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Sobre o Galo, cachaça na ladeira e outras artes (ou artimanhas)

Marco Zero Conteúdo / 09/02/2024
Foto colorida da alegoria gigante do Galo da Madrugada em primeiro plano, tendo ao fundo o rio Capibaribe, uma das pontes sobre o rio e, ao longe, os contornos da colina histórica de Olinda.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

por Fabio Atanásio de Morais*

“.. Não deixem não, que o bloco campeão; / guarde no peito a dor de não cantar…”, diria que esse apelo do poeta não mais faria sentido nos dias atuais, frente àquilo que o Galo da Madrugada passou a ser, um “grandes eventos de massa”, como costumamos nominar. Não só ele, outros mais recentes, a exemplo da Carvalheira na Ladeira, provavelmente também não deixarão de cantar.

Decorrido quase um ano desde que escrevi um breve artigo exteriorizando a minha indignação diante da apropriação indébita de espaço público para fins privados, mencionando na oportunidade a relação que classifico como “espúria”, evidenciando as benesses recebidas por iniciativas carnavalescas, exemplo do Galo da Madrugada, em Recife, e da Carvalheira na Ladeira, em Olinda, cá estamos mais uma vez “malhando em ferro frio”. No entanto, dou crédito ao dito popular “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”.

Pois bem, mais uma vez nos deparamos, desta feita mais grandiosa do que nunca, com o mirabolante carnaval realizado tanto pelo Galo de Madrugada quanto pela Carvalheira na Ladeira.

Em nome da honestidade, não posso abstrair do significado do Galo enquanto âncora do tão enaltecido Carnaval de Recife, esse ano chamado de “O maior em linha reta”, que, a bem da verdade, reconhecendo as minhas limitações intelectuais digo que não entendo muito bem o que significa tal slogan, ou melhor, me pergunto qual o valor agregado desse suposto fato para tornar o Carnaval do Recife ainda mais grandioso do que supostamente já é?

Como escrito no meu artigo anterior ,“o próprio Enéas Feire, nem nos seus melhores sonhos, teria imaginado na sua origem que essa agremiação carnavalesca se tornasse o que se tornou: mais do que ‘o maior bloco de carnaval do planeta’, um empreendimento altamente lucrativo”, que segue, talvez pela sua grandeza e importância, se locupletando das benesses do poder público, evidentemente que ao arrepio da lei, uma vez que a pergunta por mim arguida segue sem resposta: sob qual instrumento legal se privatiza o público em benéfico do Galo da Madrugada, inclusive para salvaguardar a mim próprio, ratifico que estou tão somente exercendo uma prorrogativa constitucional (Constituição Federal de 1988, no Art. 5º, Inciso XXXIV, Alínea “a”).

Ressalto que, quando me refiro ao Galo, me valho de uma figura de linguagem – não me ocorre diminuir a importância da alegoria -, para tentar entender sob qual pretexto poucas pessoas são “abençoadas” em detrimento do direito de muitas. Insisto: não sou contra o Galo, mas não me permito calar diante do descalabro aos cofres públicos sob a égide do Galo da Madrugada.

No que tange a Carvalheira na Ladeira, diria que é ainda mais escandaloso, visto que o apelo dessa iniciativa é tão somente maximizar os lucros dos seus titulares. O carnaval é tão somente a desculpa, oferecendo entretenimento exclusivo para os mais aquinhoados, e bota “aquinhoamento” nisso, considerando os valores cobrados aos que pertencem a suposta elite, sem deságio, pagam módicos R$ 1.000,00 por ingresso individual por cada dia de acesso as suas instalações.

O evento Carvalheira na Ladeira, suntuosamente montado no Memorial Arcoverde, mostra de forma incontestável a competência que falta aos gestores públicos na promoção de dias de festas que, literalmente, embriaga e fascina os privilegiados.

A propósito, para não dizer que não falei das flores, chama atenção que os artistas, ou seja, aqueles que se autoproclamam comprometidos com a cultura e seus valores, e que costumam enaltecer as suas “competências críticas”, “compromisso social” e outros “blá, blá, blá”, sequer ruborizam diante de tamanho desmando, deixando claro que interessante mesmo é o “cachê” que recebem.

Sublinho que, sobretudo para não parecer indelicado, grosseiro, ou mesmo o tipo de sujeito que vive procurando “pelo em ovo” para esconder as suas decepções, frustrações – antecipando um argumento repetido por quem é avesso ao pensamento crítico – me dei ao trabalho de buscar nos portais da transparência, na imprensa e redes sociais uma única pista que fosse para entender ou mesmo tão somente conhecer quais ou qual instrumento legal autoriza essa suposta “parceria pública-privada”.

Não encontrei rigorosamente nada para além de informações sobre o evento. Significando dizer que a suposta cessão efetivada, até prova em contrário, se deu por discricionariedade da autoridade pública que teria o dever de cuidar do bem público, isto ao arrepio do que dispõe a lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 que substituiu a Lei no 8666, de 21 de junho de 1993 -, e da lei nº 13.019 ,de 31 de julho de 2014, além de outras mais que também versam ou orientam sobre essa questão, significando dizer, como escrito em artigo anterior “essas relações não se estabelecem discricionariamente”, ou seja, a juízo e vontade do administrador público, mas mediante adoção de procedimentos que privilegiem o melhor interesse público e ofereça a possibilidade de estabelecimento de concorrência frente à finalidade então pretendida”.

Assim, mais uma vez me assento na esperança de que possa ser ouvido por alguma das autoridades que integram qualquer um dos órgãos de controle, quando nada para virem a público para assegurar que, ao menos as questões aqui arguidas se encontram na mais perfeita regularidade, portanto, não cabendo quaisquer elocubrações que versem em contrário.

Pelo dito, parece que no fazer contemporâneo restou tão somente o circo, haja vista que o pão vem sendo progressivamente negado. Fora isso, é esperar que os clarins do “bobo da corte”, ou melhor “os clarins de Momo” pelo povo aclamado com todo ardor possam, de fato, exaltar as tradições e o esplendor que habitavam a cabeça do saudoso Clídio Nigro.

*Servidor público do município de Olinda, ex-coordenador do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), no Nordeste e na Amazônia; ex-presidente da Fundação de Cultura do Município de Belém (Fumbel)

AUTOR
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