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Sai Presidente Kennedy, entra Xambá

Raíssa Ebrahim / 04/03/2020

Av. Presidente Kennedy, em Olinda (crédito: Marconi Meireles)

Seis mil veículos por dia, um comércio pulsante e uma pista caótica. Esse é o retrato da avenida Presidente Kennedy, que cruza cinco bairros de Olinda, na Região Metropolitana do Recife. O líder norte-americano, assassinado em 1963, dá para imaginar, morreu sem nunca nem ter ouvido falar de lugares como Vila Popular, Peixinhos, Jardim Brasil, Aguazinha e São Benedito.

Agora que a via finalmente começou a passar por uma ampla reforma, o Terreiro Xambá, fundado em 1930 e Patrimônio Vivo de Pernambuco, quer resgatar também o pertencimento da avenida.

A campanha para renomeação da Kennedy para avenida Xambá começou a tomar corpo no período de Carnaval com a adesão de artistas e as ações de divulgação do Grupo Bongar, formado por músicos do primeiro quilombo urbano do Brasil.

Nos bastidores da câmara e da prefeitura municipais, a proposta também vem somando adeptos em ano eleitoral. Caso se concretize, a simbologia do projeto ganha ainda mais força numa cidade em que o prefeito é evangélico e o presidente do legislativo é bolsonarista.

Ambos, Professor Lupércio (SD) e Jorge Federal (PL de mudança para o PSL), estão cotados para a disputa ao executivo olindense. Lupércio, que tentará a reeleição, tem na reforma da Kennedy sua grande marca, um investimento orçado em quase R$ 15,42 milhões e que promete diminuir o sufoco de motoristas, pedestres, moradores e comerciantes.

Prefeitura e aliados têm apostado na campanha #TodosPelaKennedy e em ações de marketing político no local.

Prefeito Lupércio (SD) dá marretada para marcar início da da reforma da Av. Presidente Kennedy, um trunfo para a campanha de reeleição (crédito: Alice Mafra/divulgação)

Nos bastidores, Lupércio já teria demonstrado apoio à mudança para avenida Xambá, mas, pela legislação, a renomeação de ruas e avenidas precisa ser uma proposta legislativa aprovada em plenário, além de contar com um abaixo-assinado.

Grupo Bongar à frente

Segundo Guitinho da Xambá, do Bongar, alguns vereadores já se mostraram abertos à ideia e as conversas estão seguindo com o devido cuidado para manter o caráter coletivo da sugestão. A ideia é evitar que a mudança seja capitalizada apenas como o feito de um político.

“Nós do Bongar e da Casa Xambá fazemos trabalhos com escolas públicas, temos um centro cultural e percebemos que as pessoa não se reconhecem nesse nome. Os alunos muitas vezes não sabem nem quem foi Kennedy. Então, fizemos um trabalho de pesquisa e, nesse instante em que a Prefeitura de Olinda está revitalizando a avenida, a renomeação atende a algo que já é geral e muito simbólico. É mais uma forma de reparo para o povo de terreiro que foi reprimido e perseguido”, comenta Guitinho, cuja tia bisavó chegou a ser presa por praticar culto de matriz africana.

Grupo Bongar e Lenine em show na Praça do Carmo no Carnaval de Olinda 2020 (crédito: Kayo Na Real)

“Este ano, nossa casa completa 90 anos no estado de Pernambuco. Seria um ato de grande valor para as comunidades de terreiros”, reforça. O músico acredita que a exposição e a força do Xambá também podem abrir possibilidades para distensionar relações, sobretudo com os neopentecostais, e mostrar que é possível haver convivência religiosa no Brasil.

Guitinho vê a reforma da Kennedy como uma ação necessária para a população, com uma opinião que frisa ser suprapartidária e sem posições eleitoreiras.

Em nota, a Prefeitura de Olinda nem confirmou nem desmentiu o apoio do prefeito Lupércio. Disse que, “após a conclusão dos serviços (da reforma), uma possível mudança de nome da avenida precisa passar pela Câmara de Vereadores”. Uma campanha de abaixo-assinado já está sendo preparada pelo pessoal do Xambá e terá versão online.

As conquistas do Xambá

A luta do povo Xambá pelo reconhecimento e pela manutenção da cultura africana viva e do candomblé no território onde o terreiro está instalado conta com marcos significativos. A área, que abriga o único terreiro de nação Xambá na América Latina, teve o título de primeiro quilombo urbano do Brasil concedido pela Fundação Cultural Palmares em 2007.

Parte da comunidade do Terreiro Xambá, que funciona em Olinda desde 1951 (crédito: divulgação)

Em 2008, sob a liderança do Pai Ivo (filho de Mãe Biu) – um dos homenageados do Carnaval de Olinda 2020, escolhido de forma popular -, o local conquistou o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco. No mesmo ano, a comunidade passou a reivindicar alterações no projeto de implantação do Terminal Integrado para amenizar os impactos físicos e culturais no território.

Graças à mobilização, a posição do TI foi invertida e ele recebeu o nome de Xambá. Atualmente 26 linhas de ônibus circulam com o letreiro em referência ao lugar. “Isso gera reconhecimento informal natural da sociedade quando a gente diz ‘E vou pra Xambá’. Existe um sentimento nas pessoas e isso dá legitimidade para repensar esse marco”, avalia Guitinho.

História e reforma

A Kennedy começa no Varadouro, no giradouro do Complexo de Salgadinho, e vai até a Estrada do Caenga, onde os bairros de São Benedito e Águas Compridas fazem divisa. O primeiro nome da via, no século passado, foi Estrada do Matumbo, nome de origem africana. Depois passou a ser São Benedito, santo católico negro.

Em 1968, o então prefeito de Olinda, Nilo Coelho, resolveu homenagear o ex-presidente JFK, de origem rica e católica, morto a tiros cinco anos antes. O nome de Kennedy batiza várias lugares no Brasil, como a Vila Kennedy (Rio de Janeiro), a avenida Kennedy, em São Bernardo do Campo (SP) e a cidade Presidente Kennedy (ES).

Uma das grandes mudanças na reforma da Kennedy será a retirada das paradas de ônibus do canteiro central. Os coletivos passarão a circular do lado direito da via, junto às calçadas, que, segundo a projeto, serão requalificadas e alargadas para 1,5 m e receberão elementos de acessibilidade. As lâmpadas passarão a ser de LED, mais fortes e mais econômicas. Durante o período de execução, de 18 meses, também está prevista a reestruturação do escoamento das águas.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com