Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Era uma vez três ou quatro mulheres que entraram na caatinga para catar umbu.
Enquanto faziam a colheita, conversavam, contavam histórias e comentavam coisas de suas vidas, o que deixava a tarefa mais leve. Então, uma delas constatou algo que todas já tinham percebido: já não havia umbuzeiros jovens onde elas costumavam ir. As árvores eram sempre as mesmas, todas adultas, as mesmas de onde elas colhiam as frutas desde que eram meninas.
Aquele era um sinal claro que a vegetação não estava se renovando.
Ninguém sabe ou não lembra quem eram as mulheres ou onde isso teria acontecido – há quem diga que foi em Sento Sé, outros falam em Canudos, Jeremoabo ou Uauá.
Na verdade, quem foi e onde foi já deixaram de ser informações essenciais. O que importa é o que aconteceu depois que essa história passou a correr solta na zona rural do lado baiano do sertão do São Francisco. Fato ou ficção, o relato impulsionou, há 15 anos, o surgimento do recaatingamento, uma técnica até então inédita de conservação e recuperação de áreas degradadas da caatinga.
Para recaatingar uma área é preciso cercá-la para impedir que bodes, ovelhas e gado bovino a usem como pasto, possibilitando que a vegetação cresça sem o risco de ser devorada pelos animais de criação. Para dar certo, o terreno tem de permanecer fechado por anos. Por escrito, parece fácil, mas, na prática, um cercamento desses esbarra tanto na tradição quanto nos interesses econômicos dos próprios agricultores.
Dois agricultores, representantes de duas gerações diferentes, explicam que a maior dificuldade é “conseguir dialogar com o pensamento individualista”, como resume Alcides Peixinho do Nascimento, de 70 anos, provavelmente a principal liderança dos agricultores naquela região da Bahia. Ao seu lado, Jair Cardoso de Matos, de 25 anos, que se define sem hesitar como um discípulo de seu Alcides, emenda: “quem mais reclama é que mais tem área cercada para fazer sua própria reserva enquanto seus animais estão soltos no fundo de pasto da comunidade”.
A diferença de idade não é entrave. Os dois trabalham juntos nos cuidados dos 52 hectares que estão isolados há nove anos, encravados nos mais de 2.570 hectares do fundo de pasto da comunidade de Ouricuri, no município de Uauá. A área se tornou uma referência de recaatingamento bem sucedido na região.
Aqui, é necessário entender o que significa “fundo de pasto”, pois sua existência é fundamental para os bons resultados do recaatingamento:
Os fundos de pasto são terras devolutas, pertencentes ao poder público, usadas por comunidades tradicionais como pastagem por seus rebanhos. Animais de dezenas de famílias pastam juntos, sem cercas ou currais. Esta prática nasceu na Bahia, onde foi regulamentada por uma lei estadual de 2013, o que garantiu “a concessão de direito real de uso das terras públicas estaduais, rurais e devolutas, ocupadas tradicionalmente, de forma coletiva, pelas comunidades”.
A regulamentação, assinada pelo então governador Jaques Wagner (PT), consolidou o direito dos pequenos produtores rurais sobre áreas que sofrem ameaças de grandes fazendeiros, empresas de energia eólica e mineradoras. No entanto, a lei garante a sobrevivência de outros aspectos do modo de vida dos sertanejos baianos, relacionados às relações solidárias entre vizinhos e tradições culturais.
O fundo de pasto não existe nos outros estados do Nordeste, onde predomina a criação de animais soltos no pasto.
A área fechada para recaatingar, portanto, não é propriedade privada de uma família específica, faz parte do território gerido e usado coletivamente. Por isso, a resistência de alguns, afinal fechar parte do fundo de pasto, reduz o território por onde cabras, bodes, ovelhas, carneiros e reses perambulam para se alimentar.
Há, pelo menos, 40 recaatingamentos acontecendo nesse momento em 15 municípios do noroeste da Bahia, área de atuação do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), organização não governamental que atua na assistência técnica e organização social das famílias agricultoras desde o início da década de 1990. Dois deles, como em Pau Ferro, em Curaçá, e Fartura, no município de Sento Sé, estão fechadas desde 2009, pois as famílias do entorno decidiram não retirar as cercas.
