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Quilombo Quingoma (BA) na mira da especulação imobiliária

Júlia Moa / 23/05/2024
A imagem retrata um canteiro de obras com um céu claro acima. No primeiro plano, há terra de cor marrom-avermelhada, indicando escavação ou desenvolvimento do terreno. À esquerda da imagem, estão estacionados vários veículos brancos ao lado de uma estrutura azul. À direita, há maquinário de construção amarelo. O fundo mostra vegetação exuberante com árvores e folhagem em colinas suaves sob um céu que transita do azul para tons de rosa e laranja.

Crédito: Quingoma / Divulgação

Símbolo de resistência da população negra, o Quilombo Quingoma, reconhecido como um dos mais antigos do Brasil, com registros de atividades que remontam a 1569, localizado em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador (RMS), sofre com diversas situações de violência, racismo e injustiças ambientais.

Embora seja certificado como território quilombola desde agosto de 2013 pela Fundação Cultural Palmares (FCP) e integre a Área de Preservação Ambiental (APA), o processo de regularização fundiária foi paralisado em 2015 no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Sem essa segurança jurídica da posse da terra (direito garantido por lei internacional, nacional e estadual) para os quilombolas, muita gente, incluindo o poder público, finge que a área não pertence a ninguém. A condição de vulnerabilidade em que o Quingoma se encontra faz com que o governo estadual projete a área como zona de expansão urbana da sua capital, por parte do município, buscando acelerar o desenvolvimento através de investimentos ligados a processos de grilagem e especulação imobiliária de grande escala.

Entre eles, destacam-se a implementação da Via Metropolitana, inaugurada em 2018, sob a responsabilidade do consórcio privado Bahia Norte com o apoio do governo estadual – conectando as rodovias BA-526 (CIA Aeroporto) e BA-099, cujo traçado corta a área do território -, e o empreendimento Joanes Parque, da MAC Empreendimentos Imobiliários, que foi licenciado pela prefeitura em 2023. Promovido como bairro sustentável, as obras em atividade estão tomando trechos de mata atlântica da APA Joanes-Ipitanga.

E não para por aí: em 2022, nas terras pertencentes ao Quingoma, foi inaugurado o Hospital Metropolitano de Lauro de Freitas; postos de gasolina também são construídos nas imediações e até o Esporte Clube Bahia, por intermédio do Grupo City, tentou comprar um terreno para a construção do novo Centro de Treinamento, “com dimensão mundial”, do time. Desistiram depois que a Defensoria Pública da Bahia (DPE/BA), Defensoria da União (DPU) e Ministério Público Federal (MPF) recomendaram resguardar os direitos do Quingoma, ou, em bom baianês, receberam gentilmente o convite de ‘se picarem’ [irem embora logo] da propriedade.

Como se não bastasse todos esses desafios enfrentados pelos quilombolas, suas lideranças e membros da comunidade estão sofrendo ameaças de morte. Episódio similar ocorreu em 2023 com Mãe Bernadete, ialorixá e líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador, assassinada brutalmente por proteger seu território.

“Com o movimento de retomada de identidade e reivindicação das nossas terras ancestrais, chamamos a atenção do estado e da prefeitura, e essa visibilidade teve um lado negativo. Eles não enxergaram unicamente as pessoas, e sim a oportunidade de fazer negócios e perpetuar o genocídio da comunidade”, relata Rejane Rodrigues, liderança no Quingoma que atualmente vive reclusa sob medida protetiva. Ela é firme ao reiterar que o quilombo não está à venda e segue, junto ao coletivo, tecendo estratégias que fortaleçam a identidade e manutenção das práticas tradicionais quilombolas, além de pressionar o poder público pela titulação do território.

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Se pudéssemos localizar uma passagem secreta direta para a África, ela estaria situada dentro de um quilombo baiano, afinal, trata-se do estado mais preto do Brasil. A escritora Ana Maria Gonçalves, no romance “Um Defeito de Cor”, narra que “a vida era muito melhor nos quilombos, onde ninguém era dono de nada ou de alguém, tudo era de todos e cada um mandava em si, dividindo o que plantava e colhia e o que produzia com as artes das próprias mãos. Era esse tipo de vida que ele queria dar aos filhos dele, em que cada um era responsável pelo próprio destino, mas ainda assim se importava em proporcionar boa vida a todos”. As comunidades surgiram no período colonial com a fuga de pessoas escravizadas para territórios onde pudessem ser livres dos horrores da escravidão.

“O Quingoma é a nossa casa, que nos alimenta, guarda e traz calmaria. Fazemos de tudo para protegê-lo, e somos nós, mulheres, que estamos à frente dessa luta pelos direitos dos quilombolas na Bahia. O capitalismo nos ataca com uma proposta de progresso, e ser quilombola é acolher e partilhar, essa é uma das nossas principais características como coletivo”, reflete Rejane.

