragem; não é capitulação, mas resistência.
Já pela ótica da neuropolítica, o discurso busca mobilizar emoções básicas: medo, raiva, pertencimento. O político acusado se apresenta como vítima de uma estrutura injusta, o que facilita manter sua base de apoio ativa e indignada. Não por acaso, Zambelli falou em “ditadura” que impõe “amarras” e a impede de “falar o que quer”.
Carla Zambelli não está sozinha nessa tradição. Henrique Pizzolato, condenado no Mensalão, fugiu para a Itália em 2013, alegando perseguição política e injustiça processual. Salvatore Cacciola, banqueiro envolvido em fraudes financeiras, também buscou refúgio na Itália no início dos anos 2000, apresentando-se como vítima de um complô judicial.
Até figuras que ajudaram a instaurar regimes autoritários acabaram recorrendo à fuga. Carlos Lacerda, ex-governador da Guanabara e um dos arquitetos do golpe de 1964, depois de romper com os militares, acabou cassado e, por um breve período, procurou refúgio no exterior. O ciclo irônico se repetia: quem clamava por ordem e força, depois clamava por proteção.
Na América Latina, o caso mais emblemático talvez seja o de Alberto Fujimori, ex-presidente do Peru. Fugiu para o Japão em 2000, enviou sua renúncia por fax e, de longe, tentou sustentar a narrativa de que era vítima, e não algoz. Mais recentemente, Jeanine Áñez, ex-presidente interina da Bolívia, acusada de conspiração, não conseguiu concretizar sua fuga, mas o discurso de perseguição foi o mesmo.
E ainda Rafael Correa, ex-presidente do Equador, hoje exilado na Bélgica, também sob o argumento de perseguição política, embora condenado por corrupção.
Em todos esses casos, o enredo se repete: políticos acuados pela Justiça transformam uma saída estratégica em um gesto heroico. Apontam o dedo para o sistema, acusam-no de autoritário e posam como vítimas. A fórmula funciona porque explora emoções básicas, reforçadas pelas redes sociais e pelo ativismo digital.
No caso brasileiro, a ironia é ainda mais saborosa – ou trágica, dependendo do ponto de vista. Muitos dos que hoje clamam contra a “ditadura do Judiciário” foram, até ontem, defensores de ações punitivistas, aplausos ao STF e à Lava Jato. Quando a roda girou, bastou ajustar a narrativa.
No fundo, a pergunta que resta é simples: Zambelli resistiu ou escapou? A resposta, talvez, esteja na prática e não na retórica. Quem resiste, enfrenta; quem escapa, justifica. Transformar a fuga em resistência é um movimento clássico, tão clássico quanto previsível.
O Brasil já viu essa peça muitas vezes. E, provavelmente, verá de novo. Porque, ao fim e ao cabo, a memória política é curta, mas os roteiros da autopreservação são longos, cínicos e, frequentemente, muito bem ensaiados.
*Tereza Amorim é jornalista e analista de discurso político, com especialização em neurociência cognitiva e neuropolítica.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.