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Crédito: Manuela Simões/Cortesia
por Mariano Hebenbrock*, de Hamburgo (Alemanha)
O sistema de tecnologia é precário e a comunicação ruidosa, principalmente quando se tenta fazer uma chamada de vídeo, para que possamos acompanhar de perto o trajeto entre o leste e o extremo sudoeste de Jerusalém, precisamente para o vilarejo de Susiya, localizado na zona C da Palestina. O acordo de paz de 1995, conhecido como Oslo II e firmado entre Israel e a antiga Organização para a Libertação da Palestina (OLP), determinou a divisão da Cisjordânia em três tipos de zonas, que estão sujeitas a regimes diferentes até hoje.
Grandes cidades palestinas como Ramallah e Nablus formam a zona A, ou seja 18% do território, na qual toda a administração civil e atividades de segurança pública foram transferidas para a Autoridade Palestina. Na zona B, onde se localiza Jerusalém Oriental e uma série de pequenas cidades palestinas, a AP é responsável pela administração civil, enquanto o controle da segurança está inteiramente a cargo do exército israelense. Essa região corresponde a 20% do território. A área C constitui a maior parte da Cisjordânia (62%) e ainda está completamente sob a administração civil e militar israelense. É nesta vasta região onde os conflitos entre palestinos e colonos israelenses são mais violentos dentro da Cisjordânia.
Após alguns minutos na quebra da conexão a imagem da paisagem seca, ensolarada e pedregosa surge mais uma vez em minha tela, como confirmação de que Ahmad Abu Said ainda está a caminho de sua aldeia. “Para chegarmos ao Oeste Selvagem, como essa região é conhecida pelos Israelenses, precisaremos passar pela cidade de Bethlehem”, explica Ahmad. Após algumas trocas de palavras, para termos a certeza de que a conexão foi restabelecida, peço que a conversa entre ele e os convidados para esta entrevista seja gravada em inglês, diminuindo assim o desgaste da tradução. “Bethlehem é quase completamente cercada pelas barreiras israelenses”, afirma o primo, Hashid Said. E continua: “Efrat, por exemplo, é uma das primeiras grandes instalações israelenses”.
Durante a viagem a vegetação muda. As cadeias de colinas escassamente povoadas fundem-se numa paisagem desértica vazia, que abre amplas vista para o sul do país. Finalmente Ahmad chega a sua aldeia. A paisagem seca e desolada dá lugar a um amontoado de cabanas de plásticos, latões, lonas e madeiras. “Aquelas cavernas que você vê logo ali, são usadas pelos pastores de ovelhas palestinos para se defenderem do exército israelense e protegerem seus animais de ataques dos colonos. A vida dos pastores no sul da Cisjordânia quase não mudou durante séculos.” Afirma Hamza Said.
Em uma rodada de chá que é costume no oriente médio, Ahmad é recebido por familiares e amigos. Em meio a uma conversa entrecortada, o homem que se identificou apenas como Ayube explica para a câmara que as restrições na zona C, em relação à liberdade de locomoção e distribuição de licença para atividades comerciais, é válida apenas para palestinos. “Todos os trabalhos de construção, instalações de redes para computador, perfuração de novos poços e instalação de energia, precisam da autorização da administração civil israelense. Até algumas remessas de dinheiro que ultrapassem certas quantias devem ser controladas” conclui Ayube.
Ahmad Abu Said, que por muitos anos trabalhou em um escritório da ONU coordenando projetos humanitários na região, explica que a autoridade civil israelense, cuja sede fica no assentamento de Beit El, nos arredores de Ramallah, regula praticamente todas as facetas da vida na zona C. “Só ela decide quem recebe licença de construção e quem não recebe. Uma parte da imprensa israelense vem constantemente acusando a autoridade civil de empregar muitos colonos que têm interesse em expandir os seus próprios projetos de colonatos na Cisjordânia, inclusive criando fatos e rejeitando milhares de licenças de construção solicitadas pelos palestinos,” enfatiza Ahmad.
A aldeia palestina de Susiya fica numa colina entre um arrojado assentamento israelense, construído com tudo que existe de mais moderno e segregado por muralhas e guaritas de segurança armadas, e as ruínas de uma sinagoga da época romana. Um senhor de voz embargada, aparentando seus 90 anos, explica para Ahmad que “aldeia talvez não seja a palavra certa: Susiya nada mais é do que um conjunto de tendas improvisadas, entre as quais as crianças correm e brincam com as cabras e ovelhas que encontram pouca comida nos arredores rochosos”. As tendas de plástico dificilmente parecem adequadas para proteger os seus residentes dos fortes ventos que varrem os desertos no inverno.