Não é nenhuma novidade que os negros e indígenas no Brasil se encontram no olho do furacão em problemáticas que abrangem as desigualdades sociais. De acordo com o Censo Demográfico de 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Bahia possui o maior número de quilombolas do país. Ganha em quantidade, porém perde na qualidade de vida que tal população dispõe em todos os setores. Um exemplo disso é a precariedade da educação pública nas comunidades quilombolas baianas, demonstrada no fechamento das escolas. Uma herança escravocrata que dificulta a nossa evolução como nação que preza pela equidade racial e o respeito aos direitos humanos de todos os cidadãos.

Vivem hoje no Quingoma 650 famílias em aproximadamente 1.284 hectares de território ancestral. De acordo com Gabriela Sacramento, agricultora e presidente da Associação Agrícola Novo Horizonte, o cenário caótico atual explicita a falta de interesse das gestões municipal e estadual em investir em políticas públicas que tragam benefícios para a comunidade.

“A morosidade do Incra traz transtorno e desespero, eles dizem não haver recursos para regularizar a titulação do território, e assim ficamos desprotegidos. Estou fora do quilombo por conta dessas ameaças, entretanto a terra é o nosso corpo e a nossa alma, mesmo intimidados vamos continuar enfrentando”, afirma Gabriela.

Território Iorubá

Conhecida como polo do axé – não o gênero musical -, a Bahia reverbera uma energia espiritual positiva, e não foi à toa que o Quingoma recebeu, em 2023, a visita do rei da Nigéria, Ooni Ilê Ifé. Durante o evento, a comunidade recebeu das mãos da majestade o certificado de Território Iorubá, o único no Brasil a receber esse certificado, reconhecendo sua importância para manutenção da cultura africana nas Américas. Quem sabe agora, com a revigoração desse axé, a regularização e titulação das terras seja realizada pelo Incra.

Para a alemã Christina Schade, professora colaboradora da residência em Arquitetura, Urbanismo e Engenharia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro da Assessoria Técnica do Quilombo Quingoma, o fato do Brasil ser um dos dez países mais desiguais do mundo está justamente ligado ao direito à terra, papel fundamental para o funcionamento do capitalismo.

“O Brasil tem uma das maiores concentrações de terras do mundo, com grandes extensões controladas por uma pequena parcela de proprietários. E a Bahia possui uma das maiores concentrações do país. Isso remonta ao período colonial, quando vastas extensões de terra foram distribuídas para colonos europeus, nobres e instituições religiosas. Esse processo de apropriação de terras ocorreu às custas das populações indígenas e comunidades tradicionais que já habitavam a região. Depois, a distribuição desigual foi consolidada pela Lei de Terras de 1850, que estabeleceu um sistema de disposições e práticas que favoreciam os interesses das elites proprietárias e dificultavam o acesso à terra para negros e de outros grupos sociais marginalizados”, argumenta a professora.

Christina explica que após a redemocratização, em 1988, procurava-se remediar os legados através da criação de uma legislação favorável ao direito à terra, incluindo a Constituição Federal, que reconhece o direito à propriedade e a função social da terra, o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001, reconhecida mundialmente por ser a primeira legislação nacional a garantir o direito à cidade sustentável, ou o Decreto n.º 4.887 de 2003, para titulação das terras quilombolas.

Além disso, a Bahia possui legislação específica relacionada ao direito à terra, como a Constituição Estadual de 1989, a Lei n.º 11.041/2008, que implementa a Política Estadual de Habitação de Interesse Social, ou o Decreto 15.671/2014, que regulamenta o acesso à terra de comunidades remanescentes de quilombos e de povos de terreiros. No entanto, essas leis não estão sendo implementadas por falta de recursos, falta de vontade política e/ou processos de corrupção.

Pessoas e grupos com privilégios econômicos e políticos têm se aproveitado da inércia administrativa e estão impedido o acesso universal do direito à terra, através da apropriação ilegal (grilagem) de terras públicas ou sem dono (as chamadas terras devolutas) e conversão de grandes áreas comuns para agricultura, pecuária ou mineração, causando desmatamento e degradação ambiental. Estes processos foram e estão sendo acompanhados por tentativas de marginalização e ameaças à segurança dos movimentos e povos que defendem o direito à terra, como os povos indígenas, quilombolas, tradicionais, e movimentos sociais. Neste último grupo, Christina destaca o Movimento Sem Terra (MST), como maior movimento popular da América Latina, que há 40 anos tenta promover uma distribuição mais justa e equitativa do solo por meio da Reforma Agrária.

Geógrafa e pesquisadora do grupo GeografAR da UFBA, Hingryd Inácio de Freitas pontua que só existe violência e conflito onde ocorre luta e resistência. No seu ponto de vista, o Quingoma evidencia uma intensidade de conflitos a partir de 2013, quando a FCP certificou o autorreconhecimento da comunidade e eles passaram a reivindicar – incansavelmente – o direito da titulação do território para garantir, inclusive, a existência digna para futuras gerações.

