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Redução da jornada de trabalho: “a resistência é mais política do que econômica”, diz sociólogo

Maria Carolina Santos / 21/11/2024
Manifestantes se reúnem em protesto pelo fim da jornada de trabalho 6 x 1, na Cinelândia, no Rio de Janeiro.

Crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil

O professor Sidartha Soria, do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ficou positivamente surpreso com toda a discussão em torno da redução da jornada de trabalho e do fim da escala 6×1. De autoria da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que faz essas alterações já conseguiu o mínimo de assinaturas e vai tramitar no Congresso.

“Essa discussão toda gerada pela PEC é importante para pensar o que essa sociedade do cansaço procura nos negar: o direito de ficar refletindo sobre a vida, sobre o que a gente quer e o que a gente não quer. Eu acho que proposta já teve um ponto positivo, só de ter acendido uma lâmpada na cabeça de muita gente: ‘é realmente necessário que eu trabalhe seis dias? Não dá para ser diferente?’. Isso já é alguma coisa, e não é pouca coisa”, afirma o sociólogo.

Coordenador do Grupo de Estudos em Sociologia do Trabalho e dos Ofícios (Gesto), Sidartha Soria conversou com a Marco Zero sobre os impactos que essas medidas podem ter na vida dos trabalhadores e das trabalhadoras e quais são os obstáculos para a concretização dessas mudanças.

MARCO ZERO – O sociólogo Ricardo Antunes falou recentemente aqui no Recife que o tema do trabalho passou um tempo sem ser tão discutido e, de uns anos para cá, tinha voltado a entrar em pauta, estar mais na mídia. Por que aconteceu isso? 

SIDARTHA SORIA – Nos anos 1990, houve uma discussão entre os pesquisadores que diziam que o trabalho como dimensão analítica, como dimensão fundante da vida social e econômica, não era mais tão importante, por conta do avanço tecnológico. Normalmente quem traz essa discussão da perda de centralidade, da perda da importância da dimensão do trabalho, está tentando puxar para o lado de um passado que não volta mais, um passado em que havia muitos empregos, empregos sobrando e que hoje não teria mais.

E o que o Ricardo Antunes sempre tenta contextualizar é o seguinte: não, o trabalho nunca sai de pauta, a importância dele nunca deixa de estar colocada. Primeiro, porque, numa sociedade capitalista, a maior parte das pessoas vive do trabalho. É uma sociedade do trabalho. Se você tem um volume maior ou menor de empregos, ou a qualidade desses empregos está variando, você está gerando ocupações precárias em maior quantidade do que ocupações com qualidade melhor, protegidas, com remuneração melhor, isso é uma outra questão.

Mas o fato é que a centralidade do trabalho está sempre colocada, a importância dele, inclusive na definição da vida, das agendas das políticas públicas, da saúde e das condições de vida das pessoas.

A maior automação do trabalho pode ajudar a diminuir a jornada do trabalhador?

Nos últimos 10, 15 anos, temos uma escalada das inovações tecnológicas indo em direção à automação. Automação é algo que já existe no capitalismo desde o século XIX, só que vai se expandindo para outros setores, na forma primeiro da robótica e, mais recentemente e principalmente, na forma da inteligência artificial.

O tamanho real dessa escalada é algo que eu creio que não devemos tomar como um dado, e sim como algo a ser também problematizado, algo discutido. A IA existe, está se expandindo, mas a gente tem sempre que tentar dar o verdadeiro peso a isso. Seja como for, é uma questão que a gente tem que enfrentar. E faz parte do processo de automação do trabalho que vai implicar também não só no volume de ocupações disponíveis, como também no tipo de ocupações.

Por enquanto, as facilidades que essa automação cada vez mais refinada traz ainda não impactam uma grande massa de trabalhadores, como os que estão na escala, por exemplo, de trabalhar seis dias e folgar só um?

Sim, sim. É uma boa pergunta porque permite que a gente destaque onde é que a Inteligência Artificial está entrando. Vamos dividir de modo bem grosseiro as ocupações em três níveis. Primeiro, aquelas ocupações que têm um elevado grau de qualificação no sentido da capacidade de criatividade humana, inventividade, a capacidade de dar respostas originais para os problemas que vão surgindo. Esse perfil é pouco afetado pela automação informatizada.

