Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Quem puxou o gatilho?

Marco Zero Conteúdo / 04/07/2016

Por Thaysa Oliveira, especial para a Marco Zero

Havia uma lanchonete próxima a minha casa, no Ipsep, bairro do Recife, onde o meu pai costumava me levar quando eu era criança. Eu sempre fazia o mesmo pedido: pizza brotinho com coca-cola. Ele, por sua vez, não tomava refrigerante e sempre passava os dez primeiros minutos do nosso encontro tentando me convencer de que aquilo era veneno. Olhava o cardápio da lanchonete tentando encontrar a opção menos gordurosa possível. Queria viver até os 100 anos, por isso precisava se alimentar bem. “Eu vou querer um suco de pinha, amigo velho!”, dizia ao dono do estabelecimento que minutos depois trazia o nosso lanche se dirigindo a ele como “major” e a mim como “majorzinha”. Eu, criança que era, achava aquilo o máximo.

Entendia que as pessoas respeitavam o meu pai e que, de algum modo, aquilo significava que elas me respeitavam também. Nada de ruim poderia acontecer comigo porque eu era a “majorzinha”, filha do major Marinaldo de Lima. O meu vizinho, um sujeito bastante engraçado, batia continência sempre que nos via chegar. Meu pai dava um sorriso sem jeito e perguntava: “Tudo bem, antigão?”. Uma espécie de gíria militar. Eu continuava achando tudo aquilo o máximo.

De major ele passou a Tenente-coronel e de criança eu passei a mulher feita. A maturidade me fez enxergar aquele respeito que as pessoas sentiam por ele de uma maneira totalmente diferente. O meu pai não tinha um nome, era sempre “o major” ou “o capitão”, e mesmo quando estava em seu tempo de lazer, era tratado como um policial. Ele não tinha uma identidade fora da farda. Ser militar era tudo que o definia e trabalhar de domingo a domingo era o que o matinha vivo. Sentia orgulho disso. A mim só restava a angústia, pois a sina do ente querido de um policial é vê-lo sair para o trabalho sem saber se vai voltar. Imaginava o meu pai morrendo em serviço e aquilo acabava comigo, por isso, cada ligação telefônica era como uma massagem no peito. A certeza de que está tudo bem. Até que um dia eu recebi o que viria a ser a nossa última conversa pelo celular.

Nos falamos como de costume e eu fiquei feliz por ouvi-lo dizer que estava de férias. Era algo que não acontecia com frequência e nós precisávamos comemorar. Sua voz parecia mais cansada do que o habitual, mas era manhã e eu interpretei aquilo como sono. “Eu amo você, viu, minha filha?!”, disse ele ao final da ligação. Não é como se eu nunca tivesse escutado aquilo antes, mas dessa vez foi diferente. Naquela hora lembrei de algo que ele havia me dito quando eu estava numa fase difícil da minha vida: “Eu estou bem quando você está bem e nada mais importa”. De algum modo eu sabia que era a minha vez de dizer aquilo para ele, só não sabia o porquê. No dia 10 de maio de 2012 o Tenente-coronel Marinaldo de Lima cometeu suicídio no Prédio da Secretaria de Planejamento e Gestão do estado de Pernambuco.

A explicação dada pela Secretaria de Defesa Social (SDS) para o ocorrido foi que ele estaria com sérios problemas financeiros, possuindo uma dívida equivalente a 200 mil reais. Visivelmente abalado ao não encontrar uma solução para o seu problema após uma longa conversa com o então secretário-executivo de gestão, Bernardo Almeida, o meu pai disparou um tiro de pistola ponto 40 contra a própria cabeça.

Não posso negar a versão dada pela Secretaria de Defesa Social no que diz respeito à dívida. De fato ela existia e foi o estopim de sua depressão, algo que nós só percebemos tarde demais. Era pra falar sobre isso que ele havia me ligado naquele dia. Não teve coragem. Precisar de ajuda para resolver um problema como esse era algo atípico para quem estava acostumado a ser o exemplo da família. Para ele, aquilo destruía a imagem de homem responsável e inabalável construída com tanto zelo. Estava preocupado sobre não poder cumprir suas responsabilidades como chefe do lar. Sentiu-se falhando em sua missão.

Entretanto, não posso confirmar tão somente que a dívida teria sido o motivo do suicídio. Nossa família possuía imóveis que foram colocados à disposição para quitar o valor citado anteriormente. Dinheiro não era o problema. O que estava deixando-o deprimido era se sentir vulnerável e incapaz. Quem acompanhou os seus últimos dias de perto conseguia enxergar a vergonha e sensação de fracasso estampadas em sua expressão, por isso não fomos pegos de surpresa pela notícia do suicídio. Ele havia confessado que pensou sobre isso e nós tentamos tomar todas as medidas preventivas possíveis, desde não deixá-lo sozinho até esconder sua arma. Não foi o bastante.

