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O carnaval começa muito antes do Galo da Madrugada

Marco Zero Conteúdo / 16/02/2023

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

por Fabio Atanásio Morais*

Será mesmo que o “carnaval começa no Galo da Madrugada“, como diz a letra do frevo do compositor José Mário Chaves, imortalizada pela voz de Alceu Valença? Diria que não, haja vista que, como em tantas outras festas populares, em nome da “valorização cultural”, onde o “melhor interesse público” é vilipendiado, a folia começa em “tenebrosas transações”, como diz outra música, um samba de Chico Buarque.

O abre alas do “reinado de Momo”, que, diga-se de passagem, personagem que já está mais para bobo da corte, desde muito vem sendo protagonizado pelo “Galo da Madrugada”, agremiação que nasceu na rua Padre Floriano, bairro de São José – onde vivi a minha infância e adolescência -, por iniciativa de um velho morador que, para além de folião, vislumbrou inteligentemente uma forma de se ocupar e aferir alguma vantagem financeira, haja vista que o seu trabalho de décadas não mais lhe proporcionava remuneração suficiente para prover as suas necessidades de subsistência.

Em sua origem o Galo era de fato uma brincadeira de carnaval suficientemente inclusiva para abrigar tantos quantos desejavam participar do festejo de forma animada e alegórica, como eu mesmo o fiz acompanhado de familiares e amigos então fantasiados de palhaços. Acredito que o próprio Enéas Feire, nem nos seus melhores sonhos, teria imaginado na sua origem que essa agremiação carnavalesca se tornasse o que se tornou: mais do que “o maior bloco de carnaval do planeta”, um empreendimento altamente lucrativo.

Importante saber que o “Galo da Madrugada” não é uma instituição pública, mas uma instituição privada, inclusive como consta no seu estatuto, desde o tempo do seu fundador, liderada por um presidente perpétuo”, como o fora o próprio Enéas. A princípio nada há de errado nessa condição, exceto quando o espaço público lhe é dado para fins de exploração privada ao arrepio da lei, exemplo do que acontece na praça Sérgio Loreto, e dos royalties no uso do espaço público que são revertidos para o Galo, a exemplo dos trios elétricos patrocinados pela iniciativa privada, bem como pelo próprio poder público, exemplo da “Frevioca”.

Para definir o que são bens públicos, recorro ao Código Civil brasileiro que, em seu artigo 98, o faz de maneira sucinta, sem deixar margem para dúvidas quando diz que são aqueles “do domínio nacional pertencente às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencem”. No artigo seguinte, há a classificação dos bens públicos: “a) bens de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; b) bens de uso especial, como edifícios ou terrenos destinados a serviços ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; e c) bens dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado”.

A legislação brasileira trata de maneira adequada as condições em que pode se dar a cessão onerosa de um bem público. Enfatizo alguns pressupostos e requisitos mínimos para que isso possa ocorrer. A duração do contrato tem de ser temporária, é imprescindível a existência de procedimento seletivo, seja por meio de licitação, chamamento público, consulta popular ou outras modalidades, assegurando assim isonomia de tratamento entre os potenciais interessados e transparência nos critérios de escolha. Tais critérios não podem “circunscrever-se ao valor ofertado”.

O gestor público também precisar assegurar a “vinculação do total dos valores auferidos à instituição a que pertence o bem, preferencialmente destinados à melhoria do próprio bem, interditado o desvio de tais recursos para satisfação de objetivos e encargos de outras instituições públicas”, além de evitar abusos capazes de dar percepção social de privatização completa dos bens públicos. À exceção da primeira das condições citadas, aquela referente à duração dos contratos, não me parece que as demais são respeitadas nos carnavais pernambucanos.

Os trechos entre aspas mencionados nos dois parágrafos anteriores não são de minha autoria, mas sim do doutor em Direito do Estado pela USP, André Dias Fernandes, e da mestre em Direito Privado Letícia Queiroz Nascimento, autores do artigo A exploração econômica de bens públicos por meio da cessão onerosa da naming rights.

Para além do já citado Código Civil, as relações entre o público e o privado devem também serem regidas à luz da lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021que substitui a Lei no 8666, de 21 de junho de 1993 -, e da lei nº 13.019 ,de 31 de julho de 2014, além de outras. Ou seja, essas relações não se estabelecem “discricionariamente”, ou seja, a juízo e vontade do administrador público, mas mediante adoção de procedimentos que privilegiem o melhor interesse público e ofereça a possibilidade de estabelecimento de concorrência frente à finalidade então pretendida.

A bem da verdade, citamos o Galo pela sua expressividade pública, mas temos inúmeros outras situações, exemplo do Carvalheira na Ladeira na entrada da cidade de Olinda. Importa também constatar que não temos visto os órgãos de controle, exemplo do Ministério Público e Tribunal de Contas do Estado (TCE) se pronunciarem a respeito. Impressiona mais ainda a naturalização de tais procedimentos, sobretudo quando, em momentos de exacerbação política, os formadores de opinião e a grande mídia simplesmente se calam. Diria que nada tão atual como a política do Pão e Circo para entorpecer os ânimos.

Permaneço no universo musical que me é tão caro, e “para não dizer que não falei das flores”, agregue-se a esse universo de iniciativas a generosidade do administrador público em oferecer, também em nome da valorização da cultura, atrações que, em muito, extrapolam o bom senso no uso dos recursos públicos. Refiro-me as atrações de renome nacional ou mesmo internacional, pagos por meio cifras exponenciais, sobretudo quando comparadas aos valores eventualmente destinados aos talentos locais que, arduamente e com perseverança, insistem em produzir cultura levando seus saberes e artes não raramente vendendo o café para ganhar o almoço. Não se trate de negar ao “povão” a possibilidade do encontro com celebridades, mas de equilíbrio na gestão dos recursos públicos onde incluir excluídos e dar visibilidade aos invisíveis também se coaduna valorização cultural.

Por conhecimento de causa sei das inúmeras pressões a que se submete o administrador público no exercício das suas funções, eu próprio, à época em que exerci a honrosa função de presidente da Fundação Cultural do Município de Belém, no Pará, não raramente era instado a, discricionariamente, contratar atrações sob o pretexto da inexigibilidade, situação em que se atenta contra princípios basilares da administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Entretanto, contando com o apoio incondicional do então prefeito municipal, em nenhuma situação sucumbimos, de forma que, invariavelmente, realizamos as grandes celebrações culturais se valendo de editais públicos por meio dos quais, indistintamente, os diversos fazedores de cultura se equiparavam frente às oportunidades oferecidas, sem que com isso se reduzissem o brilho das atrações e a qualidade dos espetáculos.

Quero cantar ao som dos clarins de Momo, sim, mas sem que se negocie a dignidade ou se privilegie a enganação.

*Servidor público do município de Olinda, ex-coordenador do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), no Nordeste e na Amazônia; ex-presidente da Fundação de Cultura do Município de Belém (Fumbel)

AUTOR
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