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Por Manoel Ferreira e Ana Cristina Reis*
Depois de vinte anos de relacionamento resolvemos fazer uma lua de mel tardia. Decidimos a data considerando nosso interesse de participar de um congresso de psicanálise, em março, em Barcelona.
Data
posta, começamos a construir nosso caminho. Pensamos nosso roteiro,
compramos passagens, passeios e estadias, e saímos de Recife no dia
9 de março rumo a
Barcelona.
Os dias em Barcelona, Espanha – 10/03 a 12/03
Viagem
tranquila e hotel que surpreendeu pela sua localização, Plaça
Reial no Bairro Gótico, Barcelona antiga. Nestes dias andamos no
entorno e conhecemos o Museu Joan Miró e a Igreja Gótica. Em nossa
programação original,
voltaríamos para Barcelona depois de passar no sul da França. A
volta estava marcada para o dia 19 (o
congresso seria nos dias 20 e 21 – foi cancelado, saberíamos depois)
para continuar a conhecer uma cidade que se mostrou vibrante.
O
coronavírus já era um grande problema na Itália e em Madri a
questão já era delicada. As informações
no Brasil sobre a situação trazia preocupações, mas não dava
idéia do que nos cercava. Já em Barcelona nos preocupamos com uma
alergia que tive e no
que isso podia mobilizar quem estava em volta. Nenhuma reação. Na
nossa saída de Barcelona começamos a tomar
conhecimento de ações sanitárias na
cidade.
Em Avignon, França – 12/03 a 15/03
Cidade
medieval, linda. Rodeada por uma muralha e que foi por um tempo sede
do papado. Andamos bastante, visitamos o Palácio dos Papas e
conhecemos a Ponte de Avignon e sua história.
Na
última noite, somos informados de que
no dia seguinte a cidade estaria
com as lojas e bares fechados para conter o avanço do coronavírus
na França. Até aquele momento tudo andava sem interferências
ou preocupações em Avignon.
Aix-en-Provence, França – 15/03 a 18/03
Nossa viagem toma novos contornos. O congresso de psicanálise já tinha sido cancelado. Decidimos não voltar para Barcelona pelas informações que chegavam. Saímos preocupados e cuidadosos. Fizemos o trajeto de Avignon para Aix de trem. No caminho, poucas pessoas tomavam precauções com o contágio. No trem, um jovem tosse e espirra ao nosso lado repetidamente. É a primeira vez que eu e Tininha cobrimos o rosto. Oferecemos a ele uma máscara. Nos contesta: “sou militar e fui vacinado, não tem risco” mas aceita e agradece a máscara.
Aix
é uma cidade maior que Avignon. Tem ruas, prédios e praças com
fontes que marcam a cidade e a deixam
agradável para passear. Mas não foi assim.
Fomos
recebidos na pousada com uma medição de temperatura e explicações
das restrições de circulação. Tivemos dificuldades para conseguir
almoçar e jantar, tínhamos comprado comida para o café da manhã.
Os passeios pela região (Baux-Arles e Gordes/Roussillon) que
programamos foram cancelados e ressarcidos. Antes de chegar,
perguntamos várias vezes se eles estavam confirmados e só quando
chegamos em Aix a agente de viagem que estava organizando tudo
comunicou o cancelamento.
Desmarcamos a primeira passagem. Já que não voltaríamos para Barcelona e de lá para Recife, tento várias vezes até conseguir transformar as passagens em pontos da LATAM para não perder o que pagamos (até este momento não tive os créditos na minha conta e a passagem aparece ativa – a atendente disse que demoraria uns 15 dias para creditar). Compro a volta para Recife pela TAP, Marselha-Lisboa-Recife, para dia 19.
Nos
dias seguintes as restrições aumentam e para sair da pousada
precisamos portar uma declaração que diz o que estamos fazendo na
rua. Nos dias em Aix só saímos para ir ao mercado e para farmácias.
E assim foi como observamos a beleza da cidade.
O cerco se fecha e os problemas aumentam – 18/03 a …
Marselha
(aeroporto). Na madrugada do dia 18,
acordo e mantenho a rotina de conferir sempre os e-mails e a situação
das passagens. Neste dia, o susto e a
apreensão. O vôo
de Lisboa para Recife da TAP foi cancelado diz o email. Logo depois
toda a passagem some da minha conta da TAP. Sem acesso e explicação.
Aguardo Tininha acordar e resolvemos ir de qualquer jeito para o
aeroporto de Marselha para antecipar a parte do vôo
que pensávamos estar ativa. Falamos com a pousada, sr.
Paul (a quem agradecemos muito e até outro dia nos escreveu
perguntando como estávamos), e antecipamos a saída de lá. As
dificuldades com a língua nos atrapalhava demais nesta situação e
o sr. Paul nos
ajudou com telefonemas e chamando o taxi.