Deixemos de lado a simplista explicação dada pela Secretaria de Defesa Social para pensar em algo que, surpreendentemente, não virou pauta quando tudo isso aconteceu: Se o suicídio é um ato premeditado, o Tenente-coronel Marinaldo poderia ter escolhido qualquer lugar para cometê-lo. Por que, então, no prédio da Secretaria de Planejamento e Gestão? De que maneira isso passou tão despercebido?

A grande mídia pernambucana limitou-se ao depoimento da SDS. Faz sentido! Naquele momento eles eram a fonte oficial e só quem estava na SEPLAG poderia dizer, com certeza, o que havia acontecido ali. Mas quando um policial militar comete suicídio dentro de um órgão do Estado isso cheira mal. E quando o jornalismo abre mão de seu papel social para fingir que isso não importa, o cheiro fica pior ainda.

Um dia após o enterro havia uma nota na capa da Folha de Pernambuco: “Tenente-coronel que cometeu suicídio constava em lista de ex militar preso por agiotagem”.

Aquilo mexeu comigo de uma forma que até hoje eu não consigo explicar. Do que eles estavam falando? De onde surgiu essa história? Não demorou muito para descobrirmos que a informação era falsa, então só me restou acreditar que aquilo era uma tentativa de manchar a imagem do meu pai. Ninguém se importaria com a morte de mais um policial corrupto. Os depoimentos concedidos pela minha família foram destorcidos a ponto de não reconhecermos o homem de quem os jornais estavam falando. Curiosamente, nenhum deles consta no acervo público do Recife.

O primeiro relatório sobre prevenção ao suicídio realizado pela Organização mundial de Saúde, em 2015, contabilizou 800 mil casos por ano no mundo inteiro, algo que corresponde a uma morte a cada 40 segundos. O Brasil está em oitavo lugar no ranking de países com o maior índice de suicidas. Mas o que muita gente não sabe é que isso tem se tornado cada vez mais comum na polícia militar brasileira. Desde a morte do Tenente-coronel Marinaldo outros sete casos foram divulgados só na imprensa pernambucana, além dos casos que não ultrapassam as paredes de quartéis e pelotões.

Uma pesquisa feita pela Folha, em setembro de 2015, mostrou que transtornos psiquiátricos afastam quatro PM’s por dia em São Paulo – dado adquirido por meio da Lei de Acesso à Informação. O número cresce se contarmos os casos de policiais que tentam pedir afastamento por esse mesmo motivo e não conseguem. A explicação se dá pelo número reduzido de policiais nas ruas. Retirar de serviço todos aqueles que sofrem com algum problema mental acarretaria numa escassez ainda maior.

Além disso, os policiais militares ainda precisam driblar a dificuldade em admitir a necessidade de ajuda. O medo de sofrer preconceito por parte dos colegas de farda acaba se tornando um dos maiores impedimentos. A situação é ainda pior para aqueles que são comandantes, como no caso do Tenente-coronel Marinaldo. Como explicar aos seus subordinados que nem mesmo você consegue exercer tal função sem fraquejar em determinado momento?

O fato é que o modelo de policia militarizada tem sido cada vez menos eficaz. A ausência do devido amparo psicológico a estes profissionais acaba por torná-los uma ameaça também para a sociedade, que precisa lidar com um efetivo emocionalmente desestabilizado nas ruas. Estamos falando de pessoas treinadas para não sentir e com licença para portar armas. Basta acompanhar o noticiário com certa frequência para saber que essa combinação não funciona.

O sociólogo Émile Durkheim, em seu livro “O suicídio”, o descreve como um ato pessoal baseado no meio em que o homem está inserido. Ele destaca os valores e as normas da sociedade como algo que influencia diretamente o nível de interesse pela vida de cada ser humano. Sendo assim, a relação do suicida com a sociedade é o ponto central da ação. Se usarmos a ótica de Durkheim para analisar a forma como o policial militar se enxerga no contexto social, conseguiremos perceber não somente onde a militarização tem falhado, mas qual a nossa parcela de culpa nesse processo.

O policial tem sido colocado como o vilão da história porque nós também fomos convencidos a enxergá-los como pessoas incapazes de sentir. Isso não é uma tentativa de justificar qualquer abuso de poder cometido por eles, mas sim um convite a pensarmos a sua condição de uma forma mais humana, atribuindo a responsabilidade pelos seus atos a quem é de direito: O Estado. É ele quem controla toda ação do policial militar e é dele a máxima culpa por qualquer que seja o resultado disso.

Tenho poucas certezas sobre a morte do meu pai, mas o conhecia muito bem para não entender que aquilo foi um protesto. Um grito de socorro por todos aqueles que ficaram e que diariamente resistem. Uma reunião do Pacto Pela Vida acontecia no mesmo dia e local do suicídio. Coincidência? Talvez só para quem ainda está com dificuldade em sentir o quanto tudo isso cheira mal.

* Thaysa Oliveira é jornalista. “Quem puxou o gatilho?” é resultado do Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco, realizado em conjunto com a também jornalista Isabela Alves. O documentário foi o vencedor do Prêmio Cristina Tavares 2016 na categoria Videojornalismo Estudante.

AUTOR
Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.