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Quem manda nas avenidas do Recife?

Inácio França / 11/05/2018

Campanha publicitária do Sindicato das Empresas de Transporte Público de Pernambuco (Urbana-PE)

A Fratar Engenharia Consultiva, empresa mineira de consultoria que está elaborando o projeto técnico da avenida Conde da Boa Vista, não tem qualquer tipo de contrato com a Prefeitura do Recife. Ela sequer foi licitada para isso.

Quem está pagando a conta é o Sindicato das Empresas de Transporte Público de Pernambuco (Urbana-PE), ou seja, a entidade que representa 13 empresas beneficiárias de concessões do poder público para operar o transporte de passageiros na Região Metropolitana do Recife está financiando projetos urbanísticos nos quais têm interesse direto.

E isso está acontecendo sem transparência, provavelmente de maneira irregular. Não há, nas páginas do Diário Oficial do Recife, qualquer indício de processo legal que autorize a prefeitura do Recife a receber a “doação” das empresas de ônibus.

Depois de nove dias de inúteis tentativas de entender o processo de contratação da Fratar junto aos gestores da prefeitura, a própria Urbana-PE confirmou que a empresa de Belo Horizonte é sua contratada. A confirmação veio por e-mail de sua assessoria de Imprensa às 14h02min desta sexta-feira, 11 de maio:

A Urbana-PE tem buscado soluções para elevar a qualidade do serviço de transporte público na Região Metropolitana do Recife. O setor não apenas defende a implantação de corredores e faixas exclusivas para o transporte público, como tem contribuído com projetos e pesquisas. Como exemplo, em 2009 o sindicato trouxe o conceito de BRT com a contratação do escritório do urbanista Jaime Lerner para concepção do corredor Norte-Sul. Desde então, tem contribuído com estudos para priorização do transporte público e redução do tempo de deslocamento dos passageiros. Nesse sentido, a empresa Fratar Engenharia Consultiva foi contratada para elaborar um estudo para um programa de redução do tempo de viagem do transporte coletivo na Região Metropolitana do Recife envolvendo alguns dos principais corredores viários, dentre eles a Av. Cruz Cabugá, Av. Agamenon Magalhães, Av. Conde da Boa Vista, Av. Abdias de Carvalho, Av. José Rufino e Av. Presidente Kennedy.

A nota da Urbana se refere a “estudos para priorização do transporte público e redução do tempo de deslocamento dos passageiros”. Não há menção sobre o fato do sócio-diretor da Fratar, o engenheiro mineiro Eduardo Cândido Coelho, participar de reuniões se apresentando como “consultor da prefeitura” e a empresa ssumir os projetos técnicos de requalificação das avenidas Agamenon, Cruz Cabugá e Conde da Boa Vista assinados por Coelho.

O ignorado Plano Diretor Cicloviário

Os nomes da Fratar e de Coelho surgiram logo no início da apuração da reportagem sobre a ausência de debates em torno da revitalização da Conde da Boa Vista. Os técnicos ouvidos pela Marco Zero contaram, sem embaraços ou constrangimentos, que ele era o autor do projeto e acompanha Maria Eduarda Campos nas reuniões técnicas internas.

Os integrantes da Associação Metropolitana de Ciclistas do Grande Recife (Ameciclo) contaram que, em muitas das reuniões sobre as mudanças na Agamenon, era ele quem representava a prefeitura. Partiu também da Ameciclo a informação de que o mesmo Eduardo Coelho, à época diretor da empresa Tectran, havia sido o responsável técnico do Plano Diretor Cicloviário.

Nos últimos meses do governo Eduardo Campos, a Tecran foi licitada e contratada pela secretaria estadual das Cidades que pagou R$ 632 mil pelos serviços de maneira legal e completamente regular.

O processo de elaboração do Plano teve ampla participação da sociedade e se tornou uma referência para ciclistas e urbanistas. Todavia, não saiu do papel.

O fato do mesmo profissional ser o responsável técnico pelo Plano Cicloviário de 2014 poderia ser um sinal de que, com a reforma da Conde da Boa Vista, ao menos um item indicado na página 206 seria transformado em realidade: a ciclovia de 2,8 quilômetros que começaria na esquina das avenidas Dantas Barreto e Guararapes, seguindo pela Conde da Boa Vista até encontrar-se com a Agamenon Magalhães.

Estranhamente, não vai haver ciclovia na Conde da Boa Vista. Eduardo Cândido Coelho chegou a conversar com o repórter por telefone e explicou porque ignorou o que assinou três anos antes: “Um plano é apenas um indicativo do que seria a situação ideal, mas quando se desce a nível de elaboração de um projeto específico é preciso conhecer os detalhes da realidade. E o fato é que a avenida possui restrições de espaço. Não há como conciliar pedestres, carros, ônibus, BRT e bicicletas naquele espaço”.

Esta semana, os ciclistas da Ameciclo foram informados que, depois de meses de diálogo com a prefeitura e a Fratar, o Plano Diretor Cicloviário também será letra morta na reforma da Agamenon.

Entre os ativistas da ONG Meu Recife, a informação que a Fratar não era contratada da prefeitura também causou espanto. “O Eduardo sempre se apresenta como consultor independente e dialoga conosco”, contou Camila Fernandes, uma das coordenadoras da entidade. Um vídeo em que o sócio da Fratar faz uma apresentação falando em nome da prefeitura chegou a ser postado na página da ONG: https://www.facebook.com/MeuRecife/videos/1695988450431967/

Transparência zero

Ao constatar que o Plano Diretor Cicloviário havia custado R$ 632 mil, era necessário saber quanto estaria custando o projeto da Conde da Boa Vista. Surpresa: não havia nenhuma referência à Fratar no Diário Oficial do Recife ou no Portal da Transparência da prefeitura. No ‘Tome Conta’, ferramenta de transparência do Tribunal de Contas do Estado, também não consta nenhum contrato da Fratar com entes públicos em Pernambuco.