No
aeroporto seguimos ao balcão da TAP. O nosso bilhete fora todo
cancelado e o funcionário não conseguia realizar nenhuma operação
com ele. Por um tempo ele nos questiona se fizemos alguma coisa que
bloqueou a passagem, com as nossas explicações ele entende e se diz
“magoado“ em relação à
TAP apontando para o peito. Ele entendeu que a TAP nos deixou sem
amparo.
Agora
nossa preocupação é chegar em Lisboa. Queremos nos aproximar de
lugares com vôos
diretos para o
Brasil e reduzir a barreira da comunicação. A
expectativa é de que Lisboa seja um lugar onde poderemos contar
com um maior apoio solidário. Compramos
novas passagens da TAP, Marselha/Lisboa por 440 euros cada, porque
não tivemos acesso à
antiga passagem para remarcá-la.
Chegamos
em Lisboa. Desembarcamos e fomos procurar o balcão da TAP e manter
contatos para nos orientar como conseguir passagens. Nem chegamos a
falar no balcão: nos informam na fila (enorme) que ali não se
resolveria nada. Mais agradecimentos aos familiares
e amigos que se preocuparam e pesquisaram
passagens e informações. Minha família e a de Tininha agora
começam a saber o que está acontecendo. Entram no circuito de
procurar passagens e contato com pessoas para nos ajudar e acolher.
Lanchamos e fomos para um hotel que reservamos próximo ao aeroporto.
Meu
irmão encontra um passagem pela TAP e faz o procedimento para
comprar. Chega ao final da operação e o valor de aproximadamente 15
mil reais é debitado em seu cartão de crédito e logo depois disso
o voo é cancelado. Continua a procura, encontra outra passagem em
outra companhia aérea e quando vai fechar o cartão bloqueia por
duas compras altas em curto espaço de tempo. Perdemos a passagem.
Novamente encontra uma passagem, agora pela LATAM, e conclui a compra
com mais 15 mil reais em outro cartão. Passagem marcada para o dia
23 para
Guarulhos. Não mais existem passagens para Recife. Nosso próximo
objetivo é chegar ao
Brasil.
Ainda no aeroporto assistimos nas TVs o pronunciamento do governo português enviando o projeto de Estado de Emergência em Portugal. No hotel ficamos em confinamento voluntário e acompanhando as notícias e nos contatos por WhatsApp o tempo todo. Não sou poeta suficiente para descrever a exaustão o que uma situação de impotência nos coloca (faço uma paráfrase de Lacan).
Recebemos
dos amigos e familiares apoio suficiente para não desesperar.
Falamos por mensagens e por audio e vídeo, ameniza a solidão a dois
que estamos vivendo. Só saímos para realizar compras de
mantimentos. O hotel informa que no dia seguinte não teremos
mais o café da manhã que fazia parte da reserva, as medidas do
governo português não mais permitem
o funcionamento do restaurante e da cozinha do hotel.
Comida
nos restaurantes, os poucos abertos, era para pagar e levar para casa
(hotel). A nossa reserva foi de três dias e não era suficiente para
chegar ao dia da viagem. Faço no booking.com
outra reserva no mesmo hotel para os dias restantes. Dia seguinte
somos informados de
que
o hotel vai fechar. Cancelamos a reserva e somos ressarcidos.
Uma situação que não contei: o hotel em Barcelona em que tínhamos reserva, cidade já fechada pelo COVID-19, não estorna o pagamento e não flexibiliza na negociação. Estamos frente à pandemia e a outro grande desafio: a monstruosidade da burocracia, que também se ampara no atendimento virtual desumano, que abraçada com a ganância e as relações desiguais aproveita para fazer negócios.
Começo
a acompanhar os preços para comprar o trecho de viagem de São Paulo
para Recife. De um dia para outro os preços sobem bastante. Na
sexta-feira, dia 20,
compro logo pela GOL esta
passagem para Recife. No sábado, o vôo
da LATAM é cancelado e propõem remarcação para o
dia 24. Aceitamos, mas precisamos de outro
hotel. Mudança feita, aguardamos chegar o check-in do vôo.
Cancelamos a passagem da GOL com crédito para outra passagem depois.
Enquanto
isso vou duas vezes ao aeroporto para tentar resgatar a passagem da
TAP e, com isso, solicitar o reembolso da passagem que temos da
LATAM. A monstruosidade que falei linhas atrás mostra sua cara feia.
Já tinha escutado relatos que a fila ficava ao relento, não se
permitia a entrada no aeroporto sem a comprovação de passagem. Uma
espera sem referência do que se passava. Os funcionários da TAP nos
perguntavam para
onde íamos e por qual
empresa aérea. Informam
que os vôos
estão lotados e que não tem o que fazer. Caso quiséssemos,
poderíamos ficar para esperar as negociações da Embaixada
Brasileira, sem garantias. Todos são iguais e isto termina a
significar que esta igualdade, para as
empresas, nos torna nada.