Nesta área árida, os moradores de Susiya continuam a sua vida tradicional. Eles vivem do que a criação de ovelhas produz e coletam a chuva do inverno em grandes cisternas naturais. “O risco de ser expulso permanentemente de Susiya tem aumentado constantemente nos últimos 37 anos. A primeira grande evacuação da aldeia pelos militares israelenses ocorreu em 1986, depois que os colonos israelenses começaram a povoar o corredor norte-sul, com o objetivo de circundar e isolar esta região. Os residentes de Susiya logo retornaram e reconstruíram sua aldeia. Desde então, foram despejados tantas vezes que acabaram por se contentar com as tendas fornecidas pela Cruz Vermelha Internacional”, esclarece Ahamd.
O mesmo idoso da voz embargada que, aparentemente, é o anfitrião da recepção, explica que a constante alternância de expulsão e retorno para casa continua até hoje. “Em 2021, Susiya foi novamente evacuada pelas forças de segurança israelenses, depois que um residente do assentamento judeu vizinho foi morto por um palestino. A maior ameaça, contudo, continua a ser a política oficial das autoridades civis israelenses. Como não aprovam uma única licença de construção, todas as habitações em Susiya são consideradas ilegais e podem ser demolidas a qualquer momento. Assim, os palestinos desta aldeia vivem ilegalmente em suas próprias terras,” conclui. Os palestinos na área C enfrentam não só o exército e as autoridades civis, mas também a fúria dos colonos israelenses, cujos ataques vem se tornando cada vez mais agressivos, desde a segunda intifada (2000-2005). Milhares de oliveiras palestinas são constantemente queimadas ou cortadas, e estábulos são incendiados causando mortes de centenas de ovelhas. Após o atentando do Hamas no Sul de Israel em 7 de outubro e a contra-investida do exército israelense em Gaza, um dos maiores historiadores israelenses em exílio na Inglaterra, o professor IIan Pappe alerta para a execução do plano de limpeza étnica palestina proposto por políticos israelenses desde a fundação do Estado em 1948.
A situação apresentada por Ahmad em Susiya pode ser acompanhada em várias partes da Zona C, como explica Mahmud Zahawre: “Eles estão nos tentando matar de fome em nossa própria terra.” Seu olhar fixo na câmara se desvia lentamente para a rodovia 60, que liga Jerusalém a Hebron e ao Sul da Cisjordânia. “Os militares e os colonos trabalham juntos. Eles formam uma equipe perfeita e de sucesso,” continua. Zahawre é administrador comunitário em Mas`ara, um vilarejo perto de Bethlehem. Na sua opinião, as mudanças populacionais graduais no sul da Cisjordânia não se devem apenas às políticas das autoridades, mas também ao comportamento violento dos colonos. “Acontece frequentemente que os pastores palestinos, que dependem das pastagens em redor de Asaël, são expulsos pelos colonos com pedras ou tiros de borracha” explica.
Mesmo dentro dos limites da sua propriedade legal de terra, os palestinos mal conseguem cultivar ou colher em seus campos. A situação é ainda mais complicada pelo fato de estarem sujeitos à jurisdição militar israelense em toda a área C. Isso se aplica a roubo ou violação de regulamentos de segurança. Os colonos, por outro lado, estão sujeitos à jurisdição civil como cidadãos israelenses, embora residam fora das fronteiras oficialmente reconhecidas de Israel. Em linguagem simples, isto significa que os agricultores palestinos são ameaçados de prisão pelos soldados de ocupação israelenses e de um longo julgamento perante um tribunal militar quando cultivam as suas próprias terras. Por outro lado, os colonos que agem de forma violenta contra os palestinos respondem a um tribunal civil, sem que nunca sejam efetivamente punidos.
O historiador Michael Wolffsohn, da Universidade Bundeswhr de Munique, explica que para evitar conflitos entre colonos e palestinos, os militares recorrem, na maioria dos casos, a uma medida que foi introduzida em 1945 por um decreto de emergência do então mandato britânico. “Certas áreas podem ser declaradas zonas militares fechadas, onde os civis só podem entrar com a permissão expressa do comandante responsável. O exército israelense utiliza repetidamente este regulamento para expulsar os palestinos das suas próprias terras ou bloquear o seu acesso a recursos como fontes de água, enquanto os colonos têm acesso ao que necessitarem” explica o pesquisador. Esta política baseia-se na ideia de que a população palestina pode ser melhor controlada em pequenas áreas urbanas, fazendo crescer assim a pressão para os centros urbanos.