Como, em tese, existiria a possibilidade da Fratar ou do engenheiro e diretor terem sido terceirizados por alguma outra empresa vencedora da licitação, foram realizadas as buscas pelo processo licitatório. Mais uma vez, nada: a prefeitura não apresentou edital nem abriu qualquer modalidade de concorrência para contratação do projeto técnico da Conde da Boa Vista.

No site da Fratar, Emlurb e Prefeitura do Recife não aparecem em sua lista de clientes. A página, no entanto, fornecia pistas para compreender sua participação no projeto da avenida. A empresa tem quatro clientes em Pernambuco: o Grupo Fernandes Vieira (Hospitais Santa Joana e Memorial São José), Grupo Parvi (concessionárias Toyolex, América Veículos, Pateo Veículos e Fiori Jeep), grupo João Carlos Paes Mendonça e a Urbana-PE.

Aparentemente, os três primeiros não têm qualquer interesse em desembolsar recursos financeiros para definir modelo e parâmetros de intervenção na Conde da Boa Vista. Restou a Urbana-PE, o sindicato das empresas de transporte público, esta sim, diretamente interessada em garantir caminho livre para as centenas de ônibus que fazem mais de 5.800 viagens passando todos os dias pela avenida.

O assunto foi levado ao secretário de Infraestrutura Roberto Gusmão, engenheiro conhecido pela capacidade de realização e sua forma clara de lidar com os temas espinhosos. Apesar de ser o gestor escalado para falar oficialmente sobre o projeto, não soube responder a questão. “Pode ter certeza que todos os documentos serão apresentados no momento certo”, tangenciou o secretário e presidente da Emlurb. Segundo ele, antes do projeto se tornar público, os órgãos da prefeitura envolvidos no tema irão fazer um check-list das pendências, esquecendo que tal forma de proceder não está prevista em lei.

“É a Urbana quem está pagando o projeto?”. Diante dessa pergunta direta, Roberto Gusmão respondeu com sinceridade desconcertante: “Não sei”.

Diante da hipótese da Urbana ser a mecenas do projeto, Gusmão levantou a possibilidade do sindicato estar cumprindo algum acordo de mitigação e compensação por danos ambientais. Realmente, seria possível, desde que a Urbana e a prefeitura tivessem assinado um Termo de Compromisso de Compensação Ambiental devidamente publicado no Diário Oficial.

Mais uma vez, as buscas por um extrato de um termo de compromisso com tal conteúdo não geraram resultado algum.

Braga e o conflito de interesses

Em um segundo telefonema, imediatamente após a publicação da reportagem sobre a Conde da Boa Vista, o engenheiro Eduardo Coelho mostrou-se mais lacônico. O que é compreensível, aliás. Indagado a respeito de onde vinham seus pagamentos, ele recomendou que isso fosse perguntado “ao secretário”. Como Gusmão não tinha a resposta, o jeito era aguardar o secretário municipal de Mobilidade e Controle Urbano, João Braga.

De segunda-feira, 7 de maio, até sexta-feira, 11, Braga permaneceu em silêncio diante dos pedidos de entrevista, necessária para esclarecer essa questão e também explicar se a ausência de debates sobre o futuro da avenida estaria relacionada ao fato da Urbana-PE ser a contratante do projeto. Braga parecia ser a pessoa certa para esclarecer esses aspectos, pois em entrevista sobre a mudança nos tempos dos semáforos, ele citou a Fratar como a consultoria que elaborou a proposta. Em fevereiro, Braga e Coelho apresentaram juntos o projeto da Conde da Boa Vista na sede da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL).

No entanto, a confirmação de que a Fratar é contratada da Urbana-PE e não da prefeitura expõe um claro conflito de interesses no trato com a questão da mobilidade urbana da cidade. Braga foi consultor da Urbana até as vésperas de assumir a pasta municipal, logo no início do primeiro mandato de Geraldo Julio. Hoje, seu filho Bernardo Braga, é gerente de comunicação da Urbana-PE.

Prática é irregular e assemelha-se a lobby, segundo Ministério Público

O coordenador do centro de apoio às promotorias de Justiça do Patrimônio Público, promotor Maviael Souza Silva, concordou em comentar o caso, frisando que, por não conhecer os detalhes da questão, teria de falar de maneira mais geral e não ao caso específico da Fratar.

“Doação para o poder público tem que ter contrato. Em alguns casos, se faz necessário até mesmo a publicação de edital e abertura de concorrência. Se não tiver, poderão estar sendo desrespeitados os princípios de publicidade, interesse público, impessoalidade e transparência”, afirma o promotor.

E explica o porquê de tudo isso: “Por mais paradoxal que pareça, nem toda doação é grátis. Por melhor que seja a intenção, é preciso se ater à legalidade, afinal a sociedade precisa saber qual a finalidade da doação. Nesse ramo do qual estamos falando, não há atividade filantrópica.”.

Segundo ele, a oferta de um projeto por parte de um ente privado não significa corrupção. “Um grupo privado pode oferecer qualquer tipo de projeto, mas o Poder Municipal, Estadual ou Federal têm a preponderância do interesse público. Do contrário, assemelha-se a lobby”.

O promotor Maviael Silva também explicou as possível irregularidades cometidas pela prefeitura se a Fratar tivesse sido contratada pela prefeitura sem licitação, mas como isso não se confirmou, optamos por descartar seus comentários a esse respeito.

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AUTOR
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Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.