Escuto
histórias. Uma senhora está com a passagem cancelada, sem lugar
para ficar e só tem 50 euros. Pessoas a mais de uma semana sem
conseguir voltar. Gente que teve a passagem
remarcada pela TAP e depois cancelada novamente, volta a ficar na
fila com todas as malas para esperar um vôo
de encaixe, sem garantia e ao
relento. Há uma condição para deixarmos de ser nada: pagar até
1.800 euros para remarcar a passagem para uma data mais próxima.
Muitos compram.
Não sabemos se conseguiram embarcar.
O
nosso check-in abriu ontem,
domingo (22), 48
horas antes do vôo.
Começo a fazer digitalmente
e o vôo é
cancelado. Nova data é proposta para o
próximo sábado (28),
mais uma semana. Sem opção, marco e depois pago 96,94 reais pra
antecipar dois dias. Cancelam e não estornam o dinheiro. Remarco
para sexta-feira, 27.
Observo que ao cancelar as nossas passagens o site da LATAM, assim
como da TAP, continua a oferecer passagens para este dias com preços
absurdos, mais de 15 mil cada (lembrem que compramos duas a este
preço dias atrás). Ao mesmo tempo que isso se passa preenchemos
listas da Embaixada, do Itamaraty,
da ANAC, da LATAM
e da TAP sobre nossa condição em Portugal.
Amanhã,
tertça-feira (24)
sairemos do hotel
onde estamos e
vamos ser recebidos por amigos de familiares de Tininha em Lisboa,
que nos ofereceram estadia até o dia do nosso retorno. Como em
Portugal vivemos confinados em quartos de hotel vamos ter agora a
companhia solidária
de Tarci e Gui em ambiente afetuoso. Esta é a parte que mantém
a nossa esperança,
a solidariedade de pessoas que são amigos de familiares e não nos
conhecem, mas
que sabem o que
está acontecendo e se preocupam. Com
pessoas nos preocupamos, com objetos nos ocupamos (aprendi com o
professor Zeferino Rocha).
Estamos
cansados, preocupados, saudosos e sabendo que vamos continuar no
enfrentamento desta pandemia no Brasil, mas é nossa casa.
Expectativa de chegar logo.
Reviravolta – 24/03
PS 1 – Uma Peste não é apenas o efeito de um agente biológico ou curso natural de um adoecimento, no caso o coronavírus. Ela acontece suportada por um aparato dos laços sociais e políticos econômicos de sua época. Sua resolução também é dessa ordem. A repercussão deste relato na publicação da Marco Zero Conteúdo teve um efeito solidário importante. Ontem (23) fomos dormir mais de uma hora da manhã com Renata, que é da Florescer Turismo, uma agencia de viagem, em trocas de mensagens em que ela tomou para si nos ajudar. E conseguiu resgatar a reserva da TAP que não conseguíamos acessar. Hoje pela manhã, no café, antes de sair para o aeroporto para gerar o bilhete, outra amiga, Paula Magalhães, entra no circuito para nos apoiar. Ela em conjunto com um amigo dela, Telmo, que trabalha na TAP consegue emitir o bilhete e conseguimos realizar o check in da viagem. Amanhã estaremos voltando para o Brasil.
Hoje fomos recebidos na casa de Tarci e Gui. Afetuosos e depois de uma boa conversa vamos dormir esperançosos. Temos muitos agradecimentos a fazer. Familiares, amigos e contatos solidários no Brasil e em Portugal que se dispuseram e nos acompanharam neste tempo com toda a disponibilidade. Um abraço em todos que nos enviaram mensagens e que participaram assim deste desfecho.
P.S 2: Encontramos com Armando no mesmo embarque que tem uma outra história para contar. Estava até ontem sem passagem para retornar ao Brasil. Ele voltaria pela Cabo Verde Airlines. A companhia aérea cancelou todas as passagens e fechou seu guichê no aeroporto. Renata, ela novamente, consegue um bilhete da TAP para ele.
De volta pra casa
Chegamos. Já eram meia noite e meia quando aterrissamos nesta quinta-feira (26) em Recife. Foram 24 horas no processo de chegar ao aeroporto de Lisboa até deitar. Desta vez sem sobressaltos. Acompanhamos passo a passo o caminho. Pelo monitor nos vemos sobrevoado o Nordeste e depois o alivio quando descemos no Rio de Janeiro, estamos no Brasil. Com o alívio, o cansaço se instala. Durmo quase todo o trajeto do Rio para Recife. Hoje dormimos na nossa cama. Agora além da quarentena vamos administrar as contas que vão chegar.
Manoel Ferreira é psicanalista e servidor público
Ana Cristina Reis é biomédica, terapeuta floral e aromaterapeuta.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.