Hussein Hadis, administrador comunitário de uma pequena aldeia na região de Husan, próximo a Bethlehem, explica que “qualquer autorização que a autoridade civil negue para a construção de casas ou de canalização de água e eletricidade, aumenta a dependência das aldeias, forçando uma mudança das populações palestinas para as cidades. Com isto as autoridades podem declarar estas terras como propriedades abandonadas e confiscá-las de acordo com as leis otomanas sobre propriedade, segundo as quais o direito de propriedade está vinculado a uma presença permanente na terra”.
A familia Salim, residente na aldeia Umm al-Kheir, localizada no topo de uma colina a leste do assentamento de Karmel, onde os beduínos vivem, é constituída de um conjunto de moradias improvisadas, como a maioria dos assentamentos neste canto sudoeste da Cisjordânia, explica Mustafá. Ahmad, com seu copo de chá adocicado servido por Fátima Salim, é lembrado que as autoridades israelenses usam até mesmo o menor projeto de construção, como uma latrina, como oportunidade para destruir toda a aldeia.
“Eles querem tornar as nossas vidas o mais difícil possível”, diz Abdullah, genro de Fátima e Mustafá. “Eles tiram até as necessidades mais básicas da vida, como água e banheiros, mas até agora temos ficado aqui. Não temos outra escolha,” conclui Nadja, filha mais velha do casal e esposa de Abdullah. Segundo dados da Cruz Vermelha Internacional ao menos 100 pessoas vivem na aldeia, que só pode ser alcançada através de uma estrada esburacada e perigosa. Ahmad explica que todos os pedidos de planejamentos apresentados pelos aldeões são regularmente rejeitados. “O contraste com o colonato israelense de Karmel torna a pobreza em Umm al-Kheir particularmente acentuada: as crianças parecem doentes e não há habitação permanente nem água corrente. A poucos passos de distância está o moderno assentamento judaico, onde vivem principalmente migrantes dos Estados Unidos, África do Sul, Alemanha e França”, conclui Ahmad.
A aprovação de medidas que facilitem a vida dos palestinos é difícil de se obter. As autoridades israelenses estão em lugares distantes das aldeias e para se chegar lá é necessária uma autorização de viagem, dificultando o acesso aos órgãos competentes. Abdullah explica que os responsáveis pelas autorizações de viagem só falam hebraico, idioma que ele não entende. Além disso, os escritórios abrem em horários e dias alternados. Ele geralmente pede a amigos israelenses que liguem para as autoridades competentes. “Mesmo os israelenses, têm muitas dificuldades em entender como funciona o sistema de licenças. Não importa o que façamos, no final das contas ficamos sem a licença.” Conclui.
Afim de evitar conflitos maiores entre agricultores palestinos e colonos israelenses e garantir que a comunidade internacional tome conhecimento da atual situação na região, ativistas de partidos de esquerdas e de ONGs como a Taayush e a Breaking the Silence recorrem ao tribunal de Jerusalém em vários casos a favor dos palestinos, para denunciar casos contra a prática injusta e unilateral das forças militares. Ahmad explica que mesmo com causas ganhas e o Tribunal Superior condenando repetidamente a administração militar, por estabelecer zonas militares fechadas e tornar a sobrevivência dos palestinos praticamente impossível, o exército continua ignorando as decisões judiciais e colocando em prática o seu plano de evacuação, expulsão e anexação de terras palestinas.
Para o historiador Wolffsohn, os acordos de Oslo foram originalmente concebidos como uma solução provisória, mas criaram uma estrutura administrativa confusa na Cisjordânia, que tem consequências fatais para o povo palestino. “Em última análise, uma série de leis impede os palestinos de obterem as licenças que desejam, facilitando a expansão territorial em uma região que, para o povo judeu, pertence às tribos de Judeia e Samaria”, afirma Wolffsohn. A política de colonato israelense é considerada um dos maiores pontos de discórdia entre Israel e os palestinos, complicando cada dia mais a perspectiva de uma solução de dois estados na região.
*Bacharel em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco (*Unicap), mestre em Política Internacional e Jornalismo Investigativo pela Universidade de Hamburgo (Alemanha) e doutor em Comunicação Política pela Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona (Espanha)
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