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Redução de danos: um outro olhar sobre os usuários de crack

Luiz Carlos Pinto / 02/02/2017

Foto: Liane Milton

Não exigir abstinência, ouvir os usuários de drogas, garantir oferta de moradia, treinamento e geração de renda. Essas são algumas das lições para reduzir danos do uso de crack por moradores de rua obtidas a partir da experiência do programa Atenção Integral aos Usuários de Drogas e seus Familiares (Atitude), desenvolvido há seis anos pelo governo de Pernambuco. Essas orientações estão presentes no relatório “Crack: Reduzir Danos – Lições Brasileiras de Saúde, Segurança e Cidadania”. O documento foi elaborado a partir de três pesquisas realizadas em diferentes períodos de 2015 e será apresentado logo mais à noite pela Open Society Foundations (OSF) num debate em Olinda.

O relatório reúne as experiências de outros dois programas, “Aproximação – A cena de drogas da R. Flavia Farnese”, realizado pela ONG Redes da Maré, do Rio de Janeiro; e o Programa “de Braços Abertos”, da Prefeitura de São Paulo. Em Pernambuco, o Atitude foi analisado pela a equipe do NEPS-UFPE, liderada pelos Professores José Luiz Ratton e Rafael West.

O debate terá a participação de Sarah Evans, coordenadora sênior do Programa de Saúde Pública da Open Society Foundations; Liz Evans, diretora executiva dos dois maiores programas de redução de danos para usuários de drogas injetáveis em Nova York; Ingrid Farias (diretora da Associação Brasileira de Redução de Danos) e José Luiz Ratton, coordenador do Núcleo de Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança da UFPE – NEPS.

O que o Atitude e os outros programas têm em comum é não investirem tempo e recursos em abordagens criminalizadoras e repressivas, que caracterizam o modelo de “guerra às drogas” e que consideram o encarceramento a única solução para o problema do abuso do crack e de outras drogas também.

Essa política, aliás, contribuiu muito para que o Brasil tenha conseguido formar a quarta maior população carcerária do mundo – são 622 mil detentos, menor apenas do que as de Estados Unidos, Rússia e China. A política de aprisionamento no país gerou um déficit de 250 mil vagas, não reduziu o tráfico e o consumo abusivo das drogas e, de quebra, criou novas zonas virtualmente controladas pelo tráfico – os próprios presídios brasileiros. As últimas rebeliões são um retrato nítido desse pesadelo, no qual as violações aos direitos humanos são comuns e corriqueiras.

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Na realidade, o que orienta as ações dos três programas é o entendimento de que os problemas da população que abusa de drogas e mora na rua é mais amplo: envolve não somente as drogas, mas também vulnerabilidade social e pobreza.

Entre os objetivos buscados pelos três programas que servem de base às pesquisas e ao documento da OSFs, ainda se verificada a necessidade de se criar medidas para reduzir a vulnerabilidade das pessoas em situação de rua.

LIÇÕES PARA REDUZIR DANOS DO USO DE CRACK POR PESSOAS EM SITUAÇÃO  DE RUA (OPEN SOCIETY FOUNDATIONS)

 1. Não exigir abstinência dos usuários de drogas como pré-condição para participar dos programas de atendimento e assistência.

2. Ouvir os usuários e valorizar vínculos familiares e relações existentes, bem como sua autonomia.

3. Garantir oferta de moradia como fator-chave de estabilidade na vida dos usuários.

4. Proporcionar oportunidades de treinamento, emprego e geração de renda para ajudar a reinserir os usuários no mercado de trabalho e na comunidade;

5. Criar medidas para reduzir a vulnerabilidade de pessoas em situação de rua que usam drogas à violência e homicídios.

6. Oferecer diversidade de tipos de tratamentos para o uso de drogas, garantindo acesso de usuários à saúde clínica e mental como deve ser de direito de todos os cidadãos.

7. Engajar as agências de governo de forma multissetorial, inclusive os órgãos de segurança pública, e envolver organizações de base comunitária.

 

Pernambuco

Os dados do Programa Atitude reunidos no relatório indicam que entre 65% e 70% dos atendidos são negros, e majoritariamente homens, pobres e jovens (com idades que variam dos 18 aos 33 anos). Essa população tem baixa escolaridade e trabalha no setor informal, e, em alguns casos, com grupos criminosos. Eles ainda provêm de famílias com pouca estrutura, muitas vezes criados apenas por mães que trabalham fora para sustentar sozinhas a casa, deixando as crianças sob cuidados de parentes ou vizinhos.