“Estes grupos só conseguem cometer tamanha violência contra os defensores de territórios num contexto de impunidade e falta de proteção legal, devido à corrupção, ineficiência do sistema judicial e conivência com os perpetradores, que faz com que os agressores se sintam livres para cometer atos violentos sem consequências. Essas violações dos direitos humanos agravam-se quando o estado se junta às repressões das comunidades tradicionais e dos movimentos em defesa de territórios, rotulando os defensores como ‘terroristas’, ‘subversivos’ ou ‘inimigos do progresso’. A história recente do Quilombo Quingoma é exemplo disso”, critica Christina.

Em nota de esclarecimento, a MAC Empreendimentos declarou que a área a ser implantado o Loteamento Joanes Parque, cujas obras estão em andamento, não faz parte do território quilombola e que todas as etapas têm sido conduzidas em estrito cumprimento com a legislação vigente e em total acordo com as exigências dos órgãos competentes. Contudo, a assessoria técnica do quilombo refuta essas informações visto que a delimitação do território até o presente não foi realizada pelo Incra.

A reportagem entrou em contato com a construtora e não obteve retorno. Assim como a Prefeitura de Lauro de Freitas, o Esporte Clube Bahia, a Secretaria do Meio Ambiente (SEMA) e a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPROMI) não se manifestaram.

Regularização e titulação das terras

Mais uma especialista chama atenção para outro fato que precisa ser solucionado: enquanto a comunidade reivindica pelo seu território ancestral de 1.284 hectares, o Governo da Bahia, através da Casa Civil, apresentou uma proposta de delimitação de uma área de 284,76 hectares, ou seja, uma redução de 80% do território. A conta parece desproporcional na matemática do poder público.

“O que está acontecendo no Quingoma, essa relação de poder, sucede igualmente em Rio das Rãs, em Pitanga dos Palmares, São Francisco do Paraguaçu, Ilha de Maré e Conceição de Salinas, todas comunidades quilombolas próximas de Salvador. O IBGE identificou 6.023 áreas quilombolas no país, destas só 242 têm suas terras tituladas, correspondendo a 4%. Na Bahia, são identificadas 944 comunidades, sendo 696 certificadas pela Fundação Cultural Palmares, e apenas 22 territórios titulados nos últimos 35 anos”, cita Guiomar Germani, doutora em Geografia pela Universidade de Barcelona, professora aposentada da UFBA e líder do Grupo de Pesquisa GeografAR.

Guimar expõe que o Quingoma é tragado em todos os seus limites por ocupações de grandes empreendimentos que se baseiam em uma poligonal que não respeita o território ancestral, definido no Laudo Antropológico, para dizer que estão fora do território, e contam com o apoio da Prefeitura de Lauro de Freitas. Se as terras estivessem regularizadas, é provável que nada disso estivesse ocorrendo, ou, caso houvesse alguma complicação, seria por meio de outros métodos, evitando uma abordagem compulsória com a perspectiva de expropriação.

Consultado, o Incra alegou não possuir estimativas acerca de datas e que o processo se encontra na fase de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Esta é a etapa mais complexa até chegar à titulação coletiva das famílias. Quando há imóveis privados localizados no território reconhecido, o Incra solicita a publicação de decreto, expedido pelo Presidente da República, autorizando a desapropriação por interesse social. Após a edição do ato, o instituto deve vistoriar e avaliar os imóveis, para, posteriormente, ingressar com ação judicial de desapropriação, conforme disponibilidade orçamentária.

O exercício dos governos historicamente reflete os interesses das oligarquias e, hoje, de grupos econômicos que, embora sejam a minoria em número de pessoas, têm recursos suficientes para manipular massas e distribuir favores. Iuri Falcão, coordenador do setor jurídico do mandato do deputado estadual na Bahia Hilton Coelho (Psol), frisa que essa problemática implica mexer com os herdeiros desse sistema que ocupam cargos políticos e que detêm empresas.

A garantia de direitos de posse e propriedade aos quilombolas envolve a retirada das terras do mercado, que passam a ser utilizadas para o exercício do modo tradicional de vida destas comunidades. A apropriação cultural da terra não é de interesse do mercado imobiliário urbano e rural, e dos governos, que deixam de arrecadar tributos e de terem a possibilidade de realizar negócios escusos com a iniciativa privada.

“Precisamos combater o discurso de ódio semeado pelas elites brasileiras, que impede a compreensão de que a regularização fundiária e a reforma agrária visam distribuir terras e renda, diminuindo a pobreza para todos aqueles que não têm um título de propriedade, que constitui a maioria da população no Brasil”, aconselha Falcão.

Jornalista multimídia, vencedora do prêmio Respeito e DiversidadedoMPF

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