Outro setor que é pouco afetado — e que inclusive no Brasil concentra grande parte das ocupações — são as ocupações mais manuais, que exigem menos qualificação. A IA vai pegar mais nesse miolo que é um trabalho já de escritório, mas é um trabalho mais repetitivo. O trabalho no setor administrativo, na contabilidade. Sempre que a rotina do trabalho da pessoa envolver rotinização de procedimentos, um pensamento mais mecânico, mais repetitivo, essa área está ameaçada pela entrada da Inteligência Artificial.

A história do capitalismo é a história também da luta pela redução da jornada de trabalho

Então como é que você vê a retirada da escala 6×1 para os trabalhadores do setor de serviços, como bares, restaurantes, transportes?

A discussão da redução da jornada de trabalho é tão antiga quanto o próprio capitalismo. Desde que o capitalismo surgiu, existe essa questão colocada, sempre antecedida por uma intensidade grande de trabalho. Jornadas de trabalho imensas geram uma reação por parte da classe que trabalha, da classe assalariada. A história do capitalismo é também a história da luta pela redução da jornada de trabalho.

Sempre aquele cabo de guerra em que o empregador procura ampliar a intensidade e a quantidade de horas, ou manter elevadas, e a classe assalariada tentando diminuir. No que diz respeito à discussão atualmente colocada, o que é importante destacar é que é normal acontecer isso da parte de quem defende a manutenção do sistema atual. A ideia de aterrorizar, de assustar, de chamar a atenção para o fato de que isso pode devastar a economia, pode gerar muita crise, gerar desemprego, porque aumenta o custo do trabalho para o empregador, você tem que contratar mais gente, enfim.

Outro ponto nessa discussão é que tem que ver como ficaria o sistema das horas extras, porque você tem sempre a possibilidade de reduzir a jornada legal, mas, ao manter também a legalidade da hora extra, isso atenua o impacto da medida. Em um contexto em que os salários são mais baixos, o trabalhador também fica sensível a querer trabalhar mais tempo.

O sóciólogo e professor Sidarta Soria.Foto: Arquivo pessoal

Há quem defenda que a redução de jornada é benéfica também para os empresários. Como você vê isso?

Do ponto de vista da economia como um todo, a redução de jornada é quase sempre benéfica para todo mundo, para quem trabalha e para quem emprega. A questão do empregador que fica temeroso em relação a isso é porque tem uma visão fragmentada. O empresário tem um campo visual que é somente do negócio dele. Então, ele bota tudo no papel, faz a contabilidade e fala “isso aqui vai me custar tanto”.

Mas, do ponto de vista da economia como um todo — e aí é que entra a importância de uma gestão que tenha uma visão macroeconômica e que não compre a perspectiva micro do empresário —, se considera que, se você diminui a jornada, embora num primeiro momento aparentemente você vai ter uma pressão em cima dos empregadores, isso logo é compensado. Isso acontece porque aquele tempo disponível maior da força de trabalho corresponde à dinamização de outros serviços, que vão gerar outros empregos e vão aumentar a massa salarial.

A redução da jornada de trabalho aumenta o número de pessoas empregadas e aumenta assim a massa salarial como um todo, o que beneficia todo mundo que vende nessa economia, todo mundo que produz e vende, que é o caso do comércio, dos serviços, da indústria. A economia brasileira ainda tem, em grande medida, um dinamismo tecnológico baixo. Ou seja, ela é muito intensiva na mão de obra, como serviços de atendimento, do comércio, de apoio à indústria, etc. Tudo isso é mão de obra intensiva. Ao diminuir a jornada, aumentando a entrada de pessoas no mercado de trabalho, dinamiza como um todo a economia. A tendência no médio e longo prazo é o salário médio aumentar.

Diminuir a jornada pode ser uma medida para se diminuir também o desemprego?

Sim, porque você facilita a absorção de uma massa maior de pessoas. Quando você diminui o desemprego, a tendência, como você tem uma oferta menor de mão de obra ociosa no mercado, é o valor da mão de obra ir subindo. Por quê? Porque, se eu emprego você sabendo que tem 10 pessoas lá fora querendo o seu lugar, a tendência é eu diminuir o salário. Agora, se tem pouca disponibilidade de força de trabalho lá fora, aí você quem está com a bola, você fica mais valorizado. Porque, inclusive, você não precisa se submeter às más condições de trabalho.

A resistência à diminuição da jornada é mais de natureza política, de natureza disciplinar do capitalista, do que propriamente econômica

Isso ajuda os trabalhadores a terem mais poder nessa barganha, não é?