“A mata ficou tão bonita que deixaram fechado para não acabar tudo de novo”, explica Nestor Rodrigues Costa, o agricultor de 66 anos que está à frente do manejo de 13 hectares fechados de um total de 145 do fundo de pasto na comunidade do Frade, em Curacá, a 468 quilômetros de Salvador. O engenheiro agrônomo Luís Almeida, assessor técnico do IRPAA, confirma que realmente isso acontece: “hoje, as comunidades que participaram dos primeiros cercamentos, em 2009, ainda executam a metodologia porque compreenderam a importância da catinga em pé como uma questão vital para as suas próprias vidas”.
De acordo com Almeida, 900 famílias estão diretamente envolvidas com a experiência, seja na manutenção das áreas cercadas em processo de recuperação ou conservando outras que estão em bom estado. Sem as famílias agricultoras, a ideia não seguiria adiante.
Segundo o agrônomo do IRPAA, a tese de que é necessário tirar os seres humanos dos ecossistemas a serem protegidas é equivocada: “existe uma afirmativa muito forte nos próprios debates entre ambientalistas de que para se recuperar ou conservar é preciso tirar as pessoas, mas a gente olha de outra perspectiva e vê que onde tem caatinga em pé é onde tem comunidades tradicionais porque essas já fazem uso sustentável há muitos anos. A partir do momento que a comunidade participa, ela cria a consciência e o conhecimento por meio da educação ambiental”.
Recaatingar não é só fechar a área, conforme explica Tamilo de Souza Costa, de 34 anos, filho de Nestor e técnico agrícola do IRPAA. No início do processo, é necessário ajudar a natureza para que ela possa fazer seu trabalho: “além do solo receber esterco dos animais para nutrir as novas plantas, nos pontos com erosão são feitos pequenos barramentos para reduzir a força d’água quando chove, o que controla a desertificação”.
As intervenções humanas são mínimas, mas um pequeno sistema de irrigação “de salvação” é instalado para ser usado em períodos de estiagem. A água vem de um barreiro-trincheira, escavado de maneira a reduzir a evaporação.
O recaatingamento do Frade é recente, foi isolado há menos de dois anos, mas Nestor já é capaz de fazer um inventário detalhado das mudanças. “Antes, tava tudo aberto, com muitas clareiras emendando umas nas outras. Não tinha angico, não tinha jurema, não tinha umbuzeiro, não tinha carquejo, até o caroá tava se acabando. Agora, já tem mudas dessas plantas todas, já tem um pouco de tudo isso, algumas plantas dessas que tinham sumido já passam de um metro de altura”, celebra.
É preciso dinheiro para arame, estacas de concreto, bomba d’água, escavação de barreiro e mangueira para irrigação, por exemplo. Por isso, os novos projetos de recaatingamento estão sendo financiados pelo Ministério do Meio Ambiente e o programa Pró-Semiárido, do Governo da Bahia, mas outras instituições como Cáritas e Petrobras Ambiental contribuíram para tirar os primeiros projetos do papel. No início de junho, No início de junho, a metodologia foi apresentada oficialmente à ministra Marina Silva, quando visitou JuazeiroePetrolina.
Em Uauá, não demorou para as famílias envolvidas no recaatingamento perceberem que, ao invés do que diziam os agricultores contrários à redução da área de pasto, a recuperação do meio ambiente era um bom negócio para a economia das comunidades. E não só por causa do aumento da coleta de umbu para fazer geleia, umbuzada, doce e até cerveja artesanal.
Luís Almeida explica que o aspecto produtivo é um dos pilares da metodologia do recaatingamento. “A geração de renda é um dos pilares, é um potencial para manter as famílias no projeto. Um diferencial para os projetos de recuperação e conservação de áreas degradadas é a participação das pessoas, tanto no pensar quanto na execução”.
O jovem Jair Matos, aquele que trabalha com seu Alcides Peixinho na área cercada no fundo de pasto de Ouricuri, é uma dessas pessoas que aderiram à intensidade tanto em razão dos resultados ambientais quanto econômicos. O recaatingamento foi decisivo para que ele desistisse da pecuária e passasse a se dedicar à produção de mel de abelhas nativas sem ferrão, que voltaram a frequentar a região por causa da recuperação da mata. Essa história já contamos em outra reportagem da série A reinvenção do Nordeste.