Essas e outras informações confirmam um mesmo perfil observado nas pesquisas no Rio de Janeiro e São Paulo, que constam no relatório da OSF. Os beneficiados também viveram em comunidades com prevalência de violência e tráfico de drogas ilícitas; em geral, os participantes estavam desempregados e muitos vivem ou viveram em situação de rua. Além disso, grande parte dos indivíduos pesquisados consumia crack há 3 a 5 anos, geralmente com padrão de uso diário.

O estudo desenvolvido pelos professores José Luiz Ratton e Rafael West identificou ainda que muitos participantes têm a vida marcada pela violência e vários relataram casos de assassinatos de pais, irmãos e amigos.

Ainda que a passagem do uso recreativo da droga à dependência nunca seja linear, os pesquisadores do NEPS-UFPE observaram que, para muitos dos atendidos pelo Programa Atitude, situações traumáticas interferiram no abuso das drogas e na dificuldade ou inabilidade com o vazio e o luto gerados por perdas – como mortes de pessoas próximas e/ou separações. Esse aspecto reforça o perfil identificado nas outras localidades de uso do crack: a reconstrução de laços afetivos e relacionais com a comunidade e família é fundamental para a retomada do controle da própria vida.

Certamente que um dos fatores que contribuem para isso é a postura de acolhimento e compreensão das equipes de profissionais envolvidos no programa – que é salientado pelos atendidos como um dos fatores positivos do Atitude. A flexibilidade na oferta dos serviços, que varia de acordo com as necessidades dos participantes, também é vista como uma das vantagens.

Mas um dos fatores mais fortes do estudo do NEPS-UFPE diz respeito ao impacto do Programa Atitude na elaboração de políticas públicas de segurança. O relatório afirma que o programa introduziu alternativas para reduzir o encarceramento de usuários e pequenos traficantes

ao permitir que o uso de drogas seja tratado como um assunto de saúde pública e não de repressão policial. No universo dos atendidos pela ação do governo, mudou o foco da política estadual sobre drogas para tratamentos de usuários em direção à serviços não baseados em abstinência e à garantia de direitos essenciais como moradia e saúde. “O Programa Atitude do governo do Estado de Pernambuco foi o único que trabalhou na prevenção da violência desde a gestão Eduardo Campos, ainda que esse não fosse seu objetivo principal”, afirma um dos coordenadores do estudo que compõem o relatório da Open Society.

Os coordenadores da pesquisa José Luis Ratton e Rafael West acreditam ainda que os resultados positivos do Programa Atitude podem sinalizar pistas para uma ideia mais adequada ao contexto latino-americano de redução de danos. “Isso porque a redução de danos para a realidade local e para Europa precisa ser diferente”, afirma Ratton. “Aqui o usuário morre de tiro, de desavenças ou dívidas com o traficante intermediário. Você não vê mortes por overdose de crack. Então precisamos desenvolver um conceito de redução de danos que incorpore a proteção contra a violência na cena de uso de drogas e no mercado da droga, bem como a prevenção da violência em geral”, completa Ratton.

De fato, reduzir a violência é componente chave do Atitude: enquanto 65,4% (125) dos participantes tinha sofrido algum tipo de ameaça relacionada às drogas nos últimos seis meses, 77,2% (146) disseram se sentir protegidos no Atitude. Esse percentual foi ainda maior (83%) entre os usuários que receberam cuidados intensivos e acolhimento de longo prazo no programa.

Um dos pontos positivos do programa é a não exigência de abstinência – ainda assim, muitos dos usuários atendidos relataram redução no uso da droga. E a oferta de abrigos é relatada como uma das razões disso. Uma vez inseridos na rede de serviços do programa, o uso diário de crack destes indivíduos reduziu significativamente.

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Antes do Atitude, 93% dos pesquisados (177 de 191) se identificavam como usuários ativos de crack; após o engajamento no programa, esse número caiu para 64%, com 36% dos participantes deixando de usar a droga. Aqueles que seguiram consumindo crack reportaram uso menos intenso da substância e intervalos mais longos entre episódios de alto consumo. Por exemplo: indivíduos que fumavam cinco ou menos pedras de crack por episódio eram 10% antes do Atitude; após a implementação do programa, esse índice subiu para 39,4%; no caso de indivíduos que consumiam mais de 15 pedras de crack por episódio, o índice caiu de 57% antes para menos da metade (24,8%) depois do Atitude. Ou seja, o volume total de uso da droga foi reduzido, bem como caiu a intensidade de uso dos indivíduos que continuaram a consumir a substância.

 

AUTOR
Foto Luiz Carlos Pinto
Luiz Carlos Pinto

Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.