Sim, você não precisa se submeter às condições que eu coloco para você unilateralmente. Você pode sair porque tem oferta de trabalho em outros lugares. Ou seja, isso favorece quem vive de salário, a classe trabalhadora. E talvez seja aí um ponto delicado que explica a resistência dos empresários à redução da jornada. Porque, veja, eu disse agora mesmo que, do ponto de vista do giro da economia, isso favorece a todo mundo no médio prazo. Você vai vender mais porque tem mais gente com renda para consumo.

Então, o capitalista deveria gostar disso. O empresário deveria gostar disso. Por que ele não gosta? Porque, não só no início que ele fica temeroso de ter que gastar mais com contratação, mas principalmente porque, se o emprego está muito alto, o desemprego está baixo, o poder dele sobre os seus funcionários no âmbito da sua empresa, do seu negócio, tende a diminuir. Porque a classe trabalhadora fica mais fortalecida quando você tem um desemprego baixo.

Ou seja, a resistência à diminuição da jornada é mais de natureza política, de natureza disciplinar do capitalista, do que propriamente econômica. Porque economicamente vai aumentar no médio prazo o número de vendas, o volume de vendas e de lucro do capitalista. Mas vai diminuir essa ingerência do capitalista sobre a gestão da força de trabalho dele, porque o trabalhador vai ficar mais fortalecido em termos estruturais.

A sociedade do trabalho que temos é uma sociedade do trabalho adoecida. Física e, principalmente, mentalmente

Pelo outro lado, o trabalhador na escala 6×1, cansado, também favorece o capitalismo? Porque esses trabalhadores tão cansados não vão ter nem forças pra tentar lutar pelos seus direitos.

De fato, fica todo mundo exausto, estressado. A escala 6×1 massacra todo mundo em geral, deixa todo mundo cansado, extenuado. Mas em particular, mulheres, e mulheres negras, que acumulam, muitas vezes, com o trabalho do cuidado e o trabalho doméstico. As pessoas ficam mais preocupadas em descansar no pouco tempo disponível que têm. A sociedade do trabalho que temos é uma sociedade do trabalho adoecida. Física e, principalmente, mentalmente.

O alto consumo de psicotrópicos e de medicamentos psiquiátricos é para dar conta das demandas, para conseguir suportar. Então, não deixa de ser uma forma de manter as coisas estabilizadas através de você manter todo mundo exausto o tempo todo. E eu acho que é por isso mesmo que você tem esse movimento grande na luta pela mudança dessa escala. Porque o pessoal está cansado de estar cansado.

Em 1988, a Constituição reduziu o tempo máximo de trabalho de 48 para as atuais 44 horas semanais. Em alguns países ricos, está se adotando a semana 4×3. Isso pode virar uma tendência mundial?

Bom, aqui é mais difícil por algumas razões. É mais fácil nos países desenvolvidos, primeiro, porque os salários médios são mais altos. O que diminui, por exemplo, a tentação entre os trabalhadores de pegar hora extra não é tão necessário. O salário baixo daqui é o primeiro obstáculo. O segundo obstáculo é a resistência patronal, que é mais forte aqui do que lá. Porque, assim, ela é proporcional à resistência da classe trabalhadora, falando aqui da força do movimento sindical.

Esse é um fator que pode dificultar: quão forte ou quão enfraquecido está o nosso movimento sindical para poder levar essa luta adiante? Esses seriam os principais obstáculos para o sucesso dessa medida. Entre os próprios trabalhadores pode ter uma resistência porque, como o salário é baixo, ele fica mais tentado a adotar a hora extra para aumentar o rendimento, ainda que a médio prazo com a redução da jornada a tendência geral é o salário médio aumentar.

Temos no Brasil ainda um outro fator, que é a informalidade muito elevada no nosso mercado de trabalho. A lei atenderia quem está no mercado formal. Ou seja, entre 40% e 50% da população que está economicamente ativa ficaria de fora disso, porque é uma massa que trabalha à revelia da lei trabalhista.

E poderia até gerar mais informalidade? Ao invés de contratar como CLT, as empresas poderiam contratar como PJ?

O aumento da informalidade é um risco, sim, principalmente nos setores econômicos e nos estabelecimentos econômicos menores. Nas grandes indústrias, nas grandes empresas, a informalização é mais difícil de acontecer. No capitalismo, a tendência é sempre ir aumentando o tamanho das empresas. E a empresa maior fica mais obrigada a obedecer vários tipos de normas e regulamentos. Tem mais fiscalização.