Aliás, foram as abelhas que proporcionaram a Jair uma noção clara dos efeitos das mudanças do clima em seu cotidiano. Antes do cercamento da área perto de sua casa, ele deixou de ver os enxames de abelhas tão comuns na sua infância e adolescência – o que não faz tanto tempo assim. “Eram três, quatro minutos de abelhas passando voando pelo quintal. Isso acabou de uma hora para outra”, recorda. Quando elas começaram a voltar aos poucos, ele percebeu que criá-las poderia garantir tanto seu sustento quanto o da natureza.
Na visita à área isolada, ele aponta os efeitos da experiência comparando o tamanho dos pés de carquejo, um dos alimentos preferidos de caprinos e ovinos: “fora, não passa de um palmo de altura, não conseguem crescer porque o bode vem e come logo. Aqui dentro, já passou de um metro”.
Seu “mestre”, Alcides Peixinho, conhece na prática a certeza que manter a caatinga é mais rentável do que desmatá-la para plantar milho ou feijão, correndo o risco de uma estiagem acabar com a lavoura. Ele mantêm uma roça inusitada nos fundos da casa. Ele planta mandacaru.
Toda a produção dos mandacarus de seu Alcides tem comprador certo: a marca francesa de cosméticos L’Occitane, que comercializa uma linha de sabonete, hidratante, esfoliante e óleo para as mãos com base no cacto mais imponente do semiárido. O contrato entre a empresa e a Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Canudos (Coopercuc), que faz a ponte entre os franceses e o agricultor, levou a cantora Juliette a visitar o sítio de Alcides em novembro de 2021.
Alcides Peixinho, no entanto, não ficou nem um pouco impressionado com a visita artista e ex-participante do programa Big Brother Brasil. Ele está acostumado a receber jornalistas, líderes políticos ou cientistas. Para ele, o recaatingamento é resultado do conhecimento acumulado pelas comunidades rurais.
“A gente tem que ficar atento, entender as coisas e mudar a mente. Mudando a mente com o conhecimento a gente elimina as carências de água, saúde e educação. Nós, agricultores, não somos respeitados pela política partidária nem pela Justiça, mas o conhecimento veio nos libertar. Saímos do modo escravo”, declara.
O experiente agricultor diz “acreditar nos mistérios da caatinga” e, por isso, “vê muito sentido em fechar uma área para recaatingar: é o mesmo que criar um banco de alimentos para os animais”.
Seu Alcides arremata a entrevista com uma frase de efeito: “nossos direitos e saberes não têm um teto, queremos mais, sempre mais”.
Nessa comunidade de nome bastante incomum – a versão mais aceita para a origem do lugar é que lá havia um ponto de parada de tropeiros, que ficaram esfomeados quando uma saca de farinha rasgou e o alimento se perdeu -, as mulheres estão agregando valor aos alimentos produzidos nos roçados ou colhidas na área conservada do fundo de pasto. Reunidas na Associação das Mulheres da Fazenda Esfomeado (Amafe), em Curaçá, as agricultoras produzem queijos, geleias, antepasto, doces e licores.
São 19 mulheres diretamente envolvidas no cotidiano da pequena fábrica, montada com apoio do IRPAA, de organizações internacionais e também do governo baiano. “Outras mulheres não conseguem participar da produção, mas voltaram a colher umbu para vender para nossa fábrica”, explica Cristiane Ribeiro, de 45 anos, que além de agricultora é professora, historiadora e ocupa a presidência da entidade.
Produtos como geleia de umbu, de cebola roxa, de maracujá-da-caatinga, antepasto de palma e queijo de cabra são comercializados em feiras da agricultura familiar, em um dos Centros Públicos de Economia Solidária (Cesol) ou no sofisticado Armazém da Caatinga, provavelmente a loja mais sofisticada de Juazeiro, mantida pelas cooperativas de agricultura familiar da região. Tudo que sai do Esfomeado é vendido com a marca “Tia Odete”, em homenagem a Odete Ferreira, a principal liderança social e política da comunidade, que está acamada com Mal de Alzheimer.
Segundo Cíntia Graciela dos Santos, de 38 anos, “até 2023 a Amafe só se pagava, mas de um ano pra cá começou a dar lucro. Na fundação, ninguém acreditou quando eu dizia que, um dia, a gente teria carro, mas ano passado nosso projeto foi aprovado no programa Pró-Semiárido e pudemos comprar nosso próprio veículo”.
O lucro não é o único objetivo das mulheres da Amafe. “Nós somos as protagonistas das transformações sociais, mas trazemos isso chamando os homens para discutir o feminismo e os direitos das mulheres”, explica a presidente Cristiane.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.