Temos que também ter em mente que essa pejotização, essa MEIização da força de trabalho já é um processo que marcha há bastante tempo. Esse é um obstáculo sério, mas a gente também pode ver por um outro lado. Uma vez que você tem uma quantidade significativa de pessoas no mercado de trabalho que são celetistas, se a redução de jornada virar lei, os efeitos benéficos passam a ser percebidos socialmente. Na verdade, eu acho que isso poderia gerar um movimento de contrafluxo em relação à tendência anterior, de pejotização. Os trabalhadores começariam a pressionar para voltar para o sistema anterior, para o sistema celetista.

Como é que esse enfraquecimento dos sindicatos, principalmente depois da reforma de Temer, influencia na garantia dos direitos dos trabalhadores?

O movimento sindical sempre foi, na história do capitalismo, um fator de defesa dos interesses imediatos da classe trabalhadora e que, inclusive, tem impactos econômicos. Porque se o sindicato está lá para defender uma remuneração mínima ou então um aumento da remuneração, há um efeito econômico. Isso não afeta positivamente só a vida do trabalhador individual, mas afeta também positivamente a economia como um todo.

O movimento sindical tem essa dupla dimensão. No Brasil, historicamente, o sindicalismo é dificultado no seu processo de fortalecimento. Primeiro, porque a nossa economia tem um dinamismo muito baixo. Então, são muitas ocupações precárias. E onde você tem ocupação precária, você vai ter também uma dificuldade maior de construção de movimentos operários, movimentos trabalhadores organizados. Estou dizendo que é difícil sim, impossível não. Tanto é que a gente vê já, por exemplo, nos segmentos de pessoas que trabalham com aplicativos de entrega, de transporte passageiro, uma organização surgindo. Isso é uma tendência, o pessoal leva aquela lapada do capital, aí sofre, depois vai se organizando para resistir.

Você está otimista com esse movimento agora dessa PEC, com essas questões de trabalho voltando a serem discutidas?

Eu primeiro fiquei surpreso com a repercussão. Aliás, positivamente surpreso. E também serve como um indicador de que, como falamos aqui no início, a questão do trabalho no mundo moderno está sempre colocada, a importância dele não pode ser nunca minimizada e uma prova está aí, que as pessoas estão entrando nessa discussão. Me parece que tem muita gente a favor da medida, justamente porque não é necessário você trabalhar tanto, nem mesmo do ponto de vista da produção da riqueza, porque, se você aumenta a produtividade da economia, você produz mais ou tanto quanto produzia antes em menos tempo, o que libera mais tempo para você poder descansar, tomar conta das outras esferas da vida, ficar com a família, se divertir, etc.

Está sendo discutido e repercutido, e isso é importante para pensar o que essa sociedade do cansaço procura nos negar: o direito de ficar refletindo sobre a vida, sobre o que a gente quer e o que a gente não quer.

Ou inclusive se informar, se instruir, porque o avanço dos sistemas informatizados uma hora chegará em todo lugar. Isso nos coloca um desafio: temos que ir atrás daquilo que não pode ser substituído por uma máquina, ou por um algoritmo, ou por um sistema de inteligência artificial. O que é humano no processo e que realmente não pode ser reproduzido? A nossa capacidade como artífices, a nossa capacidade inventiva, a nossa capacidade criativa, aquilo que faz a humanidade ser o que é. Nós somos uma espécie que inventa e se reinventa o tempo todo. Robô nenhum vai fazer isso. Nenhum sistema de inteligência artificial é capaz de pensar como nós somos capazes de pensar.

A despeito dos obstáculos para a PEC passar, eu acredito que, em algum momento, vai acabar passando, porque o mundo anda, as economias mais desenvolvidas seguem avançando e as influências disso chegam para nós. Temos razões para ficarmos otimistas, pelo menos em relação a ter jogo. Está sendo discutido e repercutido, e isso é importante para pensar o que essa sociedade do cansaço procura nos negar: o direito de ficar refletindo sobre a vida, sobre o que a gente quer e o que a gente não quer. Eu acho que essa PEC já teve um ponto positivo, só de ter acendido uma lâmpada na cabeça de muita gente: “é realmente necessário que eu trabalhe seis dias? Não dá para ser diferente?”. Isso já é alguma coisa e não é pouca coisa.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org